sexta-feira, 20 de março de 2020

Fernando Gabeira - Um vírus mudando o mundo

- O Estado de S.Paulo

A covid-19 precipitou um movimento que já era irreversível: a passagem para o virtual

Não é fácil escrever artigos em tempos de pandemia. Os fatos são dinâmicos e nos ultrapassam. Eles são graves e tornam irrelevantes os nossos critérios de importância.

Romances como A Peste, de Camus, apesar de escrito em 1947, conseguem tratar de temas universais como solidariedade e sentimentos mesquinhos envoltos na condição humana. Era interessante e até risível a velha tese da teoria do caos: tudo no universo está interligado e o bater de asas de uma borboleta altera o mundo. Se se substituir a borboleta por um morcego que acabou comido por um pingolim, por sua vez comido por um homem, foi um bater de asas que não só alterou o mundo, mas o fez de forma profunda e definitiva.

Quem diria que somos tão frágeis e toda a arrogância da civilização humana não é mais que ilusão passageira. Não há tanto espaço para lamentações. É preciso definir o que importa. Claro que o fato de o presidente da República ser um ignorante tem um peso. Isso será resolvido a seu tempo. No momento é preciso esquecê-lo em nome do essencial: que fazer?

As fronteiras estão se fechando na Europa e na América Latina. Vamos fechar as nossas? Todos os casos vieram da Europa e dos EUA. Algumas fronteiras que conheço são bastante porosas. Mesmo fechando-as, vai passar muita gente.

A primeira é a fronteira com a Venezuela, em Pacaraima. O sistema de saúde bolivariano entrou em colapso há muito tempo. Com isso tensiona a Colômbia e o Brasil. Roraima está no limite. Quando vejo centenas de pessoas atravessando a fronteira colombiana usando máscaras, imagino que muitos virão também para o Brasil.

Eliane Cantanhêde - Coisa de doido

- O Estado de S.Paulo

País parado e o vírus matando pessoas e empresas. É hora de o ‘03’ chutar a China?

Enquanto o ministro Luiz Henrique Mandetta contrariava a percepção geral e chamava o presidente de “grande timoneiro” da reação ao coronavírus, indiretamente comparando Jair Bolsonaro a Mao Tsé-Tung na revolução cultural chinesa, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) dava mais uma canelada infantil, mas doída, na China, principal parceiro comercial do Brasil. Ao falar da pandemia, o “03” acusou que “a culpa é da China”.

Assim, o deputado piorou ainda mais as coisas não só para o papai, que não anda nos seus melhores dias, mas principalmente para o Brasil, que está parado, com Bolsas derretendo, dólar disparando, as pessoas trancadas em casa, os shoppings, academias, bares e restaurantes fechados e as empresas em sistema de “home office”, num ambiente internacional de tragédia. O pai Jair demorou a compreender e se interessar por essa chatice chamada realidade. E o filhote Eduardo ainda está no mundo da lua.

“Quem assistiu Chernobyl vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa”, sugeriu o ex-quase embaixador do Brasil em Washington e atual presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, papagaiando o que o ídolo Donald Trump diz nos Estados Unidos. E não é que bolsonaristas e terraplanistas compram fácil, fácil, essa versão do complô chinês para devastar o mundo? Coisa de doido.

Pouco diplomático, vá lá, mas com boa dose de razão, o embaixador chinês em Brasília reagiu e não dourou a pílula. Classificou as palavras do deputado de “extremamente irresponsáveis” e matou dois coelhos com uma cajadada só, ao dizer que o filho do presidente, “ao voltar de Miami, contraiu um vírus mental que está infectando a amizade entre nossos povos”.

Bernardo Mello Franco - Reinações de Bananinha

- O Globo

Mourão andava calado, mas voltou à cena para ironizar o filho do presidente. O vice ressurge no momento em que Bolsonaro enfrenta panelaços e pedidos de impeachment

No momento em que o Brasil começa a contar mortos pelo coronavírus, o deputado Eduardo Bolsonaro resolveu fabricar uma crise diplomática. Na noite de quarta, o Zero Três culpou a China pela pandemia. No mesmo tuíte, sugeriu a derrubada do regime comunista, que governa o país há 70 anos.

A provocação enfureceu a embaixada chinesa em Brasília. Não era para menos. A China é o maior parceiro comercial do Brasil. No ano passado, foi responsável por 65% do superavit na nossa balança comercial. Em resposta ao ataque, o embaixador Yang Wanming acusou Eduardo de imitar seus “queridos amigos”. Referia-se ao presidente americano Donald Trump, que politiza a doença e espalha preconceito contra os asiáticos.

Além de ofender os chineses, a molecagem do Zero Três irritou o empresariado e a cúpula do Congresso. Em vez de esfriar a crise, o ministro Ernesto Araújo reforçou a grosseria. Numa nota desastrada, ele cobrou retratação do agredido e passou a mão na cabeça do agressor. A atitude reforçou seu status de chanceler decorativo, que desonra o Itamaraty para adular o filho do chefe.

Merval Pereira - A gripe espanhola

- O Globo

‘Tornou-se calamidade de proporções desconhecidas nos nossos anais epidemiológicos’, conta Pedro Nava em ‘Chão de ferro’

Pedro Nava, médico e escritor morto em 1984, foi o maior memorialista brasileiro, autor de sete livros: Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas, O Círio Perfeito, Cera das almas, póstumo. Em Chão de Ferro, no Capítulo II denominado “Rua Major Ávila 105”, ele relata a experiência com a pandemia da gripe espanhola no Rio de Janeiro de 1918. Seguem alguns trechos:

“Synochus catarrhalis era o nome de uma doença epidêmica, clinicamente individualizada desde tempos remotos e que periodicamente, cada vez com maior extensão, assola a humanidade. Essa extensão está relacionada à velocidade sempre crescente das comunicações. Seu contágio já andou a pé, a passo de cavalo, à velocidade de trem de ferro, de navio e usa, nos dias de hoje, aviões supersônicos – espalhando-se pelo mundo em dois, três, quatro dias.

