Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, mas uma atitude rígida demais pode paralisar serviços públicos, sem enfrentar a expansão dos gastos obrigatórios
O
cenário para as contas públicas em 2021 está marcado por incertezas. Há pressão
para mudanças no teto de gastos, o mecanismo que limita o crescimento de
despesas não financeiras da União. O movimento vem tanto de fora quanto de
dentro do governo, como lembra Ricardo Ribeiro, analista político da MCM
Consultores. Para ele, “a flexibilização do teto não é certa, embora a probabilidade
seja crescente”.
O desejo de políticos e ministros fora
da equipe econômica de destinar mais recursos para obras públicas e para
programas sociais alimenta a pressão. Além disso, há também os problemas
causados pelo desenho do teto e por uma correção muito baixa do limite de
despesas para 2021.
A situação fiscal é delicada. Com o aumento de despesas para combater os
efeitos da pandemia e a perda de receitas devido ao tombo da atividade, a
dívida bruta subirá neste ano para a casa de 95% do PIB, tendo partido de 75,8%
do PIB em 2019, um nível que já era muito mais elevado do que o da média dos
emergentes.
Para grande parte dos especialistas em
contas públicas, é preciso começar um processo de ajuste fiscal mais forte já
em 2021. Sem isso, argumentam, os juros baixos não vão se sustentar. O risco
país pode subir, o câmbio pode se desvalorizar muito e os juros futuros podem
aumentar, tornando inviável manter baixa a Selic. Cumprir o teto seria decisivo
para reforçar o compromisso fiscal.
No meio político, porém, crescem as pressões pela flexibilização. Em entrevista para “O Globo”, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, defendeu mais investimentos em infraestrutura básica, principalmente no Norte e no Nordeste. Para Ribeiro, da MCM, “levar água, saneamento e moradia ao Nordeste e engordar o Bolsa Família, transformando-o no Renda Brasil, são argumentos poderosos a favor dos apelos” destinados ao ministro da Economia, Paulo Guedes, por Marinho e pelo senador Flavio Bolsonaro - em entrevista a “O Globo”, o filho do presidente disse “Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações [obras paradas] que têm impacto social e na infraestrutura
Para Ribeiro, “a pressão pelo ‘dinheirinho’ adicional é crescente e tende a ficar mais volumosa quando, ao fim de agosto, o projeto de lei orçamentária da União for enviado ao Congresso”. O envio da proposta “provocará, muito provavelmente, uma chiadeira generalizada no Congresso e dentro do governo, pois o aperto orçamentário de 2021 ficará escancarado”, diz ele. “Há evidente apoio político à ideia, dentro e fora do governo. E se Jair Bolsonaro fosse totalmente avesso à ideia já teria enquadrado Rogério Marinho”, escreve Ribeiro, observando, porém, que “Paulo Guedes, Rodrigo Maia [o presidente da Câmara dos Deputados] e o receio da reação negativa do mercado ainda são barreiras poderosas à flexibilização”.
A pressão, como se vê, não é pequena.
Além disso, problemas do teto colaboram para o questionamento do mecanismo. A
regra tem méritos, tendo sido fundamental para melhorar as expectativas quanto
à trajetória das contas públicas de longo prazo. Ele permitiu um ajuste
gradual, sem que fosse necessário uma consolidação fiscal abrupta. Mas o teto
também tem defeitos. O principal problema fiscal do país é a rigidez do
Orçamento, marcado pelo crescimento contínuo de despesas obrigatórias, como
aposentadorias e gastos de pessoal. O governo tem liberdade para manejar menos
de 10% dos gastos. A reforma da Previdência reduz o ritmo de expansão dos
gastos com aposentadorias, mas não o interrompe. Também é crucial enfrentar a
elevação das despesas de pessoal.
Na emenda do teto, estão previstos
gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do mecanismo, com medidas
que impedem reajuste dos salários dos servidores e restringem a criação de
cargos, por exemplo. A questão é que, por um erro de redação, não se consegue
acioná-los. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) não pode conter despesas
que ultrapassem os limites do teto, como lembra Felipe Salto, diretor-executivo
da Instituição Fiscal Independente (IFI). Os gatilhos não podem entrar em vigor
pelo envio de um projeto que preveja o estouro do teto, ainda que isso leve à
elaboração de um orçamento irrealista, com um corte muito expressivo de
despesas discricionárias (como custeio da máquina e investimentos).
Para 2021, o teto aumentará apenas 2,13%, porque essa foi a variação do Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) nos 12 meses até junho de 2020.
Para cumpri-lo, será necessário espremer mais os gastos discricionários. O
problema é que essas despesas poderão ficar abaixo do limite que compromete o
funcionamento da máquina pública, estimado em R$ 89,9 bilhões pela IFI. Com
isso, pode haver uma paralisação de atividades do setor público, além de um
corte ainda mais drástico dos investimentos, sem a adoção de medidas
verdadeiramente necessárias para controlar a expansão de despesas obrigatórias,
como os gastos com pessoal.
Para Salto, é preciso encontrar uma
saída para descumprir o teto e fazer com que os gatilhos sejam acionados,
preservando a regra. Há dois anos, o governo Michel Temer, em conversas com o
Tribunal de Contas da União (TCU), chegou a uma saída para o descumprimento da
“regra de ouro”, que impede a emissão de dívida para pagar despesas correntes.
“Esse precedente permite imaginar uma saída similar para o teto que possibilite
não jogar no lixo os gatilhos ali previstos”, diz ele. Salto estima que acionar
os gatilhos previstos na emenda do teto garantiria um ajuste de algo como 0,5
ponto percentual do PIB em dois anos, “dando tempo e fôlego para o Executivo e
o Congresso encontrarem uma solução definitiva”. Para ele, “o essencial é ter
claro que o problema do crescimento da despesa continua posto e precisará ser
sanado”.
A Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) Emergencial do governo contempla o disparo dos gatilhos no caso de
descumprimento da “regra de ouro”, mas a aprovação demandaria tempo e capital
político, num momento em que as discussões tendem a se concentrar na reforma
tributária.
Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, colocando em xeque os juros baixos. Uma atitude rígida demais, porém, pode paralisar serviços públicos essenciais e jogar o investimento para níveis ainda mais baixos, sem que o crescimento das despesas obrigatórias seja de fato enfrentado. Escapar dessas armadilhas será crucial para garantir a sustentabilidade fiscal e permitir a recuperação da atividade, num país que registra desde 2014 um desempenho econômico horroroso.
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