domingo, 15 de novembro de 2020

Luiz Sérgio Henriques* - Os fenômenos mórbidos da crise

- O Estado de S.Paulo

O assustador número de mortos na pandemia não parece comover Trump nem Bolsonaro.

Com sua torrente incomum de surpresas e sobressaltos, os dias em curso parecem confirmar que estamos em meio aos fenômenos mórbidos que, segundo a frase famosa, se colocam entre o velho que morre e o novo que não consegue nascer. Longe de virar jargão, a frase descreve situações por certo inéditas e espantosas. Comecemos pelo fato de que um dos dois grandes partidos que vertebram a democracia norte-americana acaba de ser definitivamente tomado de assalto por uma extrema direita subversiva, “leninista”, a qual, impossibilitada eleitoralmente de levar a cabo a fatídica obra de esvaziamento das instituições, ameaça uma das regras mínimas da democracia, a saber, o exercício da regular alternância no poder.

Não é nada fácil para esse tipo de extremismo ter êxito na empreitada, mas o simples fato de tentá-la já é um mau presságio. Indica, antes de mais nada, alto grau de confiança na novíssima estratégia de erguer despudoradamente uma realidade paralela a partir de “fatos alternativos”. Para tanto se deve metodicamente corroer o bom senso e degradar o senso comum, implodindo a realidade objetiva e os modos compartilhados de vivenciá-la. Tudo o que é sólido se desmancha numa sequência estonteante de conspirações, irrealidades, fantasmagorias. A Terra não é redonda, ninguém jamais pisou na Lua e Trump não perdeu as eleições, pelo menos se forem contados os votos da sua preferência. E com a certeza dos simples muitos se associarão a essas sandices.

Muitos, mas não todos e menos ainda a maioria. Por isso, neste tempo de situações patológicas, a estratégia da direita “revolucionária” – não confundir com a direita constitucional, que participa normal e legitimamente do jogo democrático – renuncia previamente ao argumento racional, só ele capaz de agregar consensos e sustentar as boas sociedades, mesmo quando se transformam. Não diria que, para os “leninistas” de direita, tudo seja política, mas certamente tudo é ideologia: o mundo, assim, sem maiores escândalos, pode ser impunemente virado do avesso ou percebido de ponta-cabeça. E para que esse objetivo insano seja atingido se requer uma alucinada obra de regressão cultural que, ao fim e ao cabo, afaste as pessoas das modernas promessas de autonomia e as torne prisioneiras de um passado de fábula. 

Veja-se, para dar um só exemplo, a realidade dos dois maiores países ocidentais – Estados Unidos e Brasil –, que desgraçadamente experimentam a associação entre governos extremistas e pandemia do novo coronavírus. O assustador número de mortos em nenhum momento parece comover Donald Trump, Jair Bolsonaro e as respectivas equipes dirigentes. Falece a esse tipo de governante, por princípio, a capacidade de “sentir com”, a inspiração de falar a verdade à população, de mobilizá-la para usar os recursos disponíveis, seja o distanciamento social, seja uma simples máscara. Estão alheios até mesmo ao “conservadorismo com compaixão” de épocas mais previsíveis; o que lhes importa é que a máquina econômica continue a girar, como se, bem ali ao lado, a pilha de mortos não importasse ou só merecesse um “lamento” vazio e falso.

Pior: dirigentes desse tipo agem conscientemente para promover a involução cultural de que se nutrem e com que se afirmam. Ao longo dos meses ambos apregoaram curas falaciosas e medicamentos nocivos, como no caso da cloroquina (antes, o curandeirismo do presidente Bolsonaro já se manifestara com uma certa pílula do câncer, o que o singulariza como um reincidente problemático). As vacinas em desenvolvimento são tratadas como matéria de política rasa – de ideologia –, de sorte que, como subproduto indesejado, se dissemina entre muitos uma atitude contrária à vacinação e à própria ciência. Arenga-se inutilmente, irracionalmente, sobre a “nacionalidade” do vírus, como se a irrupção deste e de outros vírus não fosse catástrofe prevista e até potencializada por um conjunto de práticas deletérias, entre as quais o desmatamento, em que nosso país tem tido um protagonismo acabrunhante. 

Em tempos mais convencionais, há um nexo entre democracia, conhecimento e elevação intelectual generalizada, um dos poucos indicadores certos de que o gênero humano progride e consegue disseminar, ainda que desigualmente, os frutos deste seu progresso. Inversamente, em tempos atribulados, autocracia, obscurantismo e rebaixamento intelectual andam de mãos dadas, golpeando a convivência civil e a boa política, que assim perde a capacidade de estimular o confronto de paixões e interesses, ao mesmo tempo que recompõe o terreno comum entre os que se confrontam.

A vitória de Joe Biden e os bons ventos que inspira, ao prenunciarem as dificuldades da direita “revolucionária”, não constituem só um fato político, mas têm alcance, por assim dizer, moral e cognitivo. Se tivermos sorte, marcam o início do fim de um ciclo de pesadelos antimoderno ou típico de uma modernidade reacionária. De algum modo nos permitem ver além dos fenômenos patológicos do presente e devolvem a esperança em nossa comum humanidade.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil 

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