As meninas e meninos
abandonados pela escola entregarão comida por aplicativo na próxima emergência
sanitária
O Brasil, pelo contrário, certamente terá uma Geração Covid —isto é, milhões de crianças e adolescentes que carregarão, pela vida afora, o fardo de um ano sem escola. Segundo os indícios disponíveis, quase 30% deles não voltarão jamais à sala de aula. São, em geral, estudantes do ensino médio perdidos para sempre. Muitos outros sofrerão rupturas definitivas na sua capacidade de aprendizagem.
Escolas são redes de proteção social. Na Índia, há fortes sinais de aumento de 20% nos casamentos de meninas pré-adolescentes provocado pelo longo fechamento das escolas e, ainda, de um novo salto no trabalho infantil. No Brasil sem aulas, milhares de adolescentes pobres são cooptados pelas facções criminosas ou capturados por redes de prostituição de menores. Eles não entrarão nas estatísticas fatais da epidemia.
"Nas tragédias, o protocolo da
humanidade é salvar primeiro as crianças", lembrou Viviane Senna, que não
teme dizer verdades inconvenientes. A reportagem do El País (21 de setembro)
revela que os professores espanhóis resolveram seguir o "protocolo da
humanidade". Também mostra que, com todas as diferenças, o sistema público
de ensino deles partilha muitas das carências do nosso. A verdadeira distinção
está em outro lugar: por aqui, o "protocolo" não é salvar as
crianças, mas seguir o comando das corporações. Os médicos peritos do INSS
abandonaram os idosos pobres na rua; os professores ignoram o desastre
silencioso que espreita seus alunos.
A pandemia de crianças sem aula é uma ameaça social
ainda maior que a representada pelo coronavírus. Na Espanha, a retomada escolar
prossegue mesmo com uma segunda onda da epidemia —assim como na França. Aulas
presenciais suspensas "até a vacina"? A palavra de ordem sintetiza
nossa tragédia civilizatória.
Os sindicatos de professores invocam a
ciência para fazer política corporativa. Mas a OMS, junto com a Unicef e a
Unesco, apela aos governos pela reabertura das escolas —e detalha protocolos
sanitários para diferentes estágios da epidemia. "A maioria das evidências
de países que reabriram escolas ou nunca as fecharam sugere que as escolas não
foram associadas a aumentos significativos na transmissão comunitária",
escreve a OMS. Mas, como crianças não votam, nossos políticos preferem ignorar
o apelo, imolando os direitos delas no sagrado altar da eleição.
Bruno Covas exemplifica o intercâmbio
indecente. Na sua valsa infinita do adiamento, ele "estuda" realizar
um censo sorológico entre professores e funcionários, para saber quantos já
tiveram a doença, estão imunes e podem voltar às escolas. O prefeito conhece de
antemão o resultado: como os anticorpos decaem em pouco tempo, tornando-se
indetectáveis por esse tipo de teste, a "ciência" oferecerá a
conclusão de que não existe pessoal suficiente para reabrir a rede municipal.
CQD.
Os professores espanhóis sanitizam salas
de aula e traçam com setas amarelas os roteiros de circulação nos edifícios
escolares. Estão na célebre "linha de frente", como médicos,
enfermeiros, motoristas de ônibus e comerciários. A Geração Covid ficará como
testemunho histórico da crise epidemiológica brasileira. As meninas e meninos
abandonados pela escola entregarão comida por aplicativo na próxima emergência
sanitária, quando o Brasil já terá esquecido o criminoso negacionismo de Bolsonaro.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluir