domingo, 2 de agosto de 2020

Fernando Henrique Cardoso* - Dois centenários

- O Estado de S.Paulo / O Globo

O Brasil precisa de intelectuais da têmpera de Celso Furtado e Florestan Fernandes

O ser humano é dotado de memória. Mas também se esquece. Há, contudo, pessoas que se transformam em ícones: essas não há como esquecer. Este ano, 2020, se vivos estivessem, e não só em nossa memória, fariam 100 anos Celso Furtado e Florestan Fernandes. Um deixou marcas na economia, o outro na sociologia. Ambos, em nossa história intelectual.

Conheci bem os dois. Fui formado na Faculdade de Filosofia da USP por muitos “mestres”. No meu caso, nenhum foi mais importante do que Florestan, desde que me deu um curso introdutório, em 1949. Celso conheci quando eu fazia, em 1962, uma pesquisa sobre o papel dos empresários no desenvolvimento econômico e fui ao Recife, com Leôncio Martins Rodrigues, para entrevistar alguns deles. Celso, então, já era diretor-superintendente da Sudene. Posso tê-lo visto antes em alguma conferência em São Paulo – também minha memória, aos poucos, está repleta de esquecimentos...

Não me esqueço, porém, de dois episódios. Fomos procurá-lo em seu apartamento, modesto, na Praia de Boa Viagem. Emprestou-nos um jipe da Sudene, com um motorista. Aproveitamos a visita que um casal de jornalistas iugoslavos faria ao Engenho da Galileia, famoso pelas ocupações de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para conhecermos a Zona da Mata. Anos mais tarde, eu detido na Oban, fui minuciosamente inquirido sobre os dois “comunistas” que haviam ido comigo àquelas plagas. Não os conhecia, foram apenas companheiros de viagem. O motorista era também informante da polícia...

Quando Celso e eu já éramos amigos, estava em Barcelona, no inverno de 1986, visitando minha filha Beatriz, que estudava lá. Uma bela manhã tocou o telefone. Era Celso, queria saber se eu também seria nomeado ministro, pois ele fora convidado por José Sarney para ocupar a pasta da Cultura. Teria de deixar a Embaixada do Brasil junto à Comunidade Europeia, em Bruxelas, para onde fora nomeado. Celso, servidor público por excelência, além de grande intelectual, era falado para outros ministérios, como o da Fazenda ou do Planejamento. Coube-lhe o da Cultura, que organizou e ao qual emprestou o prestígio de seu nome.

Merval Pereira - Organizando a bagunça

- O Globo

A quarentena, período em que ocupante de um cargo público fica impedido de empregar-se no setor privado para não utilizar informações privilegiadas a que tenha tido acesso durante seu período no governo, é uma figura nova na legislação brasileira, e, assim como se origina na concepção médica de isolamento para evitar o contágio de uma doença - como no nosso caso agora, com a pandemia da Covid-19 -, tem acepção mais ampla que começa a ser debatida à medida que os fatos políticos vão se desenrolando.

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, defendeu recentemente uma quarentena de 8 anos para que um membro do Ministério Público ou juízes possam entrar na carreira política. O prazo hoje é de seis meses, o que parece muito pouco mesmo, mas 8 anos é a mesma pena da Lei de Ficha Limpa, que torna inelegível por esse período o político punido.

A proposta surge justamente no momento em que a Operação Lava-Jato vem sendo criticada com mais veemência, e diversos setores da vida nacional se mobilizam para inviabiliza-la. Embora a retroatividade de uma eventual medida não seja razoável nem juridicamente aceitável, os meios políticos identificam no ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro o objeto dessa quarentena, que também impediria que procuradores mais notórios da Lava-Jato possam eventualmente se candidatar em 2022.

A retroatividade poderia, temem alguns, ser aplicável caso a mesma interpretação da Lei de Ficha Limpa dada pelo STF, que atingiu todos os políticos já condenados em segunda instância no momento de sua decretação, seja adotada agora, como regra para o registro de uma candidatura.

Vera Magalhães - Uma moda que passou

- O Estado de S.Paulo

Tão em voga nos palanques em 2018, combate à corrupção vira estorvo

“Fim ‘do’ Lava Jato! Fim ‘do’ Lava Jato!”. Com uma pandemia que já matou mais de 95 mil brasileiros ainda no auge, empregos minguando e economia à deriva, foi esse o coro com que Jair Bolsonaro, eleito, entre outros fatores, de carona no lavajatismo, foi recebido no interior do Piauí, escoltado justamente por um réu na Lava Jato, o senador e presidente do PP, Ciro Nogueira.

A nova onda de críticas, reações e ofensivas contra a mais notória força-tarefa de combate à corrupção já montada no Brasil une o presidente, o presidente do Supremo Tribunal Federal, José Antonio Dias Toffoli, e o procurador-geral da República, Augusto Aras.

Bolsonaro iniciou seu divórcio do lavajatismo com a saída de Sérgio Moro do governo. O deputado que nunca deu a mínima para combater a corrupção, enfiou a família toda na política, enriqueceu graças a ela, praticou toda sorte de petecagem miúda e já esteve em todos os partidos fisiológicos do abecedário, de repente virou o “capitão” que ia banir os malfeitores. Um enredo pobre e falso como uma nota de R$ 200 com a estampa da ema do Alvorada, mas muita gente embarcou na fantasia.

Luiz Carlos Azedo - As pedras no caminho

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato”

O presidente Jair Bolsonaro entrou em modo reeleição. Há uma bipolaridade nessa atitude: o lado negativo é perder o foco na gestão para priorizar a disputa política, dois anos e meio antes do pleito de 2022; o positivo, a aposta na eleição, ou seja, na política, o que significa uma mudança de rumo, se considerarmos a escalada de confrontos com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso em que vinha, uma ameaça real à democracia. Não há novidade nenhuma nessa antecipação, o mesmo foi feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se sentiu ameaçado pelo mensalão; e pela presidente Dilma Rousseff, depois dos protestos de maio de 2013. É óbvio que a campanha antecipada merece críticas, mas daí negar a aposta nas eleições como uma mudança em relação à postura golpista em que vinha é um grave equívoco.

Desde a aprovação do instituto da reeleição, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todo governante é favorito nas disputas eleitorais. Mesmo em situações dificílimas, como aconteceu com Lula, no pleito de 2006, e Dilma Rousseff, em 2014. A força de inércia do Estado brasileiro é formidável, seja por causa da centralização crescente da arrecadação tributária nas mãos da União, e que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer centralizar ainda mais, seja pelo fato de termos um Estado ampliado, que mexe com a vida dos cidadãos em todo o território nacional. A rigor, somente o estado de São Paulo, que também tem muitos tentáculos, se basta em relação ao governo federal do ponto de vista dos serviços que oferece aos seus cidadãos. Não à toa é o único em condições de sustentar frontal e permanentemente oposição ao governo federal, sem colocar em risco a própria governabilidade.

Janio de Freitas – Cada vez mais longe

- Folha de S. Paulo

Os que têm potencial e brigação de reagir tratam o avanço neofascista como mais um fato cotidiano

Com um largo passo, afastamo-nos mais da democracia, dos nossos direitos civis e da vigência plena da Constituição. E como se isso não acontecesse ou, se percebido, não fosse importante. A falta de reação proporcional é tão grave quanto o passo a que fomos empurrados.

Todos os governos de índole fascista começam a torná-la realidade por três ou quatro medidas que tolhem a liberdade de discordância.

Uma dessas medidas clássicas da derrubada de democracias é a identificação, fichamento e vigilância sigilosa de reais ou potenciais opositores ao autoritarismo. Uma das primeiras providências do gorilismo de 1964, por exemplo, foi a criação do SNI, serviço de espionagem interna mais tarde chamado de monstro pelo próprio criador, o sinistro general Golbery.