Quando passou pela Itália (na epidemia de 1802 que tão duramente castigou Veneza e Milão), recebeu nome que fez fortuna: influenza. O termo pegou, passou para linguagem corriqueira e lembro de tê- lo ouvido empregado por minha avó materna, em Juiz de Fora, na minha infância – a Dedeta não pode ir às Raithe porque está de cama com uma influenza; ou – a Berta está calafetada dentro do quarto, de medo da influenza.

Maria Cristina Fernandes – O vírus e o desemprego contam seus mortos

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Se faltar verba no SUS, não será possível conter pandemia. Sem proteção aos desempregados se reproduzirá a equação que leva ao aumento da mortalidade. Assim como o contágio, a crise é exponencial

De todos os alarmes desde o início da crise do coronavírus, nenhum se propagou mais rapidamente do que o áudio de uma reunião no Instituto do Coração, em São Paulo, com especialistas do comitê de contingenciamento da doença no Estado que lidera os casos nacionais da covid-19, nome da doença provocada pelo vírus. Havia 200 pessoas no auditório e foi pelo relato a colegas, gravado em áudio por um dos médicos que convocou a reunião, que seu conteúdo se espalhou pelo país: a pandemia demandaria um número de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) que São Paulo não dispõe e nem tem como dispor.

A informação de que o Estado mais rico da federação está desaparelhado para enfrentar a mais agressiva pandemia mundial em um século ligou o modo pânico nas redes sociais. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, cuja serenidade tinha sido, até então, a principal vacina contra a doença, achou por bem avisar que o gato subiu no telhado do SUS: “Se a pandemia não tem uma letalidade individual elevada, o sistema de saúde tem”.

Entre os muitos fantasmas espraiados pelas narrativas virtuais, o pior deles tem sido o da gripe espanhola, pandemia que matou uma multidão estimada entre 17 milhões e 50 milhões de pessoas em todo o mundo há um século. A população era equivalente a um quarto da atual. A evolução da medicina e da saúde pública desautoriza projeções como aquelas que alimentam o pânico das redes sociais, mas não impede que séries como “Pandemia”, da Netflix, cujo lançamento coincidiu com a emergência do coronavírus na China, abra pelo anunciado: “Ninguém duvida que uma pandemia semelhante vai voltar a ocorrer, a questão é saber quando”.

O avanço da ciência não deixou as trevas para trás, da comunidade de pais de classe média no Estado do Oregon (EUA), que lidera protestos contra campanhas de vacinação, a um acampamento de uma equipe de médicos no Congo, atacado por pessoas que acreditam ser a vacina a portadora da doença. Fosse produzida hoje, a série teria a oportunidade de incluir um chefe de Estado nos despautérios: o presidente Jair Bolsonaro, que saiu do Palácio do Alvorada no dia 15 de março, com resultados pendentes de novo teste do coronavírus, para apertar as mãos de apoiadores e se congraçar com manifestações Brasil afora.

José de Souza Martins* - O drama dos guarani mbya

- Valor Econômico | Eu & Fim de Semana

Embora suspensa até que Justiça e instituições se manifestem, a ação de reintegração de posse das terras ocupadas pelos indígenas, no bairro do Jaraguá, é ato socialmente injusto

Um capítulo da relação historicamente violenta dos brancos com as populações indígenas está ocorrendo na cidade de São Paulo contra os índios do Jaraguá. Não é, propriamente, uma questão racial.

No Brasil, as relações raciais têm uma característica curiosa. Aqui, raça é a raça da vítima. Nunca a raça de quem a vitima. Nesse sentido, os que os privam do que carecem não agem como raça nem em nome de uma raça. Caso em que o branco seria de uma raça sem objetivos nem motivações raciais, ainda que possa ser racista. Não há brancos no Brasil na medida em que não há no país uma causa branca, uma causa racial.

O opressor das raças subalternas não tem cor porque a opressão não tem cor. O opressor tem interesses e ambições. Sua cor é a cor da riqueza e do poder. É inútil questioná-lo em nome do preconceito racial. Ele sempre poderá dizer que gosta de índio, que gosta de preto. Mas nunca dirá que gosta mais de si mesmo, isto é, da causa que personifica em nome da coisa que o domina e em nome da qual vive e age, a riqueza.

A cor branca se tornou a cor da dominação e da exploração e das iniquidades que delas resultam. Muitos opressores de índios e de pretos são pardos e são pretos. Oprimem em nome da brancura a que servem. Nem todo os brancos são opressores de índios, brancos e pretos. A invocação de categorias raciais para interpretar tensões antigas que se atualizam todos os dias é expressão da falta de familiaridade com as ciências sociais. E do decorrente desconhecimento do que é o Brasil e do que é a sociedade brasileira.

Luiz Carlos Azedo - O país está parando

- Nas entrelinhas – Correio Braziliense

“O coronavírus provoca a reorganização do trabalho, em razão das medidas de distanciamento social; governadores e prefeitos se antecipam ao governo federal”

Quem observa o cotidiano da população já constata a redução do movimento de pessoas e de carros nas ruas; filas nas farmácias e supermercados. Não se trata de pânico, mas de prudência, as pessoas estão se dando conta de que o distanciamento social é realmente necessário e começam a se preparar para o confinamento doméstico. O medo do coronavírus é justificado, basta olhar o que está acontecendo no mundo e prestar atenção nas entrevistas e decisões dos governadores e prefeitos.

Ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, voltou a falar como um sanitarista experiente, em entrevista na qual dispensou a máscara cirúrgica. Não escondia a tensão em que se encontra, diante do avanço da epidemia. No começo da noite, já havia 635 casos confirmados no país, em 21 estados e no Distrito Federal, com transmissão comunitária em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Sergipe. Sete mortes foram contabilizadas até ontem, cinco em São Paulo e duas no Rio, ou seja, 1,1% dos casos confirmados.

