sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Bernardo Mello Franco - Sabujismo orgulhoso

- O Globo

No governo Bolsonaro, não basta ser servil. É preciso ostentar a subserviência como prova de lealdade. Ontem dois ministros se humilharam em público para agradar ao chefe. Encolheram as próprias biografias e avacalharam as pastas que deveriam comandar.

Eduardo Pazuello, dublê de paraquedista e ministro da Saúde, recebeu Bolsonaro após ser desautorizado sobre a compra de vacinas. Sem corar, ele reconheceu a falta de autonomia no cargo. “Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”, explicou.

Seguiu-se um diálogo constrangedor entre o general da ativa e o capitão reformado. “A gente tem um carinho”, disse Pazuello. “Opa, tá pintando um clima”, animou-se Bolsonaro. O ministro está com Covid, mas rompeu o isolamento para gravar com o presidente. Sem máscaras, os dois voltaram a fazer propaganda da cloroquina.

Mais cedo, Bolsonaro foi ao Itamaraty. Em discurso para formandos do Instituto Rio Branco, Ernesto Araújo deu uma aula de antidiplomacia. A turma foi batizada de João Cabral de Melo Neto. “Modestamente, me considero também as duas coisas, diplomata e poeta”, arriscou o chanceler, sem modéstia alguma.

Ao microfone, o ministro se atreveu a atacar o homenageado. Disse que ele “dirigiu-se para o lado errado: para o lado do marxismo e da esquerda”. Perseguido por outros Ernestos, o autor de “Morte e vida severina” chegou a ser afastado do Itamaraty, em 1953.

“A diplomacia pode ser lírica, pode ser dramática, mas também pode ser épica”, prosseguiu o ministro, repetindo palavras do discurso nazista de Roberto Alvim. Na sequência, ele passou a elogiar Bolsonaro. “Nosso presidente conhece e ama esse povo e nos ensina a conhecer e a amar esse povo”, derramou-se.

Sem disfarçar o ressentimento, o chanceler reclamou da atenção dada a cientistas e intelectuais “prudentes e sofisticados”. Ele disse liderar uma “política externa do povo brasileiro”, inspirada nas ideias do capitão e inimiga de um imaginário “complexo marxista-isentista”.

Num breve surto de lucidez, Ernesto admitiu que o Brasil de Bolsonaro se tornou um pária na comunidade internacional. Mas não deu o braço a torcer. “Talvez seja melhor ser esse pária, deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas”, disse, orgulhoso do próprio sabujismo.

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