Tem essa mesma finalidade a função atribuída à Seopi, Secretaria de Operações Integradas, pelo recém-ministro da Justiça, André Mendonça, não muito menos sinistro na sua fisionomia sem expressão.

Eliane Cantanhêde - Lavação de roupa suja

- O Estado de S.Paulo

Com Bolsonaro em campanha e jogando o governo no colo dos ministros, foco é no MP e no STF

Com o presidente Jair Bolsonaro em campanha para 2022, sem máscara e promovendo cloroquina e aglomerações, o foco vai para os órgãos de investigação do País. A bola da vez é o Ministério Público, depois do escanteio do Coaf, das tentativas de domar o leão da Receita e de investigações sobre interferência política na Polícia Federal. Pairando sobre isso, a suspeita de que o Ministério da Justiça ressuscita o SNI da ditadura.

O clima está animado, como se viu no bate-boca virtual entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o braço-direito do seu antecessor Rodrigo Janot, o subprocurador Nicolao Dino. A reunião era sobre orçamento, mas Dino subiu o tom contra Aras por seus ataques à Lava Jato. A defesa da Lava Jato virou uma lavação de roupa suja. Ao vivo!

A bem de Aras, diga-se que a guerra interna no Ministério Público vem de longe e teve momentos agudos na gestão polêmica e até hoje mal explicada de Rodrigo Janot, cuja marca é a delação premiada de Joesley e Wesley Batista. O resultado foi tenebroso para o País e espetacular para os irmãos da J&F, que, como nos filmes de mafiosos, acabaram com seus aviões, lanchas e apartamentos maravilhosos em Miami e Nova York.

Até hoje, três anos depois, a delação continua válida, nas mãos do relator no Supremo, Edson Fachin. O próprio Janot pediu a revisão, Raquel Dodge foi na mesma linha e aqui vai uma informação: Aras também articula com o STF o fim da delação e dos prêmios fantásticos para os Batistas. Pelas regras, eles perdem a mamata, mas as provas que entregaram continuam válidas.

Ricardo Noblat - O truque de Aras para livrar Bolsonaro de ser processado por Dilma

- Blog do Noblat | Veja

Se depender de Augusto Aras, Procurador-Geral da República, a maneira mais segura de o presidente Jair Bolsonaro atacar seus desafetos políticos sem receio de ser processado é limitar-se a reproduzir o que disse no passado sobre eles, por mais ofensivo que seja o que tenha dito.

Há quase um ano, a ex-presidente Dilma Rousseff entrou no Supremo Tribunal Federal com uma queixa-crime contra Bolsonaro. Em vídeo postado na sua rede social em agosto último, Bolsonaro reproduziu um discurso que fizera na Câmara dos Deputados em 2014 no qual comparou Dilma a uma “cafetina”.

Cafetina é mulher dona de prostíbulo. Ou que agencia prostitutas mediante pagamento. Mulher de baixos sentimentos. Também chamada de madame, proxeneta. À época, Bolsonaro estava indignado com Dilma por conta da Comissão Nacional da Verdade, que investigara crimes cometidos pela ditadura militar de 64.

Hélio Schwartsman - A catástrofe

- Folha de S. Paulo

Obras como a de Richard Horton é com o que de melhor podemos contar na pandemia

Richard Horton é o editor-chefe do periódico médico britânico “The Lancet”, no qual foram publicados alguns dos mais importantes estudos sobre a Covid-19. Se há alguém que acompanhou de perto e em detalhe o surgimento e a evolução da pandemia, é ele. É dessa posição privilegiada que ele escreveu “The Covid-19 Catastrophe”, um dos primeiros “instant books” sobre a epidemia.

A principal vantagem desse tipo de obra é que ajuda a organizar o caos. Se o jornalismo é o primeiro rascunho da história, os “instant books” são sua versão ampliada e passada a limpo. Oferecem um relato mais ordenado e holístico de eventos ainda em andamento.

Para Horton, o mundo falhou, daí o termo “catástrofe” que consta do título do livro. Os riscos de uma pandemia viral são conhecidos pelo menos desde os anos 80, com a eclosão da Aids. Ainda assim, fizemos pouco para aprimorar a vigilância epidemiológica, que, para funcionar, precisa ser uma iniciativa global e não de nações isoladas.