As notícias que chegam do mundo justificam a apreensão da população. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), eram 207.855 casos confirmados e mais de nove mil mortes por Covid-19 em 166 países e territórios. Em Hubei, província chinesa onde se originou o surto, ocorreram 34% das mortes, com 3.130 óbitos, antes de a epidemia ser controlada. Entretanto, a Itália ultrapassou a China, com 3.405 mortes pelo novo coronavírus, apesar da população algumas vezes menor. Tecnicamente, o Brasil se encontra numa situação em que a curva da doença ainda não se definiu, ou seja, um momento no qual há três cenários, o pior deles é o italiano. O melhor é o cenário da Coreia do Sul, que conseguiu controlar a letalidade da doença.

O ministro Mandetta trabalha com o modelo inglês. Como não somos uma ilha, talvez por isso, a principal medida efetiva de distanciamento social adotada pelo governo federal tenha sido o fechamento das fronteiras, anunciado ontem, no caso dos países vizinhos, alguns dos quais já tinham tomado essa decisão. Outra preocupação foi orientar os planos de saúde privados a não descarregar nos hospitais públicos os seus segurados. Um novo protocolo de atendimento foi anunciado: pessoas com febre, tosse ou dor de garganta e/ou dificuldade respiratória receberão máscaras e serão encaminhadas para isolamento respiratório.

Ricardo Noblat - Eduardo Bananinha, o idiota!

- Blog do Noblat | Veja

Uma vez que atraia os holofotes, com ele está tudo bem

A intenção não foi essa, mas ao sair em socorro do deputado Eduardo Bolsonaro que atacou o governo da China e chamou o coronavírus de “vírus chinês”, o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, tatuou na testa do Zero Três um apelido do qual ele jamais se livrará – Eduardo Bananinha.

Se o deputado, segundo Mourão, não se chamasse Eduardo Bolsonaro, mas sim Eduardo Bananinha, as relações do Brasil com a China estariam cem por cento. Mas por carregar o sobrenome do pai, ele desatou uma crise diplomática entre os dois países que está longe de terminar. Mourão pediu desculpas ao governo chinês.

Pequim ainda não respondeu se as desculpas de Mourão serão aceitas. A mais recente nota da embaixada da China no Brasil, distribuída ontem à noite, foi mais dura do que a anterior e renovou a cobrança para que Eduardo peça desculpas e apague os desaforos que escreveu na sua conta no Twitter.

O povo chinês é o único que tem sua história de milênios escrita à medida que era construída. Hoje, se diria: em tempo real. Seus governantes não só a conhecem bem como podem consultá-la a qualquer momento. Como reagiu a dinastia A ou B em tal situação? Quais foram mesmo os efeitos do “milênio perdido”?

Sem que tivesse ainda a bomba atômica, a China de Mao Tse-Tung foi capaz de encarar ao mesmo tempo a União Soviética e os Estados Unidos, as potenciais nucleares à época. É o país mais populoso e antigo do mundo. No final do século XIX, seu PIB era superior à soma do PIB da Europa com o PIB dos Estados Unidos.

Pois foi com essa gente que Bananinha resolveu brigar. Se ele tivesse lido o livro “Sobre a China”, escrito por Henry Kissinger, ex-secretário de Estado americano e o principal responsável pela aproximação entre os Estados Unidos e a China, é possível que não fizesse o que fez. Mas Bananinha nunca ouviu falar de Kissinger.

Dora Kramer - Café com leite

- Revista Veja

A definição mais simples talvez seja a mais correta: trata-se de um homem reacionário, desprovido do mínimo preparo para qualquer ofício público de destaque

O Brasil é cheio de situações inusitadas quando se trata de Presidência da República: são presidentes (dois) que morrem antes de tomar posse, é presidente que renuncia com plano frustrado de voltar nos braços do povo, são outros dois que sofrem impedimento em menos de 25 anos, é presidente que se suicida, é presidente derrubado por golpe militar, enfim, já tivemos de quase tudo, mas nunca tivemos o que temos agora: um presidente no cargo, mas fora do exercício precípuo da Presidência.

Tantas Jair Bolsonaro fez no primeiro ano de mandato que os Poderes da República cansaram e, na hora da crise dramática de saúde pública com repercussões seriíssimas na economia e na política, o deixam de lado e vão ao trabalho. Ainda bem.

Enquanto no mundo os chefes de Estado são os porta-vozes da dimensão da gravidade, aqui o mandatário minimiza, mantém o travo de desafio político e faz cenas canhestras. As movimentações, tomadas de providências e reuniões de autoridades federais para tratar do andamento da pandemia da Covid-19, ocorrem sem a presença do presidente, que em palco paralelo contraria a realidade (planetária, diga-se) numa demonstração de completo descaso em relação ao conjunto dos governados.

Em contrapartida, Bolsonaro contribui para a deterioração de sua imagem/credibilidade/popularidade até junto aos simpatizantes e por isso tem recolhido malefícios. No seu afã diuturno de testar limites, desta vez ultrapassou uma fronteira perigosa, transitando do terreno das relevâncias fáticas para o ambiente das irrelevâncias práticas do qual se tornou cidadão honorário nesta crise. A figura dele remete à qualificação de “café com leite”, para alguém que não entende as regras do jogo e passa a ser visto pelos demais como a pessoa que joga sem valer.

Bruno Boghossian – Além do Golden shower

- Folha de S. Paulo

Empresários que apoiavam protestos pró-governo agora dão sinais de mau humor

Pouco depois do primeiro panelaço contra Dilma Rousseff, em março de 2015, o Datafolha perguntou a opinião da população sobre a presidente. A petista sofreu um tombo considerável. De cada três brasileiros que, no mês anterior, consideravam o governo ótimo, bom ou regular, um mudou de ideia.

Dilma já havia perdido apoio na classe média e entre os mais ricos na virada para o segundo mandato. A pesquisa mostrou que esse derretimento chegou aos mais pobres depois do tarifaço que elevou as contas de luz e o preço dos combustíveis.

Com o fracasso gerencial da crise do coronavírus, Jair Bolsonaro também começou a ouvir panelas, mas o grande risco para sua popularidade está incubado. Os efeitos mais graves da paralisação da economia serão sentidos ao longo nas próximas semanas. Por enquanto, é possível enxergar sinais do mau humor.

