domingo, 18 de outubro de 2020

Luciano Huck* – Bússola

- Folha de S. Paulo

Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha

Sigo achando que no espaço de uma geração não iremos produzir tênis mais baratos que a China, tampouco componentes eletrônicos mais competitivos que Taiwan. Mas sigo também acreditando que nenhum outro país no planeta tem o potencial natural que o nosso.

Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha. Assim sendo, já está mais do que na hora de entendermos que pensar verde, além de fazer bem para nossa consciência, fará ainda mais pelos nossos bolsos. Já cheguei a tratar deste tema em outro artigo aqui nesta Folha, mas o noticiário e a conjuntura exigem que o debate vá adiante.

Minha curiosidade se divide entre os dois séculos e de tudo o que o mundo passou nestas últimas décadas.

Acabo de ler o livro “Brasil, Paraíso Restaurável”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Ele traz posições que permitem ampliar ainda mais o pensamento do futuro do Brasil como potência verde.

Está claro que a bússola mudou depressa na virada do milênio.

Duas décadas atrás, as nações guiavam-se pelas metas de crescimento da produção. Aprendemos a medir sucesso ou insucesso na economia por meio das taxas de crescimento do PIB.

Hoje muito se discute se esta métrica já não deveria ter ficado no século passado. Ainda não temos algo confiável e aceito por todas as economias do planeta como um marcador mais moderno, mais conectado com os anseios e necessidades das sociedades, países e do planeta como um todo. Mas vale registrar o que já esta acontecendo —e refletir sobre isso.

Na Alemanha, por exemplo, o rumo mudou de norte em 2005, quando o governo passou a perseguir o objetivo central de transitar para uma economia limpa. Desde então, todo o planejamento estratégico do país é montado para cumprir metas quantitativas relacionadas a combater o aquecimento global. A União Europeia passou a seguir o modelo a partir de 2007.

O crescimento da produção não foi esquecido. Mas foi inteiramente subordinado ao Plano 20-20-20: 20% de aumento na produção de energia renovável; 20% de diminuição no consumo de energia; 20% menos emissões de gases de efeito estufa.

A meta, adotada em 2007, foi cumprida antes do prazo de 2020. Neste ano, em plena crise da Covid, foi substituída por outra, ainda mais ambiciosa: o Green Deal. Esta meta central da União Europeia já não é apenas um instrumento de planejamento. Foram alocados 2 trilhões de euros —todo o plano de ajuda econômica para vencer a recessão— como instrumento para se alcançar uma economia sem emissões positivas em 2050.

Em pouquíssimas palavras: o futuro da economia da União Europeia está sendo associado à criação de uma economia limpa. Todo o dinheiro, todo o esforço econômico, toda a política social, todo o desenho de organização do mercado.

Mas isso não é só um fenômeno europeu. Vejamos a China. Se nas últimas décadas foi a grande vilã no litígio produção versus sustentabilidade, ela tem agora um objetivo central da ação econômica a que chamaram de “Uma Civilização Ecológica”.

O objetivo norteia o Plano Quinquenal 2016/2021, que centraliza a ação interna do governo: 10 das 13 grandes metas nacionais estão relacionadas ao meio ambiente. Já a política externa tem como norte o programa intitulado “Cinturão e Rota” – com o objetivo central de levar ao mundo a civilização proposta.

Essa nova bússola de grandes governos mostrou-se capaz de dar suporte a uma monumental mudança na avaliação para alocação de capitais privados, em escala planetária. A estimativa atual é a de que existe algo em torno de US$ 30 trilhões (cem vezes as reservas brasileiras) de investimentos privados que só podem ser aplicados em projetos que levem ao equilíbrio ambiental.

O roteiro para aplicação tem o nome de cláusulas ESG (Environmental, Social, Good Governance –Ambiental, Social e Boa Governança, em português). É acatado pelos maiores fundos de pensão, seguradoras, grandes fundos de investimento – e por uma infinidade de bancos e empresas. Todos optando voluntariamente por aportar dinheiro segundo essas cláusulas.