Bernardo Mello Franco - Siqueirinha faz escola em Brasília

- O Globo

O desembargador que ofendeu os guardas não está sozinho. Em Brasília, multiplicam-se episódios de autoritarismo e incivilidade entre homens da lei. Um deles se deu na sexta-feira, em sessão do Conselho Superior do Ministério Público.

Em cruzada contra a Lava-Jato, o procurador-geral Augusto Aras enfrentou uma rebelião de colegas. Quando o subprocurador Nicolao Dino tentou contestá-lo, foi calado aos gritos. “Não aceitarei ato político em sessão de orçamento”, exaltou-se Aras.

Mais tarde, ele permitiu a manifestação dos insatisfeitos. “Um Ministério Público desacreditado, instável e enfraquecido somente atende aos interesses daqueles que se posicionam à margem da lei”, afirmou Dino. Foi a senha para um novo bate-boca.

Irritado, Aras passou a se dizer vítima de fake news. “Sob a voz lânguida de algum colega, existe a peçonha da covardia de não mostrar a cara”, engrossou. Em seguida, ele fez um comentário machista sobre a subprocuradora Luiza Frischeisen. Depois impediu uma fala do subprocurador Nívio de Freitas. “Vossa excelência não tá com palavra, não. Não vai ter palavra”, decretou.

Num monólogo enfezado, o procurador-geral acusou os colegas de promoverem “anarcossindicalismo”. Também atacou a imprensa, que viveria “a babar por sangue e reputações”. Finalmente, declarou que a sessão estava encerrada e se levantou da cadeira, sem ouvir a resposta dos ofendidos.

Míriam Leitão - A velha CPMF de roupa nova

- O Globo

O governo tem fantasiado o novo imposto que pretende propor com roupas modernas. Segundo dizem os economistas da equipe econômica, seria o mesmo que está sendo pensado na Europa para as transações digitais. Na verdade, o que está em debate em várias partes do mundo é totalmente diferente de um imposto sobre as movimentações financeiras — eletrônicas ou não — dos consumidores. Tenta-se saber como taxar as grandes empresas da tecnologia, as mesmas que dias atrás foram interrogadas na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos para se defender da acusação de poder excessivo.

Quem explica a diferença entre uma nova versão da CPMF e o que se tenta na Europa é o economista Pedro Henrique Albuquerque, da Kedge Business School, em Marselha, na França. Ele trabalhou no Banco Central, esteve na equipe que implantou as metas de inflação e é autor de um estudo de referência sobre a CPMF e seus impactos na economia brasileira:

— O objetivo na Europa não é tributar transação financeira ou a compra e venda por cartão de crédito. É fazer as grandes corporações americanas pagarem mais impostos. Apple, Google, Facebook, Microsoft, Amazon, ir atrás das receitas dessas empresas. Uma das ideias seria um imposto eletrônico, mas se for feito, vai ter que ser de uma forma que a Amazon pague mais, mas o pequeno comerciante que vende produtos eletrônicos, não. Do contrário, seria injusto. O problema é o poder de monopólio dessas companhias, esse é o centro da discussão.

Pedro Albuquerque fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos e há 10 anos é professor na França. No seu estudo sobre a CPMF, publicado em 2001, ainda no Brasil, ele mostrou várias das distorções provocadas pelo tributo: aumento do spread bancário, estímulo à informalidade, custo maior para os mais pobres e peso excessivo sobre as empresas menores.

Vinicius Torres Freire – Dólar, domésticas e os juros BC

- Folha de S. Paulo

Economia brasileira está arruinada e nosso pacote de socorro social começa a expirar em setembro

Dólar a R$ 5 já foi motivo de meme. Agora, além do Banco Central e dos povos dos mercados, pouca gente fala no assunto, talvez porque faltem reais até para os remediados, porque os importados sumiram dos supermercados de bairro rico, dada a carestia, e porque não se pode viajar para fora.