Hélio Schwartsman - Epidemia ou fiasco do século?

- Folha de S. Paulo

Em guerras, quase sempre vence quem tem as melhores informações.

John Ioannidis é um epidemiologista de primeira, acostumado a nadar contra a corrente. O “paper” em que mostrou que a maioria das conclusões de artigos científicos está errada se tornou um clássico instantâneo.

Ioannidis acaba de publicar outro texto polêmico, agora sobre a Covid-19. Ele diz que podemos tanto estar diante da maior pandemia como do maior fiasco científico do século. Não temos informação suficiente para julgar.

Sabemos que o número de pessoas que foram infectadas está subestimado, mas não temos ideia da escala. Pode ser por um fator 3 ou 300 —e isso faz toda a diferença, não apenas para o cálculo de taxas realistas de letalidade e de complicações.

Ruy Castro* - Dilema na grande gripe

- Folha de S. Paulo

Afinal, Rodrigues Alves morreu da espanhola ou na espanhola?

O acaso gerou um dilema na Folha de quarta última (18). Neste espaço, escrevi sobre a gripe espanhola, que, entre setembro e novembro de 1918, matou cerca de 50 milhões de pessoas no mundo. E aproveitei para esclarecer que o presidente Rodrigues Alves (1848-1919) não foi uma de suas vítimas. No mesmo caderno, o leitor se deliciou com a coluna de Elio Gaspari, em que ele simula uma carta de Rodrigues Alves a Jair Bolsonaro e, em certo momento, faz Alves dizer: "Eu deveria ter voltado à Presidência em 1918, mas peguei a gripe espanhola e morri". E agora?

Leitores escreveram perguntando quem tinha razão. Alguns tomaram partido por um ou outro colunista e uma ou outra versão. Afinal, segundo as enciclopédias e wikipédias, Rodrigues Alves morreu da gripe. Mas ouso discrepar.

Reinaldo Azevedo – Dois vírus contamina as Forças Armadas

- Folha de S. Paulo

Voltem aos quartéis, soldados, e deixem o governo para os civis

Coitadas das Forças Armadas do Brasil! Tornaram-se barrigas —ou fardas!— de aluguel de formulações ideológicas alucinadas que não se ensinam nas escolas militares e de uma tal "guerra cultural" cuja matriz é a extrema direita americana, com a qual se alinha o ideólogo da zorra toda: Olavo de Carvalho.

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, garantiu que as Forças Armadas não faltarão ao Brasil. Que bom! Convém que se certifique de que não servirão ao Bolsolavistão, o país mental que hoje tenta colonizar o Estado brasileiro. Está dando errado. Já deu errado. Mas não será sem custo.

Enganam-se os que acham que a entrevista coletiva da Igreja dos Santos Mascarados dos Últimos Dias marcou a conversão de Jair Bolsonaro à democracia. Na quarta (18) mesmo, enquanto o pai fazia a coreografia do estadista, o deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos, desferia um ataque estúpido à China, maior parceira comercial do Brasil.

Na raiz do negacionismo do presidente e da burrice saliente de Eduardo está uma visão de mundo. Bolsonaro não caiu nos braços da galera por mero acidente ou rompante. O ato foi precedido de cálculo político, de reflexão, de aconselhamento.

Um general da reserva e um almirante ainda da ativa, ambos ministros, estão contaminados. Augusto Heleno (chefe do GSI) e Bento Albuquerque (Minas e Energia) são boas metonímias e boas metáforas do que está em curso.

Monica de Bolle* - Imagine

- Revista Época

Assim como a imaginação nos serve para construir cenários e pensar sobre a crise, ela também pode nos orientar para o que virá depois. E haverá um depois

Imagine there's no heaven/It's easy if you try/
No hell below us/Above us only sky/
Imagine all the people living for today
JOHN LENNON

Serão meses muito difíceis. Poderemos perder pessoas queridas — próximas ou não. Ficaremos em isolamento, nossas vidas de pernas para o ar. Talvez tenhamos a doença, talvez não. Como muitos, sou de uma geração para a qual as grandes guerras são de interesse histórico, mas não estão no plano da vivência, da travessia. Sou de uma geração para a qual a gripe espanhola, que matou dezenas de milhões de pessoas, pertence aos livros e aos artigos científicos. Não pretendo minimizar a gripe espanhola e o sofrimento que ela causou. Mas ela foi uma gripe. O Covid-19, como tenho dito, não é.

Será duro, insisto. E todo mundo precisa de um alívio, de uma exalada forte, de um pouco de alento nesses tempos de incerteza brutal e de muita dor.

“É nosso dever darmo-nos algum alívio, construído pelo exercício da imaginação”

Assim como a imaginação nos serve para construir cenários e pensar sobre a crise, como ela haverá de se manifestar e que medidas o governo deve tomar — escrevi sobre o assunto recentemente neste espaço — a imaginação também pode nos orientar para o que virá depois. E haverá um depois, isso é certo. Países não vão desaparecer, o mundo não vai desaparecer. A China não desapareceu. A Itália — quanta dor pela Itália — tampouco desaparecerá. Então, o que pode vir depois? Pode ser que o mundo se desarranje por completo, pode ser que tudo permaneça desarticulado por muito tempo. Mas prefiro imaginar saídas pela capacidade de superação das pessoas. E prefiro imaginá-las a partir de alguns sinais dados pelas respostas de política econômica mundo afora.

Vinicius Torres Freire - Economia de guerra contra o corona

- Folha de S. Paulo

É hora de pensar em produção extra e preços de recursos para os hospitais da epidemia

Há notícias de que o preço de máscaras hospitalares disparou. É muito provável que seja necessário inventar UTIs ou equivalentes, com ventiladores pulmonares, ao menos, e outros equipamentos auxiliares.

Em momentos de calamidade oficial e similares, a lei prevê intervenções estatais na atividade econômica, as quais podem incluir tabelamentos ou requisições. Tabelamentos tendem a não funcionar, exceto em situações de guerra de fato. De resto, não adianta fazer requisições se não há produtos, assim como não adianta tabelar o preço do que não existe.

