quarta-feira, 27 de maio de 2020

Opinião do dia – Celso de Mello*

Entendo que, sem um Poder Judiciário independente, que repele injunções marginais e ofensivas ao postulado da separação de Poderes, e que buscam muitas vezes ilegitimamente controlar a atuação dos juízes e dos tribunais, jamais haverá cidadãos livres, nem regime político fiel aos princípios e valores aos primados que consagram a democracia. Sem um Poder Judiciário independente, não haverá liberdade, nem democracia.

*Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, na sessão da Segunda Turma da Corte. O Globo, 27/5/2020.

Paulo Fabio Dantas Neto* - Fases e faces do isolamento político de Bolsonaro

O isolamento político do presidente Bolsonaro quase sempre vem sendo tratado como processo contínuo e, de certa forma, como um destino inexorável. O próprio presidente usou, na reunião ministerial de 22.04, a imagem do barco em direção a um iceberg. Ele não parece se importar muito com isso. Parece veraz quando diz que está se lixando para a reeleição. Sua aposta é outra e errará o partido ou liderança de oposição que centrar sua estratégia em acumular força para vencê-lo nas urnas de 2022. Bolsonaro deve saber que a recessão econômica, já certa, é fator que, somado à sua conduta temerária perante a pandemia, complica as chances de vencer uma eleição em dois turnos. Seu destino eleitoral mais provável seria o que teve Haddad, em 2018. Como não tem compromisso democrático, nem espírito esportivo, adota um script golpista. Perdido por um, perdido por mil. A melhor defesa é o ataque. Só falta descobrir como esse script terá sucesso na presença das instituições defensivas da Carta de 88.

Às vezes, analistas cometem erro similar ao de Bolsonaro. Tratam seu isolamento político como dado. Prestam mais atenção ao embate publicístico e atenção secundária a movimentos moleculares no interior de arenas institucionais, onde a política é decidida, ainda mais em tempos de isolamento social. Por esse viés, o isolamento de Bolsonaro é mais um pano de fundo, não um processo mutante e sinuoso, que merece ser acompanhado mais de perto.

É certo que o isolamento político é relevante e que a erosão do apoio social ao presidente, caso prossiga, deve agravá-lo ainda mais. Mas esse isolamento diminuiu, a partir de meados de abril. O ponto de inflexão foi a exoneração de Luiz Mandetta, do ministério da Saúde. Ali Bolsonaro começou a sair das cordas e passou a atacar o Congresso e os governadores, coração e braços da articulação política que produzia governabilidade e cooperação federativa para combate à pandemia e a redução de danos econômicos e sociais que ela causou. Livrando-se do ministro, eliminou um dos fatores de convergência e despolarização, condições ambientais da política nas quais o presidente respira mal. A polarização é seu oxigênio. Mas como o ministro saiu sem polarizar e o Congresso continuou focado, a dose certa do veneno teria que vir de outro lugar.

A segunda crise, com o ex-ministro Sergio Moro, não foi mero prolongamento da anterior. A conduta do presidente foi a mesma, mas os desdobramentos políticos das duas crises foram opostos. A primeira manteve e a segunda arrefeceu o isolamento do presidente. Provocado nos bastidores, o até então bem-comportado ministro desembarcou subitamente, ao seu estilo midiático. Sem qualquer controvérsia pública precedente, saiu atirando. Em pouco mais de uma semana caiu, vertiginosamente, a taxa de oxigênio do ar. Bolsonaro e Moro o confiscaram.

Merval Pereira - Sinais de alerta

- O Globo

A operação policial no Palácio Laranjeiras, residência oficial dos governadores do Rio, faz parte de um amplo mosaico de combate à corrupção que é bem vindo, mas traz consigo a desconfiança de que a Polícia Federal esteja sendo usada para objetivos políticos depois da mudança de chefia recente.

O fato de que esta é a segunda vez em pouco tempo que um governador do Rio recebe a visita da Polícia Federal em sua casa - o outro, Pezão, foi levado preso de lá - diz muito sobre a deterioração da política do Estado, onde milicianos e trambiqueiros de diversos naipes dominam os serviços terceirizados, especialmente os da Saúde, numa perversão que não parou no governo Sergio Cabral.

Os trambiqueiros são os mesmos, Mario Peixoto tinha ligação antiga com o governo anterior, e já na campanha sua presença no entorno de Witzel foi denunciada pelo também candidato Romário. Milícias disputam os poderes entre si, federal e estadual.