De março a junho, a despesa dos brasileiros com viagens internacionais foi de US$ 1,25 bilhão. No mesmo período do ano passado, de US$ 5,8 bilhões. No tempo em que "empregada doméstica ia para Disneylândia, uma festa danada", segundo Paulo Guedes, o gasto era de US$ 8 bilhões (em 2013 e 2014).

Mas o assunto aqui não é a mentalidade doméstica do ministro da Economia e sim o dólar, que cai pelas tabelas.

Depois do pico do pânico financeiro de março, a moeda americana perdeu valor, baixando ao menor nível desde 2018 em relação ao dinheiro de seus parceiros comerciais. Está longe ainda, uns 20%, do fundo do poço de 2011-12, mas se tornou assunto da finança, até porque as taxas de juros americanas de prazo mais longo também foram ao chão.

Dorrit Harazim - Brincadeirinha séria

- O Globo

Trump não está propenso a aceitar um sucessor na Casa Branca já em 2020

O Nobel de Economia de 2008 e dublê de colunista Paul Krugman define o presidente dos EUA, Donald Trump, como a encarnação de um pesadelo que ronda tanta gente: ter um chefe incompetente que faz de tudo para se agarrar ao cargo e, de lambada, destrói a própria empresa sob seu comando. No caso, a firma se chama Estados Unidos da América. Crítico escancarado do 45º ocupante da Casa Branca, Krugman elenca as decisões e as inações de Trump nestes 6 meses de peste e conclui que, ao desastre epidemiológico e econômico no país, vem, agora, se juntar a falência política do negacionista em chefe. E que talvez já seja tarde para evitar, também, a sua eventual debacle eleitoral em novembro.

É desse contexto que brota a mensagem recebida na manhã da quinta-feira, dia 30, pelos 84,4 milhões de seguidores de Trump no Twitter . Poucos minutos antes, o mundo fora informado de que o PIB americano sofrera a maior queda desde a Grande Depressão. Sem tocar em assunto tão tóxico, o presidente mudou a chave com destreza. No estilo que domina como ninguém — adjetivos que gritam, interrogação final que simula inocência na pergunta — postou: “Com a votação universal por correio, 2020 será a eleição mais IMPRECISA e FRAUDULENTA da história. Será um grande constrangimento para o país. Adiar a eleição até que as pessoas possam votar de maneira adequada, segura e protegida???”.

De pronto instalou-se a habitual reação em cadeia aos disparates do presidente. Tal como ele planejara.

Para muitos, era preciso denunciar a intenção de Trump de tentar adiar eleições que nos EUA se realizam na mesma data desde 1845 — “na terça-feira depois da primeira segunda-feira do mês de novembro”, diz a lei. Tomando a pandemia como justificativa, Trump estaria tentando ganhar tempo e fôlego para se recuperar nas pesquisas eleitorais que no momento lhe são cruéis.

José Carlos Capinan* - Otimismo e realidade

- Esquerda Democrática 

Memoráveis dias da quarentena, ao fim da tarde, aguardo latir os cães, fiéis ao encontro, interlocutores únicos do vazio, anunciando a vigília, todas as noites, quando me acostumava ao soar das “Ave-Maria” agora ausentes.

Narrativas dão conta de um novo amanhã, anunciando que a experiência do isolamento mudará o mundo, superando os conflitos da competição, uma vez provada a fragilidade da existência humana, impotente diante da morte apesar do extraordinário avanço do conhecimento científico.

Ao invés do niilismo, parecemos acreditar que a força da solidariedade despertará um novo homem, prisioneiro do consumismo, fazendo surgir dessa pandemia assustadora uma regeneração universal da humanidade, libertando-a, por consequência, da corrida por ter, por possuir cada vez mais, esbarrando às cegas no outro, sem perceber sua desvairada pulsão egotista por obter carros, lanchas etc... objetos, numa ânsia por matar uma sede insaciável.

