quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Luiz Werneck Vianna* - Retomar o fio da meada

É cedo para se pensar no mapa eleitoral que sairá da próxima sucessão municipal, matéria para os especialistas, mas já se sentem lufadas de ar fresco que anunciam o começo de um novo dia ao fim de uma noite de pesadelo. É viva em nossa memória a velha lição de que, aqui, as eleições se manifestam como a forma superior de lutas das aspirações democráticas e das demandas sociais por políticas públicas igualitárias. E por toda a parte já assomam à superfície as indicações de que, mais uma vez, elas atuarão nesse sentido apesar das restrições impostas pela pandemia que nos aflige, presentes em candidaturas com histórico democrático confiável em várias capitais e em cidades influentes na formação da opinião pública na federação.

Decerto que eleições municipais têm um caráter singular em que são dominantes os temas locais, embora as que estão em curso guardem um significado plebiscitário implícito quanto a avaliação do governo Bolsonaro, que não por acaso evita se comprometer com candidaturas, mesmo com aquelas que lhe acenam com simpatia, salvo quando elas lhe permite confrontar com eventuais adversários em 2022, enquanto forças políticas de adesão democrática buscam demarcar com nitidez sua rejeição às suas políticas de governo, tal como nos casos da cidade de São Paulo, com a candidatura Boulos, de Porto Alegre, com a de Manuela Dávila, com as de Joao Campos e Marilia Arraes, em Recife, a de Edmilson, de Belém,  e do Rio de Janeiro com a de Marta Rocha, cuja ênfase nas questões locais mal disfarça o sentido nacional da sua candidatura, inclusive pela contundente crítica ao candidato Crivela que procura identificação com o governo Bolsonaro, e em tantas outras.

É fato, contudo, que éticas de convicção rareiam neste cenário eleitoral em que predominam os cálculos de oportunidade. Mas uma circunstância externa a esse quadro pode vir a subverter as suas atuais marcações, qual seja as eleições presidenciais nos Estados Unidos, marcadas para o dia 3 de novembro, que, no caso da vitória de Biden deverá importar fortes repercussões na cena política brasileira com impactos sensíveis no pleito municipal de 15 de novembro. Até lá, convicções mal dormidas, podem encontrar tempo para despertar.

Ricardo Noblat - No “debate da mosca”, a vice de Biden engole o vice de Trump

- Blog do Noblat | Veja

Pesquisa confere vitória a Kamala

A senadora Kamala Harris, a vice na chapa de Joe Biden, candidato do Partido Democrata à presidência dos Estados Unidos, é uma jiboia: pega sua presa, prende, aperta, se enrosca nela e a tritura até o último osso. Foi o que fez, ontem à noite, com Mike Pence, o vice de Donald Trump e candidato à reeleição.

Foi por uma diferença de sete pontos percentuais que Biden venceu Trump no primeiro debate entre os dois. O segundo e último debate será travado na próxima semana se Trump puder comparecer, uma vez que se recupera do vírus que o infectou. Pegar o vírus, segundo ele, foi “uma benção de Deus”.

Divulgada pela rede de televisão CNN no início desta madrugada, a primeira pesquisa sobre o debate entre Kamala e Pence apontou uma vitória da senadora pelo elástico placar de 59% contra 38% de Pence – diferença de 21 pontos percentuais. Se não foi um massacre, foi quase isso, e nada teve a ver com a mosca.

Por pouco mais de dois minutos, uma mosca, certamente de origem chinesa, passeou sobre os cabelos brancos de Pence que não passou recibo – por não tê-la visto ou porque fingiu não vê-la. Como os americanos têm mania de dar nome a tudo, certamente esse será conhecido no futuro como o “debate da mosca”.

Acima de tudo, foi um debate bem educado, à moda antiga, nada que lembrasse o quase não debate entre Trump e Biden marcado pela estupidez do presidente que interrompeu por mais de cem vezes, durante uma hora e meia, a fala do seu adversário, e a do mediador que tentava pôr ordem à discussão.

Pence jogou para os eleitores cativos de Trump. Kamala, para os eleitores ainda indecisos. Houve momentos, principalmente quando a Economia estava em cena, que Pence foi melhor. Mas no resto, Kamala dominou o debate. Ela é carismática, Pence não. Ela fala com a boca e o corpo, ele parece um robô programado.

