sábado, 29 de agosto de 2020

Míriam Leitão - Águas do Rio e conflito federal

- O Globo

Até as águas do Rio Jordão sabem o que está se passando no Rio de Janeiro. Há uma guerra entre os que se banharam nas mesmas águas. O que levou Wilson Witzel do traço na intenção de voto ao Palácio Guanabara foi a onda bolsonarista. O mesmo discurso anticorrupção, o uso da religião, e a apologia das armas. Bolsonaro fazia o gesto da arma na mão, Witzel dizia que daria “tiro na cabecinha”. Bolsonaro passou pelo PSC, onde lançou sua pré-candidatura e foi batizado pelo Pastor Everaldo, Witzel foi eleito pelo PSC. Hoje os dois lados se acusam mutuamente. Witzel acha que está sendo perseguido pelo presidente, através do Ministério Público Federal, Bolsonaro acha que seus filhos são perseguidos por Witzel, através do MP estadual e da Polícia Civil.

A política do Rio de Janeiro tem água turva demais. Quatro governadores passaram pela prisão, um permanece entre grades e outro está em prisão domiciliar. A PGR chegou a pedir a preventiva de Wilson Witzel, o ministro do STJ Benedito Gonçalves apenas o afastou. De tarde, o ministro Alexandre de Moraes permitiu a continuidade do processo de impeachment, o que pode afastá-lo definitivamente do cargo. Bolsonaro já disse que “o Rio é o estado mais corrupto do Brasil”, mas foi onde fez a sua carreira, na qual jamais se mobilizou contra a corrupção. Fez sua vida política defendendo bandeiras corporativas das forças de segurança e emitindo sinais de simpatia à milícia. Com essas alavancas e usando o sentimento anticorrupção, foi mais longe do que qualquer outro do estado. Jair Bolsonaro é o primeiro político do Rio a ser eleito presidente da República. Antes dele, apenas Nilo Peçanha, o vice de Afonso Pena, ocupou a presidência, de 1909 a 1910, após a morte do titular.

O Rio vive a sua tragédia de cenas repetidas. “Nós nos sentíamos num túnel do tempo”, disse o procurador federal Eduardo El Hage, sobre o que pensaram os procuradores diante dos indícios do envolvimento do escritório de advocacia da primeira-dama na passagem do dinheiro de propina. O Rio está preso no túnel de um tempo circular que repete sempre as mesmas cenas.

Chega a ser bizarro ler como o governador mandou um email com o contrato do escritório de Helena Witzel com uma empresa que se comprometia a pagar valores mensais, e um grande adiantamento, à primeira-dama. “Observa-se que a primeira-dama, apesar de ser advogada e ser quem figurava como contratada, não participou diretamente do próprio contrato de prestação de serviços advocatícios”, diz a acusação. Além disso, não há sinal de serviços prestados.

Witzel tem muitas explicações a dar, mas Bolsonaro também deve respostas. Durante a campanha, o elo de ligação entre Bolsonaro e Witzel foi o senador Flávio Bolsonaro. Meses depois de ter sido eleito, o governador começou a indicar que sonhava com a cadeira de presidente. A um dirigente de empresa federal, logo no primeiro encontro, o governador contou que sua mulher falara da vontade de ter um apartamento na Zona Sul. E ele teria dito que ela deveria se acostumar a morar em palácios. Primeiro o Laranjeiras, depois o Alvorada. Histórias assim foram chegando a Brasília, até que o próprio governador admitiu que concorreria. Foi isso o que os separou.

Bolsonaro acusou Witzel de ter vazado investigações que estavam em segredo de justiça, do depoimento, depois desmentido, do porteiro do condomínio do presidente sobre o assassinato de Marielle. Acusou o governador de usar a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio contra seus filhos Flávio e Carlos. “Armaram há pouco tempo uma busca e apreensão na casa do meu filho Carlos, já com provas forjadas para jogar para cima dele, com dinheiro lá dentro, com armas, com drogas”, disse o presidente em uma transmissão ao vivo no dia 4 de janeiro, sem indicar a origem da informação.

Witzel, desde a primeira operação de busca e apreensão, culpa o presidente de o estar perseguindo; no começo, usando a Polícia Federal e ontem através da sub-procuradora Lindôra Araújo, que seria ligada a Flávio. O pastor Everaldo, que batizou Bolsonaro no Rio Jordão para atrair o eleitorado evangélico, foi ontem levado à prisão. O espetáculo exibido nesta sexta-feira pareceu ao cidadão do Estado do Rio um filme antigo. Com uma peculiaridade: é um faroeste sem mocinho.

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