Os indícios contra o governador do Rio, Wilson Witzel, sempre foram muito fortes desde o inicio, quando ele desmontou o sistema unificado de polícias do Rio na Secretaria de Segurança organizado pelo militares durante a intervenção, e voltou a aceitar indicações políticas para o comando de batalhões, segundo informações das autoridades da época. O interventor foi o General Braga Neto, que hoje ocupa o Gebinete Civil da presidência de Bolsonaro.

Bernardo Mello Franco - Algo no céu de Laranjeiras

- O Globo

Bolsonaro festejou a operação da PF contra Wilson Witzel. Está claro que houve vazamento, mas é preciso cautela com a hipótese de uma grande conspiração

Há algo no céu de Laranjeiras além dos helicópteros da TV. A Operação Placebo despertou novas suspeitas de interferência na Polícia Federal. O alvo dos homens de preto foi Wilson Witzel, adversário político de Jair Bolsonaro.

Na segunda-feira, a deputada Carla Zambelli contou à Rádio Gaúcha que a PF estava prestes a revelar desvios em governos estaduais. Aliada do presidente, ela acrescentou que as operações desvendariam fraudes na saúde. Só faltou informar a placa das viaturas que cercariam a residência do governador do Rio.

Ontem o capitão comemorou a ação contra o desafeto. Ao ser questionado sobre o assunto, ele riu e deu parabéns à PF. Mais tarde, voltou a provocar Witzel. “Tem gente preocupada, querendo botar a culpa em mim”, debochou.

O ex-juiz se declarou vítima de perseguição política. Ele recebeu a solidariedade de outros rivais de Bolsonaro. O deputado Marcelo Freixo mencionou o risco de a PF virar uma “polícia política”. O governador de São Paulo, João Doria, disse ver sinais de uma “escalada autoritária”.

Zuenir Ventura - O troco de Barroso

- O Globo

Uma fina peça de elegância de estilo, delicadeza das indiretas

Ainda estávamos sob o impacto do vídeo, e algumas imagens teimavam em permanecer na memória, uma das quais se impunha: Bolsonaro plagiando Mussolini. “Só um povo armado é forte e livre” — escancarava. — “Povo armado jamais será escravizado. Eu quero todo mundo armado”. Nos dois casos, por “povo” entenda-se milicianos.

Os que procuravam atenuar a sensação desagradável ofereciam como consolo a alegação de que o Bolsonaro de hoje era outro, diferente daquele de 22 de abril, quando participou da reunião ministerial com o corpo pintado para a guerra.

Entre as mudanças, citava-se o encontro selando a paz com os governadores e a aproximação com o centrão, o do toma lá dá cá, outrora maldito. Falava-se até de um “Bolsonaro paz e amor”, distante daquele que soltou mais de 30 palavrões, o de tom agressivo convocando a tropa para a batalha.

Elio Gaspari - A diplomacia da inépcia

- O Globo / Folha de S. Paulo

Erro de Weintraub estava em julgar-se superior aos chineses

Com a exposição das falas tétricas da reunião ministerial de Bolsonaro, saem do Planalto sinais de preocupação diante de um eventual estrago que possa ocorrer nas relações do Brasil com a China.

Se um ministro chinês dissesse que o Brasil “é aquele cara que cê sabe que cê tem de aguentar”, porque eles nos vendem proteínas de que precisamos, e outro acrescentasse que a “globalização cega” levou o país a comprar alimentos de quem espalhou o “comunavírus”, a milícia bolsonarista estaria com a faca nos dentes. Bizarrices desse tipo partiram dos ministros Paulo Guedes, na reunião, e Ernesto Araújo, num artigo.

O professor Delfim Netto já ensinou que os governos precisam abrir a quitanda pela manhã, com berinjelas para vender e troco para a freguesia. O governo de Jair Bolsonaro só abre à noite, não tem troco nem legumes, e briga com as freguesas. À primeira vista faz isso movido por estranhas convicções, mas as encrencas que ele cria com a China são produto da inépcia.