É bem provável que esse seja um dos muitíssimos problemas da administração da economia e da epidemia. Trata-se de administrar uma economia como a de guerra, de mobilização de recursos e no gasto público (assunto que fica para logo mais).

Não, não se trata de “militarizar” o assunto. Trata-se de tomar medidas excepcionais quando a paralisação de fábricas, serviços e comércios e o número de baixas se assemelha aos efeitos da destruição causada por guerras.

São necessários o controle e o estímulo da produção de bens essenciais, a começar por aqueles de uso médico-hospitalar, caso não exista material suficiente para o serviço de cuidar dos feridos, doentes, e dar instrumentos aos profissionais da saúde. Esperar que a escassez também se espalhe de modo epidêmico é jogar com a morte.

Adair Turner* - Dinheiro para quem precisa

- Valor Econômico

A melhora nas contas de algumas famílias não impedirá quebras em grande escala e demissões nos setores mais afetados. Restrições físicas ao consumo são a nova, e crucial, característica desta crise. Há necessidade de ações direcionadas, além de estímulos à economia

Nossa prioridade absoluta durante a pandemia do coronavírus precisa ser salvar vidas. Também precisamos, contudo, reduzir o impacto econômico e preservar o emprego e a renda da melhor forma possível. É inevitável que tenhamos um grande impacto na economia, mas podemos limitar os danos com políticas econômicas sólidas e bem direcionadas.

Da mesma forma que na crise financeira mundial de 2008, precisamos compreender o equilíbrio entre as três categorias de problemas enfrentados: liquidez, solvência e demanda deficiente.

Os problemas de liquidez tanto no sistema financeiro quanto na economia real podem ser compensados por ações firmes dos bancos centrais, sendo que vários pacotes de medidas econômicas apropriadas que já foram anunciados. Entre elas estão a redução das taxas de juros a zero; emprestar dinheiro do banco central aos bancos comerciais para que possam emprestá-lo às empresas; e liberar os colchões de capital anticíclico dos bancos para que possam conceder mais empréstimos. Combinadas, essas ações podem garantir que empresas com fundamentos saudáveis não quebrem por falta de crédito.

Mas elas serão insuficientes para evitar importantes problemas de insolvência em setores específicos. Se bares, restaurantes, hotéis e empresas aéreas ficarem sem clientes por dois meses, não haverá volume de crédito barato na Terra capaz de evitar eventuais quebras.

Claudia Safatle* - A recessão é inevitável

- Valor Econômico

Preocupação é salvar vidas e preservar o maior número possível de empresas

A grande preocupação do governo, nesse momento em que a disseminação da covid-19 assume proporções dramáticas, é preservar vidas e salvar o maior número de empresas possível para que haja uma estrutura na economia capaz de reagir quando o coronavírus for se enfraquecendo. Recessão se mostra inevitável, sobretudo a partir do segundo trimestre, mas também ainda neste primeiro trimestre o Produto Interno Bruto já poderá vir negativo.

O tamanho do tombo na economia vai depender da duração, do tempo em que o coronavírus estiver se multiplicando. Segundo os gráficos abaixo, na China a situação se estabilizou em um tempo relativamente rápido. A curva da pandemia é côncava.

Para a atividade econômica, a situação é terrível. “É um fosso sem piso”, diz Silvia Matos, economista coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV, cuja missão, agora, é recalcular todos os indicadores macroeconômicos para este ano. Ela está trabalhando em casa, assim como toda a sua equipe. “É uma situação de guerra mesmo! Não tem como pensar em economia funcionando. A economia real não é no home office!”

Nesse ambiente, o que vai acontecer com a política fiscal, com a inflação ou com o endividamento do setor público, parece questões fúteis. Ao Estado cabe cuidar das pessoas, dar-lhes alimentação e acesso à saúde.

Humberto Saccomandi* - E se a coronacrise durar mais do que pensamos?

- Valor Econômico

Nenhuma evidência aponta para um fim rápido da pandemia

O Brasil está há uma semana em modo de crise por causa da epidemia de coronavírus. A Europa, há um mês. A China, há dois meses. A dimensão dessa crise dependerá diretamente da duração da epidemia, o que é impossível de prever neste momento. Empresas, escolas e governos estão anunciando medidas válidas por algumas semanas ou meses. Isso parece excessivamente otimista. Nenhuma evidência aponta para um final tão rápido. O problema, porém, é que é difícil fazer previsões (e definir ações) para uma crise mais longa, devido ao ineditismo de tudo o que está acontecendo.

Uma epidemia viral muito contagiosa, como a atual, costuma terminar de duas maneiras: ou boa parte da população é infectada e ganha imunidade, o que reduz a circulação do vírus; ou uma vacina propicia essa imunização.

Há muita especulação a respeito, mas nenhuma indicação concreta de que uma vacina estará disponível no curto prazo. O desenvolvimento da vacina é complexo. Até hoje não há uma vacina para a aids nem para a sars (causada por outro coronavírus). Os processos de verificação de segurança e de eficácia de uma nova vacina são demorados. A Organização Mundial da Saúde (OMS) não prevê uma vacina neste ano. Pode haver surpresas, mas é melhor não contar com isso.

Quanto à imunização pelo contágio, ainda estamos longe disso. Dados oficiais apontam que mais de 240 mil pessoas já foram infectadas pelo mundo. O número real é certamente muito maior. Vários países, como o Brasil e os EUA, não estão testando todos os possíveis casos suspeitos, devido ao custo e à falta de kits de teste.

Naercio Menezes Filho* - Como evitar uma tragédia social?

- Valor Econômico

Teremos que usar a capilaridade do sistema de proteção social construído nos últimos 30 anos para atenuar os efeitos da crise

Em breve o país entrará num período recessivo intenso que poderá durar muitos meses. Esse processo irá afetar a vida de milhões de pessoas, provocando desemprego em massa, aumentando a pobreza e prejudicando o desenvolvimento infantil. Os impactos da recessão poderão ser maiores ou menores, dependendo da duração da crise e das medidas que serão adotadas nos próximas dias. Quem serão os mais afetados pela crise? O que poderia ser feito para amenizar os efeitos da recessão?