Desconfio de que a lição não será suficiente. Certamente encontraremos a vacina, que nos livrará desse pesadelo da morte, a nos aguardar do lado de fora de nossos abrigos. Mas a vacina contra o egoísmo sequer está sendo cogitada.

Mudanças comportamentais ocorrerão mas o capital voltará a devorar nossas entranhas, nos mercados, nas igrejas, nas ruas e, inclusive, dentro dos nossos lares.

Que me perdoem os otimistas. Profundamente, desejo que estejam certos, pois é possível e necessário um mundo melhor. Entretanto...

*José Carlos Capinan, poeta e músico, membro da Academia de Letras da Bahia.

Entrevista | Trump deixará instituições em estado muito pior do que quando assumiu, afirma autor de 'Como as democracias morrem'

Em entrevista exclusiva, Steven Levitsky comenta possibilidade de fraude em novembro e de Trump não reconhecer resultado das eleições; segundo ele, 'a democracia americana está doente'

Paola De Orte | O Globo

WASHINGTON - Nesta semana, logo após a divulgação de dados que mostravam queda de 33% em termos anuais no segundo trimestre da economia americana, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, publicou um tuíte sugerindo que as eleições fossem adiadas. A possibilidade foi descartada no mesmo dia por aliados do presidente no partido Republicano. Analistas trouxeram diferentes explicações para a declaração: Trump poderia estar tentando distrair o público dos números ruins na economia ou preparando seus apoiadores para uma narrativa a ser emplacada caso perca as eleições.

O professor da Universidade de Harvard Steve Levitsky acredita que a publicação reflete a personalidade do presidente, mas pode também ter por trás uma estratégia de desacreditar o sistema eleitoral como um todo. O coautor do best-seller “Como as Democracias Morrem” acredita que esse tipo de ação faz parte de um padrão mais amplo de comportamento autoritário e que, apesar de o país ter instituições democráticas sólidas, elas estão hoje mais frágeis do que quando o presidente assumiu.

• Qual o objetivo do presidente ao sugerir adiar as eleições?

Trump, ao contrário de outros presidentes, faz coisas sozinho, sem consultar assessores. Pode ter sido uma estratégia ou apenas algo estúpido que ele tuitou. Se foi uma estratégia, não acho que ele esteja tentando adiar as eleições. Está claro na Constituição que só o Congresso pode fazer isso, e ele não tem apoio do Congresso. Ainda que possa utilizar uma manobra autoritária para violar a Constituição, é improvável. O mais provável é que tenha sido apenas algo estúpido que disse. Ou pode ser parte de um esforço maior para desacreditar as eleições. Ele sabe que há chance alta de perder. Não está claro se está disposto a aceitar a derrota. Uma das coisas que tem feito é falar em fraude, que o voto por correio é fraudulento, ainda que ele mesmo tenha votado assim muitas vezes. Tenta minar a legitimidade das eleições, criando uma narrativa que o permita dizer que terão fraude. Assim, quando perder, pode alegar isso. Não tenho certeza de que exista um plano autoritário por trás, não acho que ele tenha o poder de usar isso para continuar no cargo. Pode ser apenas uma coisa pessoal para seu ego, para que possa sair por aí gritando que não perdeu.

O futuro do SUS – Editorial | O Estado de S. Paulo

Ter de contar com o SUS não deveria ser um pesadelo para milhões de brasileiros, que assim veem a prestação do serviço

Antes da eclosão da pandemia de covid-19, a pressão sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) já era crescente. O SUS há muito é subfinanciado, o que tem consequência direta na qualidade do serviço que presta à população. Agrava este quadro o fato de muitos brasileiros terem perdido o plano de saúde particular em decorrência do desemprego provocado pela crise econômica e passado a depender do sistema público de saúde. Movimento semelhante também pode ser observado no sistema público de educação, dado que a mesma crise reduziu o orçamento de muitas famílias para pagar mensalidades escolares. Nesse contexto, tende a aumentar o grau de exigência da sociedade sobre as contrapartidas estatais à carga tributária.