Míriam Leitão - Lições de mais um dia intenso

- O Globo

É preciso investigar toda suspeita de corrupção na área da saúde, mas não pode haver risco de a PF virar a polícia política de Jair Bolsonaro

O Brasil supera a cada dia o grau de tensão da véspera. Ontem, o dia já começou com a operação contra o governador do Rio, Wilson Witzel, e todas as dúvidas que a cercaram. Depois de dias inteiramente crispados, o país se viu logo de manhã entre dois fogos: é preciso investigar qualquer suspeita de corrupção, principalmente no Rio, mas a Polícia Federal não pode se transformar na polícia política de Jair Bolsonaro. O bolsonarismo ajudou a espalhar a dúvida sobre a operação, com as declarações de Carla Zambelli e as comemorações do próprio presidente.

No meio da confusão do dia, o discurso do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pareceu um oásis. Era alguém lembrando que líderes lideram e que as instituições têm papéis a cumprir nos momentos trágicos do país. Maia começou fazendo o que Bolsonaro nunca fez, demonstrou sentimento em relação aos que morreram, aos que não puderam cumprir o ritual do luto, aos que se afligem com os seus nas UTIs, e aos profissionais da saúde que lutam na frente de batalha, “verdadeiros heróis”.

Na véspera, em nota, o presidente Bolsonaro avisou que vai continuar saindo para as aglomerações. “Sinto-me bem ao seu lado (do povo) e jamais abrirei mão disso.” Bolsonaro tem uma visão reducionista do povo brasileiro. Para ele, só contam os que se juntam em manifestações dominicais, com suas faixas antidemocráticas, em grupos minguantes, é bom que se diga. Ou os que se reúnem na claque do Alvorada.

Ricardo Noblat - Facções políticas em guerra aberta pelo poder no Rio

- Blog do Noblat | Veja

Um ex-capitão contra um ex-fuzileiro naval

Se um delegado da Polícia Federal, como contou o empresário Paulo Marinho, vazou para o senador Flávio Bolsonaro em outubro de 2018 que ele seria alvo de uma operação que poderia prejudicar a eleição do seu pai, por que duvidar que possam ter vazado informações sobre a operação da Polícia Federal que teve como alvos o governador Wilson Witzel, do Rio, e sua mulher?

A operação veio em boa hora para o presidente Jair Bolsonaro. A vida dele não está fácil. Responde a inquérito por tentativa de intervenção na Polícia Federal. Seu celular pode ser apreendido. Investigações no âmbito do Supremo Tribunal Federal levantam suspeitas sobre atos dos seus filhos. E a escolha que fez de recursar-se a combater o Covid-19 lhe cobrará um preço alto e justo.

Mas, por ora, isso está longe de significar que a operação que alcançou o casal Witzel tenha sido encomendada para amenizar a coça que os Bolsonaro estão tomando. Tampouco os comentários feitos de véspera por bolsonaristas sobre a possibilidade de o casal ter-se envolvido em bandalheiras, significam necessariamente que eles souberam da operação com antecedência.

Rosângela Bittar - Insensatez em moto-contínuo

- O Estado de S.Paulo

Primeiro escalão do Executivo não pode ignorar que Estado é Estado e governo é governo

Jair Bolsonaro e os militares que integram o governo civil, eleito pelo povo, estão a uma distância de 55 anos da ditadura em que exerceram o poder em função de um golpe. Eles têm muito a aprender com Anitta. Cansada de pedidos para opinar sobre política, sem nada entender do assunto, a cantora resolveu estudar e simplesmente contratou um professor de história contemporânea.

O primeiro escalão do Executivo não pode mais ignorar que Estado é Estado, governo é governo, justiça é justiça, crime é crime, e despacho de juiz não se discute, se cumpre. Tudo está muito bem definido desde que, com o estado de direito, o Brasil trocou o apelo às rupturas pelas práticas civilizadas de democracia.

Instalados no Palácio do Planalto e em milhares de cargos governo afora, os militares são hoje responsáveis por ações e decisões que afetam a vida das pessoas deste mundo normal. Ações e decisões das quais, aí está a diferença do seu outro tempo, a sociedade, os partidos, as instituições, sentindo-se agredidos e impotentes, podem recorrer à Justiça.