Vários choques estão atingindo a economia ao mesmo tempo. A paralisação temporária da economia chinesa e de vários outros países já está atingindo em cheio a economia brasileira. Hoje em dia, 10% das nossas importações vem da China e grande parte dessas importações são insumos que são usados pelas empresas brasileiras. A paralisação da importação de insumos fará com que muitas empresas tenham que parar a sua produção por um tempo e afetará a produtividade daquelas que continuarem a produzir.

O segundo choque vem da redução dos nossos termos de troca. A queda no preço do petróleo, aliada à redução da demanda chinesa por matérias primas, está provocando um choque negativo nos termos de troca que aprofundará a recessão, pois há uma relação bastante forte entre termos de troca e o PIB no Brasil.

O terceiro choque (o mais importante) vem da paralisação da própria economia brasileira. As pessoas estão (acertadamente) ficando em casa para fugir do risco de contrair o vírus, deixando de ir ao cinema, teatro, shows, restaurantes, academias e de viajar. Isso terá um efeito brutal sobre as receitas das pequenas empresas e dos trabalhadores informais, que não recebem salários se não trabalharem ou venderem seus produtos. Qual será o tamanho do estrago?

Se a greve dos caminhoneiros durou 10 dias, paralisou apenas uma parte da economia e já ceifou uma parcela significativa do PIB, o que acontecerá com uma paralisação generalizada na economia que poderá durar mais de 3 meses, aliada a uma redução dos termos de troca e paralisação das importações da China? Estamos falando de uma redução de vários pontos percentuais no PIB, com elevação da taxa de desemprego, que poderá chegar a um quarto da PEA, e redução dos salários, que terão efeitos dramáticos sobre a pobreza e nutrição das famílias, especialmente dos que trabalham no setor informal.

O que fazer para atenuar esse cenário dramático? As medidas tomadas essa semana pelo governo, que visam a oxigenar financeiramente a economia, dirigir recursos adicionais para a saúde e para os trabalhadores informais vão na direção correta, mas são insuficientes. Para atenuar os efeitos da crise que se aproxima, teremos que usar a estrutura de proteção social desenvolvida nos últimos 30 anos para atender os mais pobres de forma emergencial.

Flávia Oliveira - Com os informais, a saúde pública e econômica

- O Globo

O arsenal dedicado à rede de proteção social precisa aumentar

Segunda-feira à tarde, quando a equipe econômica guardava silêncio sobre medidas na área social contra a pandemia e o presidente da República soltava a voz para chamar de histeria a crise já instalada do coronavírus, Maria Isabel Monteiro, presidente do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Município do Rio, gravou e distribuiu um vídeo. Em voz serena, reivindicava dos empregadores a liberação de domésticas e diaristas do trabalho, sem prejuízo na remuneração. De quebra, alertou para o risco de a pandemia alcançar a categoria, muito dependente do Sistema Único de Saúde, velho de guerra. Em 84 segundos, explicitou um conhecimento de Brasil que o governo Jair Bolsonaro em 15 meses continua devendo.

Maria Isabel compreendeu que a pandemia ameaçava a sempre cambaleante infraestrutura da saúde pública no país — não à toa, o setor está sempre no topo das preocupações da população nas pesquisas eleitorais. Sabia que a recomendação de distanciamento social e isolamento não seria cumprida, se trabalhadores não tivessem garantia de remuneração. Acabariam por escolher entre a doença e a fome. Percebera, sobretudo, que a desigualdade social e a herança escravocrata poriam em risco os corpos de sua categoria profissional, formada por 6,260 milhões de pessoas — nove entre dez, mulheres, segundo o IBGE.

Só quando os dois maiores estados iniciaram a contagem de mortos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentou o conjunto de medidas para aliviar a crise social decorrente da Covid-19. Foi na mesma terça-feira em que a Prefeitura de Miguel Pereira anunciou o primeiro óbito por coronavírus em território fluminense. A vítima, uma doméstica de 63 anos infectada pela patroa, que retornara da Itália contaminada — ontem, a Secretaria estadual de Saúde do Rio confirmou que o exame foi positivo.

Guedes pôs na mesa um necessário arsenal de até R$ 600 bilhões para estabilizar o sistema financeiro e acenou com intervenções do Tesouro Nacional, do Banco Central e com alívio de regras para os bancos médios. À população, ofertou antecipação para abril e maio do pagamento do décimo terceiro a aposentados e pensionistas do INSS, liberação do abono salarial em junho. Eram recursos já previstos no Orçamento. Em dinheiro novo, aporte de R$ 3,1 bilhões para adicionar um milhão de lares aos 13,216 milhões que receberam o Bolsa Família em fevereiro. Às empresas, ofereceu adiamento por três meses no recolhimento do FGTS e do Simples Nacional, redução à metade das contribuições ao Sistema S.

Míriam Leitão - A emergência na economia

- O Globo

A crise derruba previsões para o PIB e muda receituários para a economia tão rapidamente quanto o vírus se propaga

As previsões do PIB brasileiro estão despencando num ritmo que atordoa. A cada momento é um banco ou consultoria que está levando o número para a recessão. Já se fala em menos 3%. Por isso a corrida no governo é para tirar o atraso e anunciar medidas. O maior desafio será fazê-las funcionar. Setores e estados também estão na mesma busca de soluções. Ontem o governador Helder Barbalho, do Pará, conversou com a Vale e ouviu da diretoria que a empresa pretende manter as atividades no mesmo ritmo. E o que acontece com um setor que não pode parar, nem que queira? O de vidros, por exemplo. Mas alguns clientes estão suspendendo a produção. A economia está cheia de desencontros assim.

Quando há uma parada brusca da atividade econômica, cada um é apanhado em um ponto, alguns em contrapé total. E é esse conjunto de atingidos que o Brasil verá no nível individual e corporativo. Há milhões de brasileiros cuja capacidade de geração de renda está entrando em colapso e por isso o Ministério da Economia tem anunciado medidas de socorro. Algumas repetem ações que foram adotadas em governos petistas, como a de complementar o salário do trabalhador com redução de jornada.