A chegada do novo coronavírus ao País obrigou as três esferas de governo, além do Poder Legislativo, a pensar, de uma hora para outra, sobre as condições atuais do sistema público de saúde. E, deve-se reconhecer, muito já foi feito nesses quatro meses de pandemia no Brasil. O que se viu nesse curto espaço de tempo não tem precedentes na história de mais de três décadas do SUS.

O Estado apurou que às 18 mil vagas em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) do SUS - somados os hospitais da União, Estados e municípios - foram acrescidas cerca de 10 mil para atender à emergência sanitária. Note o leitor que em apenas 16 semanas houve um incremento de 55% nos leitos de UTI do SUS. A bem da verdade, uma parte desses leitos foi instalada em hospitais de campanha, de fácil desmobilização. Mas o fato é que o SUS, hoje, está muito mais bem equipado para atender a população do que jamais esteve. E não só em leitos de UTI. Além dos respiradores, há mais monitores cardíacos, mais máquinas de hemodiálise, mais aparelhos de raio X e tomógrafos. Há mais recursos humanos.

Combate à corrupção não tem dono – Editorial | O Estado de S. Paulo

Brasil já deu provas de que pode combater seus corruptos sem precisar de salvadores da pátria

Mais uma vez, como era previsível, críticas recentes à Lava Jato, como as feitas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, provocaram reações duras de certos círculos, que enxergam nesses reparos uma tentativa de acabar com a operação e, assim, minar o combate à corrupção no Brasil.

Em seus mais de seis anos de atuação, a Operação Lava Jato decerto amealhou muitos inimigos, especialmente ao encontrar provas que levaram à cadeia gente poderosa, acostumada à impunidade. Por essa razão, é provável que haja muitos corruptos que, fustigados pela força-tarefa sediada em Curitiba, estejam contando as horas para o fim da operação.

Mas é certamente exagerado considerar que a eventual extinção da Operação Lava Jato represente um golpe mortal na luta contra a corrupção. Nesses termos, parece que os 15 procuradores da Lava Jato são os únicos capazes de garantir a continuidade do combate aos malfeitos de corruptos em geral - como se não houvesse, dentro do próprio Ministério Público, outras centenas de procuradores interessados no assunto e igualmente competentes.

Há muito tempo a Lava Jato extrapolou seu escopo inicial, tanto em relação ao objeto que a motivou quanto a respeito dos métodos empregados em seu trabalho. Se tivesse terminado quando deveria, depois de alcançar estrondoso sucesso ao colocar na cadeia os responsáveis pelo escândalo do petrolão e recuperar bilhões desviados da Petrobrás, a Lava Jato ganharia merecido lugar na história como símbolo da vontade dos brasileiros de enfrentar com coragem a chaga da corrupção. Tendo passado dos limites razoáveis de duração, alcance e pretensão, a operação corre o risco de ocupar outro lugar na história, este bem mais sombrio: o de responsável pela desmoralização da política, transformando todos os políticos em corruptos em potencial.

Bolsonaro do sertão – Editorial | Folha de S. Paulo

Presidente se lança em eventos de campanha; dinâmica política ameaça o erário

Mal se livrou do período de convalescença da Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro pôs-se a viajar pelo país a cumprir agendas regionais. Não fosse este um período em que governantes responsáveis deveriam desestimular aglomerações, nada haveria a estranhar.

Em passagem pelo sul do Piauí e o norte da Bahia na quinta (30), Bolsonaro vestiu chapéu sertanejo, andou a cavalo e inaugurou um sistema de abastecimento de água cujas obras haviam sido iniciadas na gestão de Dilma Rousseff (PT).

Num palanque típico, saudado por um público decerto selecionado pela oligarquia local, como é típico, o presidente fez um discurso típico. Elogiou a bancada de congressistas da região, disse que “ninguém governa sozinho” e prometeu ajudar a resolver problemas da localidade em conjunto com “o Parlamento brasileiro”.