No cerne do agravamento das relações da Presidência com o Supremo Tribunal Federal, elevado ao paroxismo no último fim de semana, está a incompreensão brutal dos limites das atribuições constitucionais dos poderes, das leis, dos regulamentos e até dos dicionários. Esta distorção está na base do alerta e da ameaça implícitos nas notas de demarcação de território, da ativa e da reserva, que publicaram contra decisões judiciais. A animosidade vem de antes quando, em outros governos, tornaram agudas, pela intimidação, tensões políticas em vésperas de votações importantes pelo Supremo. No mandato Bolsonaro, porém, em que ocupam em grande número os postos executivos, as estocadas se multiplicam. O governo é agressivo e conflituoso e a sociedade tende a buscar mais o discernimento da Justiça.

Vera Magalhães - Tudo dominado

- O Estado de S.Paulo

Após reunião, Bolsonaro interferiu na PF e ‘escancarou' política armamentista

Não se pode dizer que Jair Bolsonaro não logrou êxito na pauta que levou à dantesca reunião ministerial de 22 de abril. A partir dali ele de fato:

* interveio na Polícia Federal;

* “escancarou” a política armamentista de seu governo em várias medidas;

* está sendo informado, e informando seus aliados, sobre passos de investigações;

* degolou o ministro da Justiça, como ameaçou fazer,

* E fez os ministros se exporem, e muito.

Agora só falta “prender" governadores e prefeitos, como pregou a diligente Damares Alves, mas não parece estar distante o dia em que ele tentará essa jogada.

De todas as agendas que explicitou no encontro, a das armas acima de tudo é uma das mais avançadas.

O presidente revogou, e anunciou no Twitter, portarias editadas pelo Exército que previam a marcação e o rastreamento de armas e munições.

Mais: o general Eugenio Pacelli, que havia assinado as portarias estabelecendo a necessidade de rastrear armas e munições, depois revogadas, foi exonerado da função e saiu dizendo que houve pressão por parte da indústria armamentista.

Monica De Bolle* - Estupidez em cima de estupidez

- O Estado de S.Paulo

Fala de Guedes na reunião de 22 de abril revela alguém que se comporta como um gestor de fundo de quintal

O título deste artigo é autoplagiado do meu livro Como Matar a Borboleta Azul: uma Crônica da Era Dilma, publicado em 2016. No capítulo sobre os anos 2014 e 2015, tratei da má condução da economia e das escolhas que se revelariam estúpidas, ainda que não mal-intencionadas. Falava ali sobre o ensaio de Carlo Cipolla, As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, sobre o qual já escrevi diversas vezes neste espaço, em que neste mês completo dez anos e que me rendeu colunas que acabaram sendo fonte para o livro sobre Dilma.

Recapitulo aqui para o leitor as cinco leis de Cipolla. A primeira reza que sempre e inevitavelmente cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação. A segunda lei estabelece que a probabilidade de certa pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dela própria. A terceira defende que uma pessoa estúpida é aquela que causa danos a outras sem tirar nenhum proveito para si, podendo até sofrer prejuízo com isso. A quarta lei mostra que as pessoas não estúpidas desvalorizam sempre o potencial nocivo das estúpidas. A quinta advoga, enfim, que o estúpido é o tipo de pessoa mais perigoso que existe.

Fábio Alves - Desemprego e desalento

- O Estado de S.Paulo

Situação do mercado de trabalho pode ser bem pior do que mostram índices oficiais

Assim como acontece com as estimativas para o desempenho do PIB brasileiro, que vêm sofrendo seguidas revisões para baixo, ainda pairam incertezas sobre qual será o impacto completo no mercado de trabalho das medidas de restrição à atividade econômica, adotadas por Estados e municípios, para conter a disseminação do coronavírus.

O IBGE divulga hoje a taxa de desemprego referente ao trimestre encerrado no mês de abril, o pior em termos de atividade econômica desde o início da pandemia do coronavírus, com o consenso entre os analistas apontando um aumento de 1 ponto porcentual nessa taxa, passando de 12,2% no trimestre encerrado em março para 13,2% em abril.

Esse indicador está longe de refletir a realidade: a queda rápida da população econômica ativa (PEA), com o aumento no número de pessoas que deixaram de procurar trabalho, acaba gerando um efeito estatístico, limitando a alta na taxa de desemprego. Em março, por exemplo, houve até quem estimasse que a queda na taxa de participação da força de trabalho tirou quase 1 ponto porcentual da taxa de desemprego.

Além disso, a leitura desse indicador para o trimestre encerrado em abril ainda estará contaminada pelos números de fevereiro, antes das medidas de distanciamento social terem quase paralisado a atividade econômica no País.