Os frutos das aplicações na economia real são cada vez mais visíveis. A produção de energia solar e eólica foi multiplicada por 150 entre 2000 e 2020. Neste ano, por causa da recessão, a previsão é de que as fontes renováveis como um todo superem o carvão –a fonte de energia mais comum desde o século 18, além de ser a mais poluente– na matriz elétrica mundial.

Nos Estados Unidos a mudança para o planejamento estratégico a partir de metas ambientais foi já adotada em 24 estados. O governo federal, sob Donald Trump, ficou de fora. Mas vale notar que o ponto número um do programa do candidato democrata Joe Biden é fazer exatamente o mesmo que a União Europeia e a China fazem.

E o Brasil? O país vive de opostos. De um lado é o país onde a natureza produz mais vida no mundo —e onde, ao longo dos séculos, empresários, empreendedores e pessoas de todos os estratos sociais moldaram uma matriz energética que é a mais limpa do mundo.

Do outro, é o país mais distante da adoção das metas nacionais de transição para uma economia limpa. O governo federal planeja e –pior– executa na direção contrária. Governos estaduais hesitam em abraçar essa agenda. Os candidatos a prefeito deveriam ter em seus programas como efetivamente pretendem melhorar a situação ambiental de sua cidade —mas em geral não têm.

Andamos na contramão do mundo por gosto, não por precisão. Não na economia real, mas no quadro institucional. A situação só não é pior porque, no setor privado, muitas grandes empresas têm se movimentado, saído da inação para ações concretas na tentativa de proteger nossa imagem mundo afora e a nossa economia.

Assim estamos jogamos pela janela aquela que é uma oportunidade secular para avançar. No século 19, nos faltou carvão. Na maior parte do século 20, nos faltou petróleo. Não falta sol, nem vento, nem plantas que fornecem combustível que não produz efeito estufa. Temos tudo para a economia do século 21.

A matriz energética que a União Europeia, a China e, dependendo das eleições, os Estados Unidos querem para 2050 pode ser alcançada no Brasil em menos de uma década. O país tem a base real para ser a grande economia limpa do planeta.

Mas, no ritmo que a banda toca, corremos um seríssimo risco de sermos enquadrados pelas três maiores economias do mundo como um país irresponsável na luta pelo equilíbrio ambiental. Nos últimos anos, detentores de grandes capitais vêm tentando convencer as autoridades brasileiras que estão fazendo o pior negócio do mundo ao chutar o dinheiro ESG. Se houver união dos governos das três grandes economias nesse jogo de pressão, restrições mundiais à produção brasileira entrarão muito depressa no horizonte.

Temos de mudar, e mudar bem depressa. Não se trata de programa para um governo, mas para a Nação. Um sonho maior, um plano de metas ambiental. De braços dados com o melhor do setor privado para executar seu papel essencial para que a mudança aconteça. Ecoar as boas ideias. Na União Europeia e no programa de Biden, o investimento em transição ambiental surge como fonte de empregos e de uma economia de serviços na área rural. De maior justiça social.

O Estado brasileiro foi montado para resolver os problemas de desenvolvimento de 1950, concentrando capitais para grandes projetos. Este objetivo de futuro já ruiu. Perdemos tempo, mas –graças à nossa natureza fértil, enorme potencial energético renovável e diversidade de biomas– ainda temos oportunidade. Temos a sorte ser donos de um passe fundamental para a nova era. Não podemos desperdiçar. Precisamos mudar –pois nos interessa e nos orgulha– ou seremos mudados à força e com vergonha.

Infelizmente hoje o Brasil não lidera nenhuma agenda global, além da tragédia da Covid-19, mas estou seguro de que, com uma mudança clara de caminho, podemos exercer mais rápido que o período de uma geração o papel de grande Potência Verde do planeta. Um país altamente produtivo, de fato comprometido com o meio ambiente e gerando riquezas para combater suas desigualdades. Eu acredito.

 *Luciano Huck, apresentador de TV e empresário

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