Rogério Furquim Werneck - O desafio da ação coletiva

- O Globo / O Estado de S. Paulo

A política de distanciamento social só vai ter sucesso com apoio maciço da população

O coronavírus vem pondo à prova a capacidade de ação coletiva eficaz nos países afetados. Os que souberam se antecipar no combate à pandemia, como Japão, Taiwan e Coreia do Sul, têm mostrado desempenho superior ao da China e da Itália, onde a epidemia tem sido bem mais devastadora.

Quando a China, afinal, se deu conta da gravidade da crise e anunciou medidas drásticas de estrito confinamento de 60 milhões de pessoas, a reação inicial do resto do mundo foi atribuir medida tão extrema à brutalidade do regime autocrático chinês. O que, de fato, fez soar o alarme foi ter a Itália, semanas depois, adotado medida similar. Mesmo diante das enormes dificuldades de confinar toda a população do país, numa democracia tão complexa, prevaleceu no Parlamento italiano o cálculo político de que a medida era inevitável. Ficou mais do que claro que tanto a Itália quanto a China haviam se dado conta de algo que o resto do mundo ainda não percebera.

A política de distanciamento social vem sendo replicada em boa parte da Europa e nos EUA. O nome do jogo é conseguir atenuar o crescimento exponencial da disseminação do vírus, de forma a que o número de casos graves se mantenha compatível com a limitada capacidade de tratamento adequado disponível no sistema de saúde. Redistribuir no tempo o impacto da pandemia para impedir que o sistema de saúde entre em colapso.

Ruth de Aquino - Dançou, Bolsonaro

- O Globo

O desfile dos mascarados revelou que Bolsonaro testou negativo para presidente. A contraprova foi o panelaço da classe média

O baile bizarro de máscaras foi revelador. Bolsonaro testou negativo para presidente. A contraprova foi o panelaço da classe média contra ele. 

Ele dançou para uma plateia planetária no seu baile de máscaras. A pantomima encenada na entrevista coletiva rodou o mundo e ficará para a História. O chefe da nação expôs de maneira incontestável seu despreparo e sua ignorância, sua falta de liderança e de senhoridade. Com um figurino coletivo que, esse sim, sugere suprema histeria, o desfile dos mascarados revelou que Bolsonaro testou negativo para presidente. A contraprova foi o panelaço da classe média.

A máscara branca que Bolsonaro manuseava, sem saber onde estavam o nariz, as orelhas, a boca e os olhos, diante de câmeras de televisão, é apenas detalhe alegórico de um atabalhoado que parecia imitar o humorista Marcelo Adnet. Lembrei-me dos exames, no consultório do neurologista, em que fechamos os olhos e levamos o dedo ao nariz, para testar coordenação motora, equilíbrio e saúde mental. Mais uma vez, Bolsonaro mentiu, culpou a imprensa e ensinou tudo errado ao povo brasileiro. Mas o povo não é bobo.

Não sei quem teve a brilhante ideia de tentar passar seriedade e calma ao Brasil com aqueles 10 homens brancos mascarados de terno. Isso é esquete de comédia de terror. Se acreditarmos na OMS e no Ministério da Saúde, só os infectados, os imunocomprometidos, os suspeitos graves e os profissionais de saúde devem usar máscaras para não arriscar contaminação. Bolsonaro mirou sua arminha no próprio pé. E acertou! Virou pato manco.

Antonio Risério - Manifesto

Vivemos hoje um momento histórico em que o Brasil pode assumir relevância especial no contexto da América do Sul – desde que se disponha a mobilizar suas melhores virtudes e suas melhores energias.

Um momento em que devemos nos firmar, aos olhos de nossos vizinhos sul-americanos e de todo o mundo, como o espaço por excelência da democracia. Como espaço de estabilidade e confiança. De lucidez e serenidade. De firmeza institucional.

Mas, para isso, temos de ter os pés no chão. De saber nos comportar. De buscar o entendimento. Em suma, é preciso ter juízo. Não vamos jogar o bom senso e a razão na lata do lixo.

Qualquer brasileiro sério, que ama verdadeiramente nosso país, sabe muito bem que não é possível confundir nação com facção. Sabe que não é hora para provocações primárias e mesmo infantis. Que não é hora para adotar e muito menos cultivar a prática da agressão e a sistemática da desavença e do desentendimento.

A grande virtude da política, num horizonte democrático, está em sua capacidade de afetar positivamente a vida nacional. De instaurar climas consensuais, em busca dos melhores caminhos e das melhores soluções para o país. E é neste sentido que os poderes republicanos devem se mover. A menos que o objetivo seja implantar o caos. Disseminar a desordem, na procura de confrontos que terão consequências imprevisíveis para todos.

Mas, justamente nesta conjuntura em que necessitamos nos afirmar como uma nação marcada pela solidez e a serenidade, inclusive para retomar o rumo do desenvolvimento econômico e social do país, brotam incompreensivelmente posturas grosseiras e brutalistas querendo embaralhar tudo. Posturas que apontam para o inferno político e social. Que pretendem destruir as regras elementares da convivência. E dinamitar a democracia.

Diante de tanta desorientação e tanto delírio autoritário, cabe às pessoas de bem defender o Brasil. Vamos nos prevenir contra armadilhas e sabotagens anti-institucionais e antidemocráticas. Contra as tentativas de asfixiar a liberdade de expressão. Contra os ataques frequentes à lei maior do país. Contra a ânsia irresponsável de agitar os quartéis. Contra o espírito arruaceiro. Contra os arautos da desordem. Contra o projeto doentio de atirar os brasileiros uns contra os outros.

Sim. Diante de tanto desatino e tanto desvario, cabe a cada brasileiro que ama o Brasil a missão de se converter em guardião da democracia.

*Antonio Risério é um antropólogo,ensaísta e historiador

Marco Aurélio Nogueira* - Exterminador do futuro

Em termos de capacidade de gestão, equilíbrio e solidariedade, de liderança, o presidente é um fiasco. Um caso grave, sem cura.