Fernando Exman - Falta educação na Pasta da Militância

- Valor Econômico

Setor tem desafios urgentes a enfrentar na pandemia

O Ministério da Educação mantém-se fiel à tradição, no governo Jair Bolsonaro, de protagonizar crises políticas. A gestão de uma pasta fundamental para o desenvolvimento do país começou mal, avançou mandato adentro de forma trôpega e, durante a pandemia, apequenou-se.

O setor tem diversos desafios a enfrentar. Muitos deles se tornaram urgentes, mas outros poderiam ter sido resolvidos há tempos.

Os potenciais problemas da pasta tornaram-se perceptíveis já no período de transição, no fim de 2018. Militares e acadêmicos que formulavam seu planejamento estratégico foram surpreendidos quando Ricardo Vélez Rodríguez entrou no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) como um professor pouco conhecido e saiu como o indicado para ocupar a função de ministro de Estado. A vaga era entregue à ala ideológica que formava a base eleitoral do presidente recém-eleito, criando severos obstáculos à execução do plano programado pelos técnicos que integravam este grupo setorial da campanha eleitoral.

Não demoraria para que Vélez caísse. Mesmo assim, o cargo permaneceu sob influência do grupo que passou a usar a política externa, além das áreas de direitos humanos e da educação, para manter militantes bolsonaristas mobilizados em defesa de um governo com cada vez mais frentes de batalha nos campos político e jurídico.

Cristiano Romero - Por que caçoamos da própria desgraça?

- Valor Econômico

No Brasil, o debate é interditado por quem não quer mudança

Uma das maneiras mais eficazes _ e desonestas _ de interditar um debate é atribuir simploriedade às ideias do interlocutor, enquadrá-las num "slogan" pejorativo e, assim, promover sua incompreensão no imaginário histórico e coletivo de uma sociedade. De fato, muitas vezes, a artimanha usada para sabotar o debate é mais engenhosa do que a iniciativa dos que pretendem enriquecê-lo. E, desta forma, as sociedades não progridem.

A Ilha de Vera Cruz é, possivelmente, a maior vítima desse perverso "controle" de ideias. Aqui, o passado não acaba nunca, a mistificação costuma prevalecer sobre a lógica e a ciência, o que está visivelmente errado não se muda porque, simplesmente, a maioria dos viventes, diz-se, não aceita. E, assim, fazemos vistas grossas para o anacronismo e banalizamos nossas tragédias.

Um exemplo inaceitável de banalização cotidiana: 60 mil brasileiros vão morrer assassinadas neste ano. Sessenta mil cidadãos vão perder suas vidas em 2020 porque é esta uma estatística macabra. Há alguns anos é esse o número de pessoas marcadas para morrer neste país. O perfil médio dos assassinados é de jovens entre 17 e 24 anos, aqueles que, nas nossas famílias, nessa idade estão estudando ou iniciando sua brilhante carreira profissional.

A estatística, esta implacável, nos envergonha e humilha, como a perguntar: "Ei, vocês, como sociedade, não vão fazer nada para acabar com isso?".

Nilson Teixeira* - A década em marcha à ré

- Valor Econômico

O desempenho nesta década, com declínio da renda per capita, embute o risco de o Brasil país não estar preso na armadilha da renda média, e sim retrocedendo

O declínio da renda nesta década não tem precedentes na história contemporânea do país. Uma tragédia sob muitas métricas. O PIB no fim da década será menor do que no seu início, o país terá ficado mais pobre, as oportunidades serão mais escassas, em particular para os mais pobres, e o endividamento do setor público aumentará muito, superando o de quase todos os países emergentes.

O PIB recuará cerca de 1% nesta década, diminuindo em termos per capita em mais de 9% ante 2010. A renda mensal média por habitante aos preços de 2017 diminuirá de R$ 2.706 (US$ 940) em 2010 para R$ 2.475 (US$ 730) em 2020, assumindo taxa de câmbio no fim deste ano de R$ 5,50/US$.

Esse péssimo desempenho pode ser atribuído a diversos motivos, entre os quais: choques expressivos, em especial o associado à covid-19; má gestão das políticas públicas em várias frentes e em vários governos; e baixa produtividade dos trabalhadores, consequência principalmente da reduzida qualidade da educação no país.