Corrida do ouro – Editorial | Folha de S. Paulo

Pandemia derruba juros, aumenta déficit público e reaviva fascínio pelo metal

A relíquia bárbara, no dizer de um dos maiores economistas da história, John Maynard Keynes, teve grande papel na história. Sempre visto como garantia de segurança e proteção de última instância contra crises econômicas e políticas, o ouro volta ao centro das atenções.

Na semana passada a cotação do metal se aproximou do recorde de US$ 2.000 por onça (31,1 gramas). A alta chega a cerca de 30% no ano e ganhou ímpeto nas últimas semanas com a recém-inaugurada tendência de desvalorização do dólar.

A tese de fundo é que a gigantesca expansão do déficit público nas principais economias, resultante da pandemia, cedo ou tarde alimentará o risco de inflação. O ouro seria garantia contra perdas que atingiriam também o dólar, a divisa dominante do sistema global.

Não é a primeira vez. Outro episódio marcante de valorização do metal se deu na década de 1970, quando os Estados Unidos abandonaram o compromisso de converter dólares em ouro, regra que balizava a economia mundial no pós-guerra. Desde então perdeu-se a referência de lastro no metal.

Pandemia não justifica mexer no teto de gastos - Editorial | O Globo

Congresso deveria primeiro tomar as medidas necessárias para reduzir despesas obrigatórias

É previsível a trajetória da dívida pública em tempos de coronavírus. Pelas previsões do governo, o déficit primário fechará o ano acima de 11% do PIB, elevando a dívida bruta para 95% desse mesmo PIB. Em junho, as contas públicas atingiram um recorde histórico: fecharam o mês na casa dos R$ 195 bilhões negativos. Num só mês, o país registrou uma marca pior que em todos os anos desde pelo menos 1997, pelos dados do Tesouro.

Tão previsíveis quanto a alta vertiginosa nas despesas — necessária para suprir a área da saúde e garantir a sobrevivência de milhões de desamparados — são as pressões para usar a emergência como pretexto e derrubar os mecanismos de controle de que o Estado dispõe sobre seus gastos. O alvo preferido é o limite criado em 2016 pela Emenda Constitucional 95, o teto de gastos.

O jornal “O Estado de S. Paulo” noticiou que a Casa Civil, de Braga Netto, consultaria o Tribunal de Contas (TCU) para abrir uma exceção ao teto para investimentos públicos, depois recuou. Não quer dizer que não haja outras tentativas da parte de políticos interessados em mais despesas. O ex-deputado e ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, cuja competência ficou comprovada na condução da reforma da Previdência, tornou-se outro defensor vocal da flexibilização do teto.

Não seria sensato manter festas como réveillon e carnaval – Editorial | O Globo

Baque na economia das cidades é previsível, mas decisões devem privilegiar os protocolos sanitários

Faltando cinco meses para o réveillon e pouco mais de seis para o carnaval, é possível prever que, nas duas maiores cidades do país, essas festas ficarão de quarentena. A prefeitura de São Paulo já anunciou a suspensão do réveillon da Avenida Paulista e o adiamento do carnaval. No Rio, a situação ainda está indefinida, mas a tradicional imagem de milhões de pessoas confraternizando na Praia de Copacabana não deverá se repetir na virada do ano, já que a Riotur estuda outros formatos, mais adequados aos tempos atuais.

Não faz sentido permitir aglomerações de milhões de pessoas em meio a uma pandemia que não se sabe quando estará controlada. Num país que há cinco meses vive em luto permanente, e já soma mais de 92 mil mortos pela Covid-19, soa estranho falar em comemorações. Registre-se ainda que as duas capitais concentram quase 20% de todas as mortes no país.

Poesia | José Carlos Capinan - De não ser, sendo constantemente

Não sou o mesmo de olhar vazio
e palavra sem consequência usada.
Andei pesando este medo
em interrogações do que seria o poeta
ante estruturas que o antecederam,
cercos de ferro, fechos de ferro, cercos.

No caminho de minha volta
esqueci canções, dupliquei memórias,
e aceito como verdade humana
que o homem é um caminho ao homem,
processo e pouso, caminhante e rota.