quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Ascânio Seleme - Onde mora o perigo


- O Globo

Presidente já percebeu que seu governo precisa produzir marcos

O presidente Jair Bolsonaro fez política trivial quando desautorizou e ameaçou com um cartão vermelho a equipe econômica, por ter sugerido taxar as aposentadorias e cortar benefícios de idosos e pobres com deficiência para fazer caixa para o programa Renda Brasil. Seu gesto foi tratado como mais do mesmo, como inevitável, pois, se a proposta prosperasse e fosse enviada ao Congresso (para ser derrotada), seria uma catástrofe política a dois meses das eleições municipais. Verdade, foi um gesto político, mas foi forte, consequente e, convenhamos, correto.

Alguém pode dizer que Bolsonaro agiu dessa forma apenas para não se ferrar. Está certo. Mas, se houver alguém aqui que goste de se ferrar, que levante a mão. Pode ter sido um simples instinto de autopreservação, sem dúvida. O fato é que a ação rendeu pelo menos um resultado concreto, os aposentados e excluídos não vão pagar a conta do ato eleitoreiro. Mesmo que se possa atribuir ao capitão um sem-número de equívocos, como o próprio Renda Brasil, neste caso é forçoso reconhecer seu mérito.

Ele foi além. Ao proibir “a palavra” Renda Brasil, devolveu ao dicionário político o Bolsa Família, mesmo que temporariamente. Mais do que dar um chega para lá em Paulo Guedes, Waldery e companhia, Bolsonaro reconheceu que o seu era um simples “copia e cola” do programa petista que ajudou o partido de Lula a ganhar eleições. Ainda assim, detonou o plano que a turma do Guedes bolou para engordar o seu. Mesmo não sendo lá essas coisas em cálculo político, Bolsonaro entendeu que, de imediato, colheria apenas perdas políticas importantes, sem nenhum ganho acessório.

Jogou para a plateia, claro. Não fosse assim, chamaria Paulo Guedes no escurinho do Palácio do Planalto e mandaria seu time recuar. Não há qualquer problema em jogar para a torcida, faz parte do cardápio. O problema é o depois. Embora diga o contrário, é evidente que, mais cedo ou mais tarde, o presidente vai exigir um programa social para chamar de seu, apesar de ter preferido recuar para não destratar aposentados e pensionistas. Como a receita liberal não vai mesmo conseguir encontrar recursos para tanto, o cartão vermelho virtual dado a Guedes pode virar real.

Bolsonaro já percebeu que seu governo precisa produzir marcos. Por ora, ao contrário, sua gestão é reconhecida pela ineficiência e pela bateção de cabeças, além dos insultos e agressões produzidos em série contra instituições e contra a democracia. Desde sua posse, seu único trunfo foi a reforma da Previdência, cujo mérito é muito mais de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, como se sabe.

O caso do incêndio sem precedentes no Pantanal é um exemplo da falta de eficácia governamental. Somente depois de dois meses de queimadas, os primeiros sinais de apoio foram dados pelo Planalto aos governadores do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul. E, ainda assim, por ora, os sinais são apenas retóricos. O presidente prometeu “recursos ilimitados”, embora antes tenha negado o apoio do Exército no combate ao fogo, como denunciou o secretário da OAB-MT, Flávio José Ferreira.

O capitão sabe que a alta nos seus índices de popularidade, que nem é tão grande assim, deve-se exclusivamente ao pacote de ajuda aos mais pobres durante a pandemia. Um mito, na verdade. Porque quem deu o auxílio emergencial aos brasileiros necessitados foi o Estado, não o governo. Mas isso pouco importa para Bolsonaro, porque foi sob sua guarda que os cheques foram assinados. E é assim que veem e entendem os que receberam os R$ 600 ao longo dos últimos três meses.

Mesmo com o Renda Brasil provisoriamente sepultado, segue em vigor o Bolsa Família do PT, mas cujos cheques quem assina hoje é Bolsonaro. Ainda assim, é bastante provável que, mais adiante, queira assinar outros cheques, mais gordos, para larga distribuição, sobretudo no Nordeste. A questão é onde ele vai buscar dinheiro para garantir fundos a esses cheques. É aí que mora o perigo.

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