Hélio Schwartsman - Crime ou interferência

- Folha de S. Paulo

Mesmo perdido, um presidente tão pequeno promove desgastes institucionais

A PF fez buscas na residência do governador Wilson Witzel porque as suspeitas contra ele são sólidas ou para agradar a Jair Bolsonaro? Não me sinto ainda em condições de cravar nenhuma das opções.

Pandemias são o sonho de consumo dos corruptos. Da noite para o dia, processos licitatórios são dispensados e equipamentos médicos passam a ser disputados ferozmente por vários países, fazendo com que os próprios preços deixem de funcionar como valor de referência. Quanto se pode pagar por um ventilador nessas condições? Seria uma surpresa se as quadrilhas que sempre fraudaram as compras públicas não procurassem tirar vantagem dessa conjuntura.

Witzel está envolvido nisso? Não sei. Mas sei que, assim como ninguém deve ser considerado culpado antes de um julgamento, ninguém deve ser considerado acima de qualquer suspeita e blindado contra investigações —viu, general Heleno?

Bruno Boghossian - Bolsonaro já desmoralizou a PF

- Folha de S. Paulo

Há um mês, presidente disse que 'minha PF' investigaria uso do dinheiro para o coronavírus

Jair Bolsonaro mudou de ideia. Há pouco mais de um mês, o presidente batia na mesa ao esbravejar contra a Polícia Federal. Enviava mensagens ao ministro da Justiça para reclamar de apurações contra seus aliados e reclamava da lentidão do órgão em atender a seus interesses. Agora, ele sorri por trás da máscara e parabeniza a corporação por investigar um de seus rivais.

A alegria seletiva reforça a visão torta que o presidente tem das instituições. Quando a PF se aproxima de seu grupo político, Bolsonaro se diz perseguido e sabota o órgão, em busca de proteção. Quando a corporação bate à porta de seus adversários, a reação é mais generosa.

Ruy Castro* - Bolsonaro segue a receita de Mussolini

- Folha de S. Paulo

Para o líder fascista deu certo por muitos anos. Mas ele terminou com a cabeça para baixo

Se há um insulto que, de tão abusado, sofreu enorme desvalorização é o de fascista. No começo, designava as milícias do italiano Benito Mussolini, que marcharam sobre Roma em 1919 e o levaram ao poder. Aos poucos, tornou-se sinônimo de regime totalitário e, com o nazismo, chegou ao máximo da brutalidade. Durante o século 20, no entanto, o epíteto se generalizou e passou a designar qualquer pessoa que não seja "de esquerda". É um leque que abrange dos hidrófobos de direita assumidos aos vagamente reacionários, conservadores, centristas, liberais, neoliberais e até social-democratas.

Todo mundo já foi um dia chamado de fascista, tanto o PM que abre a pontapés a porta de um barraco na favela quanto o guarda que nos multa no trânsito. Deixou de ser insulto. Com isso, os fascistas de verdade —que professam com fervor e devoção os princípios do fascismo— ficaram num limbo que lhes permite operar com desembaraço. Talvez seja hora de defini-los mais tecnicamente.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Suspeitas voltam com operação da PF contra Witzel – Editorial | O Globo

Há sólidas evidências de corrupção na área da saúde, mas vazamento da operação causa preocupações

No encadeamento de crises que caracteriza o governo, a vertente da Polícia Federal e sua vinculação ao Planalto é um foco que volta a chamar a atenção desde o final da madrugada de ontem, quando viaturas da Polícia Federal entraram nos jardins do Palácio Laranjeiras, residência oficial do governador do Rio de Janeiro, cargo ocupado por Wilson Witzel, adversário político do presidente Bolsonaro. Em um momento de normalidade política, seria mais uma demonstração de seriedade e independência da PF, como aconteceu nestes últimos anos no ciclo de combate à corrupção.

Mas o presidente acabou de substituir o ministro da Justiça Sergio Moro por André Mendonça, que, com o aval de Bolsonaro, colocou Rolando Alexandre de Souza na direção-geral da PF, o que faz supor que os clamores do presidente para ter gente na polícia com quem possa “interagir” foram atendidos. Por “interagir” pode-se entender tudo, considerando-se o estilo pessoal do presidente e seu perfil centralizador e autoritário. Porém, não se tem dúvida de que o mandado de busca e apreensão concedido pelo ministro Benedito Gonçalves, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cumprido no Laranjeiras, e não só nele, esteja bem fundamentado.

Poesia | Ferreira Gullar - Não há Vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

— porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira