sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Míriam Leitão - Congresso subserviente

- O Globo

Assunto constitucional não é interna corporis, é assunto constitucional. Pode-se alterar a Constituição, mas não descumpri-la. Esse é o ponto que está em questão no esforço dos presidentes do Senado e da Câmara de permanecer no cargo. Eles torcem para que o ministro Gilmar Mendes decida que a reeleição seja uma questão interna. O problema é que se a liminar do ministro disser apenas isso há o risco de se criar o seguinte e perigoso precedente: mudar o regimento interno para alterar-se a Constituição.

O STF será usado para a realização de ambições pessoais, mais explícitas no caso do senador Davi Alcolumbre, de permanecer onde está. Alcolumbre tem feito tudo, até calar-se diante do abjeto escândalo das cuecas e preparar o forno de pizza para assim ficar bem com todo mundo.

A análise de parlamentares e de um ministro do Supremo ouvidos pela coluna é a de que o relator pode dizer que é interna corporis e isso será interpretado como licença para apenas alterar o regimento interno das Casas.

— Questão constitucional nunca será um problema interna corporis — alerta um ministro do STF.

— A Constituição é claríssima, não cabe interpretação, não é possível a reeleição. Vão pegar o termo em latim que provavelmente estará na liminar para de forma apressada fazer o rito de alteração do regimento interno. Mas se o ato interno é regido pela Constituição esse não pode ser o caminho. Se o constituinte achou por bem normatizar, só por emenda pode ser alterada — explicou um parlamentar.

O Congresso tem dado nos últimos tempos um show de subserviência, pelas mais variadas razões e interesses. Ao fazer isso, deixa de cumprir seu papel com a independência prevista na Constituição. Na sabatina do agora ministro Kassio Nunes, quase todos fugiram ao seu papel. A sabatina não é um ato de louvação, mas sim uma forma de permitir que o país conheça quem tomará decisões que influenciarão nossas vidas nos próximos anos e décadas. O advogado Kassio Nunes abriu a fala usando um termo caro aos evangélicos. Falou que sentiu essa nomeação como um “chamado”. Disse que é católico e citou a bíblia e o rezar de mãos postas. Há ministros no Supremo extremamente religiosos que não usaram o nome de Deus para dissolver resistências. Isso não é argumento num estado laico. Ensaboado, escorregou de várias questões, mas, a não ser raras e valiosas exceções, não foi sabatinado. Foi bajulado.

Esta semana passaram sem contestação no Senado os nomes de três militares para a Autoridade Nacional de Proteção dos Dados. Isso não faz sentido. Teriam que ser nomes técnicos com conhecimento suficiente e vida profissional dedicada à questão em si. Os militares não podem ser vetados por serem militares, mas não devem ter maioria nessa agência.

O Congresso aceitou todas as pressões do Planalto para adiar a análise dos vetos presidenciais para que o governo consiga arregimentar mais apoios. Um desses vetos é aguardado por inúmeras empresas para fazerem seu planejamento de 2021.

Recentemente, o relator do Orçamento, ao sair do Ministério da Economia, disse que só terminaria seu trabalho quando o ministro Paulo Guedes concordasse com tudo. Ele estava tentando criar um programa social que o governo não consegue, mas agia como se fosse do Executivo. O Orçamento passa pelo Congresso para que seja analisado, alterado, confirmado ou acrescido dentro das regras fiscais, mas a relatoria não é o ato de buscar carimbos no Ministério da Economia. O senador bolsonarista Marcio Bittar foi escolhido a dedo para seguir ordens. Ele inaugurou seu mandato no Senado assinando junto com o senador Flávio Bolsonaro uma proposta do fim do mundo: queria acabar com toda a reserva legal da Amazônia. Ou seja, pôr a floresta abaixo. Essa delirante proposta acabou arquivada mas só a assinaria quem estivesse disposto a tudo para agradar o governo.

Os poderes são harmônicos, mas independentes. Quando um se submete ao outro está traindo seu papel institucional. As negociações, os acordos, a harmonia devem existir, mas não para encobrir malfeitos de parlamentares, blindar a família do presidente, atender aos interesses continuístas. O Congresso está escolhendo ser a casa do “sim, senhor” para um presidente que tem demonstrado não entender quais são os limites do poder da presidência numa democracia. Isso torna tudo mais perigoso.

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