A máscara caiu. Não há uma Presidência da República no Brasil, mas um pesadelo. A cada dia fica mais evidente a tragédia que estava anunciada em 2018 e que não foi compreendida a tempo pela maioria do eleitorado. A partir de agora, teremos de matar um leão por dia. Não merecemos isso, nem o vírus que se dissemina, nem o presidente que não governa nem lidera o País nesse momento extremamente delicado.

É simplesmente patética a foto do presidente e de alguns ministros paramentados com máscaras descartáveis. Bolsonaro foi à manifestação, abraçou e beijou um monte de gente, acha que o distanciamento social e o confinamento não passam de histeria desnecessária. Depois, posou de higiênico e cuidadoso. Feitas as fotos, se atrapalhou para tirar a máscara. Ela caiu sozinha, por inteiro. Uma figura aparvalhada, sem saber o que fazer, sem atinar para a gravidade e a dimensão da pandemia. O olhar de todos à mesa de entrevista era de gente assustada.

Dá medo ver que há quem o aplauda e continue a tratá-lo como “mito”. Pessoas assim são uma correia de transmissão, espalham ódio e vírus. Quem são elas, como justificam suas atitudes perante os demais? A chave do fanatismo explica parte do fenômeno. Estamos diante de um tipo social – o indiferente com raiva do mundo — que não surgiu hoje, mas que, de repente, se espalhou e ganhou visibilidade. Gente que pede ditadura, Estado de exceção, AI-5, no exato momento em que mais se necessita de paz, diálogo, cooperação. Gente para quem a vida em sociedade é um fardo, conflito, atrito, violência, que não está nem aí para o bom senso e o espírito público. Um perigo.

A mentira, especialmente quando contumaz, é o pior modo de enfrentar o Covid-19 ou qualquer outro vírus. Desmobiliza e confunde. Trump mordeu a língua depois de passar semanas dizendo que o vírus nada mais era que uma “manobra chinesa”. Bolsonaro segue o mesmo caminho. Passará para a História como um exterminador do futuro.

Depois de banalizar o coronavírus e debochar das medidas sanitárias de seu próprio governo, Bolsonaro encaminhou pedido de calamidade pública. Medida dura e necessária. Mas são chocantes as oscilações presidenciais, que emitem sinais contraditórios para a população e ao fazer isso aumentam a exposição ao vírus. Os panelaços dos últimos dias estão a demonstrar que o bolsonarismo regrediu alguns pontos.

Em termos de capacidade de gestão, equilíbrio e solidariedade, de liderança, o presidente é um fiasco completo. Um caso grave, sem cura. Seu despreparo, seu caráter tosco e grosseiro, só faz atrapalhar. A cada dia, mais gente está se dando conta disso.

*Marco Aurélio Nogueira é um cientista político brasileiro, doutor em ciência política pela Universidade de São Paulo e professor de teoria política na Universidade Estadual Paulista (Unesp)

O que a mídia pensa - Editoriais

Contra risco de depressão, trilhões para a economia – Editorial | Valor Econômico

A necessidade de gastar o que for preciso para evitar mortes, depressão e desemprego em massa é hoje consenso entre governos e autoridades monetárias dos países ricos

A derrocada dos mercados parece não ter fim. Os recuos das bolsas mundiais já são superiores ao turbilhão vivido na grande crise financeira de 2008 e não há piso à vista. As ações não encontram qualquer ponto de apoio para iniciar o caminho de volta. A queda se transmite a todos os outros ativos, em uma espiral de prejuízos que chegou nos últimos dias aos títulos soberanos, considerados os mais seguros. Isso significa que investidores e agentes do mercado passaram a vender seus melhores papéis para cobrir posições e garantir liquidez em uma crise cuja duração é imprevisível. Os bancos centrais, apagando os incêndios que surgem, estão intervindo com munição pesada em todos os mercados.

A roda destrutiva das perdas, da qual os investidores são incapazes de reverter por si sós, indica a precificação do caos. Com o coronavírus se instalando nas principais economias do mundo, como Alemanha e Estados Unidos, grandes emergentes, depois de passar pela Ásia, a economia real ameaçar entrar em uma depressão. Os mercados acionários só tem uma direção, para baixo, se os investidores tentam mensurar o valor de empresas e setores que estão paralisados - por ordem dos governos - ou vão paralisar e cuja única expectativa é a de que suas receitas sejam zero ou perto disso.

É sobre essa espiral descendente que os BCs estão agindo, com as armas legadas do afrouxamento monetário. O balanço do Federal Reserve americano já está perto do pico da crise de 2008 - US$ 4,5 trilhões -, com projeções de que em pouco tempo chegue a US$ 6 trilhões. Para prover liquidez ao mercado de dívida corporativa, anunciou que injetará US$ 750 bilhões na compra de títulos dos quais os investidores estão fugindo. O Banco Central Europeu anunciou na noite de quarta megadose de seu QE, mais € 750 bilhões, elevando para €1 trilhão a quantidade de títulos soberanos e de papéis privados que comprará até o fim do ano. O Banco da Inglaterra ampliou de 445 bilhões para 650 bilhões de libras seu apoio à liquidez e reduziu de novo os juros, desta vez para 0,1% ao ano.

Poesia | Joaquim Cardozo – Tarde no Recife

Tarde no Recife.
Da ponte Maurício o céu e a cidade.
Fachada verde do Café Maxime,
Cais do Abacaxi. Gameleiras.

Da torre do Telégrafo Ótico
A voz colorida das bandeiras anuncia
Que vapores entraram no horizonte.

Tanta gente apressada, tanta mulher bonita;
A tagarelice dos bondes e dos automóveis.
Um camelô gritando: — alerta!
Algazarra. Seis horas. Os sinos.

Recife romântico dos crepúsculos das pontes,
Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos
[holandeses,
Que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas,
Que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas
[do Pacífico;
Recife romântico dos crepúsculos das pontes
E da beleza católica do rio.

In: CARDOZO, Joaquim. Poesias completas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.6-7