A senadora teve o cuidado de não ser agressiva, pois entre os eleitores brancos são muitos os que acusam as mulheres negras de serem agressivas. Mas usou palavras duras para criticar Trump e seu vice. Acusou-os de racismo e de subestimar a pandemia que matou mais de 200 mil pessoas nos Estados Unidos.

E repetiu duas vezes, de olho na câmera, a frase que pode ter ficado na memória de muitos que assistiram ao debate:

– Eles sabiam o que estava acontecendo e não lhe contaram.

Bolsonaro detona a Lava Jato e Fux sai em socorro dela

Merval Pereira - O vento muda

- O Globo

Como sempre em uma democracia não totalmente amadurecida como a nossa, mudanças súbitas no quadro institucional acontecem, alterando o processo em andamento e manobras que estavam em gestação. O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luis Fux, tirou das Turmas e levou para o plenário o julgamento de ações penais, retirando do ministro Gilmar Mendes o controle das ações da Lava-Jato na Segunda Turma.

Paralelamente, a substituição do ministro Celso de Mello pelo desembargador Kassio Marques subiu no telhado.  O que parecia ter sido a sorte grande de sua vida acabou se transformando num pesadelo que pode até mesmo inviabilizá-lo para o posto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que almejava, antes de ter sido catapultado para a vaga do Supremo Tribunal Federal (STF) por interesses ainda não claramente identificados.  

Assim como, num passe de mágica, apareceu do nada para compor o grupo de chamados “garantistas” no Supremo, cujo objetivo político imediato combina com o de Bolsonaro, de desmoralizar o ex-ministro Sérgio Moro, Kássio Marques pode estar em processo de autodestruição.

Bernardo Mello Franco - O acordão do capitão

- O Globo

Num domingo de abril, o presidente Jair Bolsonaro foi à porta do Quartel-General do Exército, subiu na caçamba de uma caminhonete e estimulou seguidores que bradavam por “intervenção militar” e AI-5. “Nós não queremos negociar nada! Nós queremos ação pelo Brasil!”, vociferou.

Menos de seis meses depois, Bolsonaro toma café com Rodrigo Maia, almoça com o centrão e janta com Gilmar Mendes. No último domingo, ele foi à casa de Dias Toffoli comer pizza e assistir a um jogo do Palmeiras. A imagem dos dois abraçados, como amigos que se reencontram para torcer pelo mesmo time, é um retrato dos novos tempos em Brasília.

O extremista que prometia romper com o establishment passou a dançar conforme a velha música. A indicação de Kassio Marques ao Supremo faz parte da metamorfose. O presidente consultou Gilmar e Toffoli, inimigos jurados da Lava-Jato, antes de oficializar a escolha do futuro ministro.

Luiz Carlos Azedo - Lava-Jato, morte e ressurreição

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

O presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, surpreendeu ao esvaziar o poder das duas turmas no julgamento de ações penais e inquéritos criminais, que voltarão a ser analisados em plenário

Em cerimônia no Palácio do Planalto, ontem, bem ao seu estilo, o presidente Jair Bolsonaro disparou: “Queria dizer a essa imprensa maravilhosa nossa que eu não quero acabar com a Lava-Jato… eu acabei com a Lava-Jato”. Entretanto, relativizou: “porque não tem mais corrupção no governo”. Bolsonaro endossou a avaliação feita pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) de que seu grande legado será o “desmonte” da operação, que já teria ocorrido em razão de mudanças no Coaf, na Receita Federal, na Polícia Federal, no Ministério Público Federal (MPF) e estaria em vias de ocorrer no Supremo Tribunal Federal (STF), com a indicação do desembargador federal Kassio Marques para a vaga do decano Celso de Mello, que está se despedindo da Corte.

Mas pode não ser bem assim, porque o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, ontem, surpreendeu a maioria dos pares ao propor a mudança do regimento da Corte e esvaziar o poder das suas turmas no julgamento de ações penais e inquéritos criminais, que voltarão a ser analisados em plenário. A proposta foi aprovada por unanimidade. Desde 2014, depois do processo do mensalão, essas matérias eram apreciadas nas turmas, cada qual com cinco ministros. Agora, serão apreciadas por 11 ministros, inclusive o presidente do Supremo, que não vota nas turmas. A mudança fortalece o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato, que estava perdendo quase todas as votações na Segunda Turma, presidida pelo ministro Gilmar Mendes.

Luiz Fernando Verissimo - Os tetos

- O Globo

De repente a palavra ‘presencial’ ganhou notoriedade

Cada era com seu vocabulário. De repente a palavra “presencial” ganhou uma notoriedade que antes não tinha. Presencial: significando na presença física de, em contraste com a ausência de, ou com a presença apenas virtual de. Uma palavra de muitos sentidos, perfeita para esta era de dissimulações, que só vendo, tocando e cheirando para crer.

Outra expressão que deve sua existência à era surgiu no mundo rarefeito do jargão econômico. Inventada, até onde eu sei, pelo ministro Paulo Guedes, que se sai melhor fazendo frases do que dirigindo a Economia. Guedes chama de “fura-teto” quem quer ultrapassar os limites da responsabilidade fiscal e se declara um defensor da inteireza do teto, ameaçada por gastadores com seus sonhos igualitários irrealistas. Em todo lugar em que os “fura-tetos” são demonizados, o capitalismo se penitencia, se penitencia, mas não muda. No fundo, o que se discute não é a defesa do sacrossanto teto, mas sua utilidade nos rituais de falsa penitência com que o capital protege sua alma junto com seus lucros, enquanto o sonho é eternamente adiado.

Maria Hermínia Tavares* - Cidades perdidas

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro deslocou lastro eleitoral do PT para pequenas localidades do Norte e Nordeste

O bolsonarismo é, sobretudo, “um fenômeno urbano”, sustenta o cientista político Jairo Nicolau no livro “O Brasil dobrou à direita”, lançado nesta semana.

Nele, o professor da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro procura não explicar a vitória do ex-capitão, mas fazer um retrato de corpo inteiro dos que o elegeram, iluminando cada uma de suas características: renda, gênero, cidade e região de moradia, educação, religião, simpatias e antipatias políticas.

Primoroso, o estudo tem o mérito de pulverizar qualquer explicação simplista para a catástrofe política de 2018. Os antipetistas declarados votaram, como se esperava, no candidato de extrema direita. Mas representaram apenas 1/3 do eleitorado. Metade dos votantes, sem posições fortes em relação ao partido de Lula, dividiram-se por igual entre Bolsonaro e Haddad. Este perdeu em todas as faixas de idade, mesmo entre os mais jovens —outrora uma base importante do PT. Se é fato que 70% dos evangélicos sufragaram Bolsonaro, também é fato que ele predominou entre católicos e seguidores de outras religiões.

Fernando Schüler* - As esquecidas reformas institucionais

- Folha de S. Paulo

O Estado não é papai de ninguém para obrigar o cidadão a votar ou não votar

Sempre leio o Pedro Fernando Nery e aprendo muito com ele. Até por isso é bom divergir de vez em quando. Pedro colocou na pauta a chamada “votação Demery”, que sugere dar aos pais o direito de votar pelos filhos ainda crianças.

A ideia foi originalmente proposta pelo demógrafo Paul Demery e propõe mudar a regra “um homem, um voto”, base de nossas democracias, propondo que os pais tenham um voto a mais para cada filho menor de 16 anos. Um filho, um voto. Dez filhos, dez votos. O argumento é de que precisamos de políticas de longo prazo, focar nas crianças e nada melhor do que dar às mães um maior poder político.

Há um caminhão de problemas aí. Os cidadãos não decidem políticas públicas e sim elegem políticos. Os políticos vão à televisão, distribuem promessas, santinhos, e as pessoas votam. A engenharia proposta por Demery supõe o seguinte: vendo seus bebês bem cuidados ou soltos em uma rua com esgoto a céu aberto, as mães saberão identificar, no mar de “cabecinhas” (nome que a filhinha de um amigo dava aos candidatos, na TV), quem melhor representa políticas que, uma vez implementadas, melhorarão a vida das futuras gerações.

Bruno Boghossian - Bolsonaro e a Lava Jato

- Folha de S. Paulo

Presidente nunca foi um político particularmente interessado no combate à corrupção

Jair Bolsonaro extraiu benefícios eleitorais da avalanche produzida pela Lava Jato, mas nunca foi um político particularmente interessado no combate à corrupção. Como deputado, não deu atenção ao tema e, na última campanha, só falava da roubalheira para fustigar seus adversários na disputa.

A rigor, o presidente não tem vínculos diretos com a operação. Como circulava no baixíssimo clero da política, não figurava entre os alvos que operavam nas estatais investigadas. Depois de chegar ao Planalto, não trabalhou a favor das forças-tarefas nem lançou uma discussão séria para corrigir seus excessos.

Os movimentos de Bolsonaro em relação à Lava Jato e ao combate à corrupção, de maneira geral, seguiram basicamente conveniências particulares e políticas. A ficha só caiu quando o presidente enxergou investigadores no encalço de seus parentes e de seus novos aliados.

William Waack - Política da miséria

- O Estado de S.Paulo

O dilema que a direção política em Brasília não consegue resolver é simples e grave

Vamos simplificar a política brasileira. Ela cabe hoje em poucos números, que não são bonitos. Um deles: em 1,5 mil municípios brasileiros a ajuda emergencial de R$ 600 por conta da pandemia DOBROU a massa de salários do setor formal. É um retrato cruel da miséria brasileira.

Essas localidades se espalham pelo País inteiro com notável concentração no Norte e Nordeste. Mesmo no Sul e Sudeste, porém, em mais de 1 mil municípios a massa de salários do setor formal aumentou pela metade com o auxílio emergencial. Ocorre que esse efeito tem data para acabar: dezembro, com o fim do coronavoucher.

A essência do debate político pós-pandemia concentrou-se apenas nesse aspecto: como financiar um programa social que faça a transição da “emergência” para uma “renda básica”. Foi um dos raros elogios que a revista Economist dedicou ao governo brasileiro nos últimos tempos. A melhor conduta em países pobres como o nosso, assinalou a publicação, é mesmo dar dinheiro direto nas mãos das pessoas.

Depois de esperar em vão pela fórmula mágica de onde tirar esse dinheiro – fórmula que, se presumia, existisse no Ministério da Economia –, o presidente Jair Bolsonaro trouxe a bordo de sua coordenação política mãos experientes como as do senador Renan Calheiros. De quem ganhou fortes elogios por estar desmontando o “Estado policialesco” da Lava Jato e por ter passado a praticar não a “velha” ou a “nova” política mas, sim, a “boa” política.

Eugênio Bucci* - Livros em chamas

- O Estado de S.Paulo

A intolerância mais odiosa já se alojou na intimidade dos lares brasileiros.

Circularam no Twitter no dia 29 imagens de um casal que arranca páginas de livros de Paulo Coelho para atirá-las numa churrasqueira comum, dessas domésticas, dessas bem feias. As folhas, aos maços, caem sobre as brasas e se transformam em pequeninas labaredas. O casal exulta. Enquanto cuida de seus afazeres flamejantes, desfere insultos contra o escritor, que é chamado de “lesa-pátria” por ter criticado o governo. Entre um desaforo e outro, dizem que ele precisa ir morar em Cuba, na Venezuela ou na Argentina. Alguém ri ao fundo. A treva fumega.

A Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem Paulo Coelho entre seus imortais, repudiou a cerimônia comburente. Em nota, a ABL argumentou, com razão, que a agressão nos traz memórias tenebrosas, como “a destruição das bibliotecas de Alexandria e Sarajevo, os crimes de Savonarola e as práticas do nacional-socialismo”. É isso mesmo. Talvez sem saber, os que agora fazem romances virar cinzas reeditam os pelotões nazistas que em 1933, na Alemanha, em fogueiras rituais no meio da rua, torraram exemplares de clássicos da literatura. Brincando com fogo, brincam com a História.

Celso Ming - O País adiado

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro já demonstrou que preserva mais os interesses da própria família

O presidente Bolsonaro já avisou que pretende deixar para depois das eleições de novembro o anúncio do programa social Renda Cidadã, novo nome da antes pretendida Renda Brasil.

Além de medida necessária para neutralizar em parte o estrago produzido pelo desemprego, a criação dessa ajuda à população mais pobre seria também um caça-votos. Como assim? Um caça-votos ficará para depois das eleições? Fica entendido que esse adiamento teria a ver com o tamanho da conta a ser repassada para a sociedade para o pagamento desse novo benefício social, motivo de grandes desencontros dentro do governo.

Mas a questão principal é a de que as decisões-chave de política econômica também vão sendo sucessivamente adiadas. Desde o início de seu governo, o presidente Bolsonaro está comprometido com as reformas da administração e do sistema tributário. Mas, para além da demissão do secretário Marcos Cintra e da ameaça de cartão vermelho ao secretário especial do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, a reforma tributária não progrediu. O projeto nessa direção que tramita na Câmara é diferente do que tramita no Senado, que, por sua vez, é diferente do que pretende o ministro Paulo Guedes

Zeina Latif* - Castelo de areia

 

- O Estado de S.Paulo

O fim do auxílio emergencial é uma decisão correta, mas não indolor no curto prazo

É surpreendente a velocidade de recuperação da atividade econômica, ainda que não exatamente em forma de “V”. Como não existe milagre em Economia, é importante entender as causas e compreender os riscos adiante. 

Vale repetir que há uma boa dose de artificialismo no aumento do consumo, puxado pelas classes populares, por conta do generoso Auxílio Emergencial. Além disso, a volta é bastante heterogênea entre os setores. O isolamento social redireciona recursos que iriam para o dispêndio com serviços para o consumo de alguns produtos associados ao maior tempo em casa.

Os dois fatores acima explicam, em boa medida, a performance das indústrias de alimentos, bebidas e bens duráveis (excluindo automóvel), que tiveram crescimento de 6%, 12% e 13%, respectivamente, em agosto na comparação anual. Na mesma toada, a produção de insumos da construção (+4%) se beneficia do “consumo formiguinha” (varejo), que subiu 23%.

Não é só isso. Há o efeito da balança comercial, ainda que menos importante. Do lado das exportações, pessoalmente, eu não esperava uma volta tão rápida das encomendas da China. O fato é que o país se defendeu bem da doença e, dentro do esperado, pisou no acelerador das políticas de estímulo, gerando aumento das importações (+11% em volume em julho na comparação anual). Enquanto isso, a volta do comércio mundial tem sido mais rápida do que na crise global de 2008-09, quando o crédito ao comércio secou.

José Serra* - Renda básica com responsabilidade

- O Estado de S.Paulo

Não se pode executar a despesa nova sem a aprovação de medidas de compensação.

O governo federal enviou a proposta orçamentária para 2021 sem dizer como pretende financiar o novo programa anunciado pela equipe econômica: o Renda Brasil. Curiosamente, esse programa nasceu, morreu e deve ressuscitar após manifestações desencontradas de lideranças do Executivo, até mesmo do presidente da República, tornando o cenário fiscal mais incerto. Certo mesmo é que o País precisa de um programa social de renda mínima, com responsabilidade fiscal e boa governança, para os brasileiros mais afetados pela pandemia.

Hoje presenciamos a subida a todo o vapor da dívida pública em direção à relação de 100% com o produto interno bruto (PIB). Assim, o País, no final do ano, deverá ao mercado de títulos públicos o equivalente ao que produzirá em termos de bens e serviços. Na verdade, esse número estaria longe de representar algo catastrófico caso os gastos públicos no Brasil tivessem qualidade, o que não ocorre. Importa mais a trajetória de crescimento da dívida do que a sua relação com o PIB, afinal, estoque e fluxo são coisas distintas.

Claro está que não nos podemos endividar como se a injeção de gasto público na economia não tivesse custos e limites. A gestão fiscal daqui para a frente não poderá ser tocada na base do improviso e “no susto”. Qualquer programa novo deve ter como base um dos princípios mais relevantes de uma República: a responsabilidade fiscal.

Míriam Leitão - Ruído constante na economia

- O Globo

 Com Alvaro Gribel (interino)

Não há um único dia em que investidores e empresários deixem de falar sobre a ampliação do Bolsa Família. O vazamento de ideias é constante e varia conforme a fonte do governo. Se vem da equipe econômica, a sinalização é de que não haverá aumento de gastos. Se vem de ministros ligados à articulação política, prega-se que uma solução será encontrada. Ontem, ao mesmo tempo em que o ministro Paulo Guedes negou a hipótese de prorrogação do auxílio no ano que vem, houve quem defendesse um mecanismo para acionar o orçamento de guerra, o que facilitaria o aumento dos gastos. Limitar supersalários esbarra na independência orçamentária dos poderes.

Em sua carta mensal enviada a clientes, o Verde Asset, do economista Luis Stuhlberger, comparou a atuação do governo na pandemia entre 20 países emergentes. O Brasil, apesar de ser o mais endividado (85%), foi o que mais gastou como proporção do PIB (9%). “Os únicos países emergentes que gastaram parecido com o Brasil são Peru e Chile, ambos com grau de investimento e dívida pública antes da pandemia próximas a 25% do PIB, com muita margem de manobra.” O Brasil está dois degraus abaixo do nível de investimento e no mercado já há preocupações de que um novo rebaixamento possa acontecer no final do ano.

Carlos Alberto Sardenberg - Tem onde cortar gastos

- O Globo

Para engordar o Renda Cidadã, só há dois caminhos: CPMF digital ou corte na folha dos funcionários de nível mais alto

Entre as diversas ideias de jerico propostas para financiar o programa Renda Cidadã, apareceu mais uma nesta semana: eliminar a dedução de 20% aplicável aos contribuintes do IR que declaram pelo formulário simples. Nesse caso, o contribuinte abre mão de descontar os gastos com saúde e educação, que são, digamos, os mais vantajosos para os que podem pagar escola, médicos e hospitais no particular.

Inversamente, quem escolhe a declaração simplificada está nas faixas mais baixas de renda, usa o SUS e coloca as crianças em escolas públicas. Ou seja, cortar o desconto de 20% na declaração simples é favorecer os mais ricos e tomar dinheiro dos mais pobres.

É evidente que tem de ser o contrário. Acompanhem estes números: neste ano, ficou isento de pagar IR quem ganhou abaixo de R$ 28.559 em 2019. O presidente Bolsonaro prometeu várias vezes aumentar a faixa de isenção, primeiro para R$ 4.700 por mês, depois para R$ 3.000. Deixou para lá. A faixa nem sequer foi corrigida pela inflação.

Maria Cristina Fernandes - Quem janta por último em Brasília

- Valor Econômico

Frente a um Congresso que avança sobre o teto de gastos para definir o poder na Casa, Bolsonaro articula Tereza Cristina para comandar a Câmara

A questão não é mais se o Brasil ainda precisará de um regime de exceção fiscal para 2021. Já está claro que sim. Trata-se, agora, de definir quem dará as cartas nesse regime que estenderá parte das regras fiscais da pandemia para o próximo ano. Ou seja, quem define como, quando e para qual finalidade o teto de gastos deve ser rompido.

Foi este o guisado da noite de segunda-feira que reuniu o ministro da Economia e o presidente da Câmara dos Deputados, além de dois outros ministros de Estado, Fábio Faria (Comunicações) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), quatro senadores, Eduardo Braga (MDB-AM), Fernando Bezerra (MDB-PE), Kátia Abreu (MDB-TO) e Renan Calheiros (MDB-AL), um deputado federal, Baleia Rossi (MDB-SP), além de três ministros do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro, Vital do Rêgo e Bruno Dantas, o anfitrião.

Uma alternativa é a aprovação de um dispositivo, previsto, desde 2019, na Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo, em tramitação no Senado, que cria o “Conselho Fiscal da República”. Esta instância, formatada para os presidentes dos três Poderes e do TCU, além de três governadores e três prefeitos, pode vir a ser aclimatada aos tempos que correm.

Ribamar Oliveira - O calendário político é o que conta

- Valor Econômico

Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término das eleições municipais

Aconteceu o que era previsível. O calendário eleitoral deste ano se sobrepôs a todas as demais questões. A partir da próxima semana, deputados e senadores terão olhos e disposição para tratar apenas das eleições municipais. Nem mesmo o mais ingênuo dos analistas vai acreditar que qualquer proposta de reforma poderá ser discutida e votada antes do término do pleito. Entramos no recesso branco, como é chamado o período pré-eleição pelos parlamentares.

Senadores e deputados não conseguiram sequer instalar a Comissão Mista de Orçamento do Congresso, responsável por apreciar e votar a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) para 2021 e a proposta orçamentária. Isso dá uma dimensão da falta de acordo político sobre o cenário fiscal do próximo ano.

Rubem César Fernandes* - Público, privado e corrupção

- 0 Globo

Urge romper a promiscuidade entre o dia a dia da política e o gerenciamento dos bens comuns

A corrupção não aceita limites. Como água, penetra cada fresta em seu caminho. Aliada ao poder, ganha mais força. No mensalão, desmoralizou a política e até mesmo o PT, partido fundado em princípios. Na Lava-Jato, levou de roldão algumas das maiores empresas do país. Na pandemia, conseguiu a incrível façanha de enlamear as operações de saúde, comprometendo vidas aos milhares. Os casos citados têm em comum o uso perverso das relações entre o público e o privado.

O governo, que fala pelo bem comum, grande contratante que é, alia-se a empresas particulares oportunistas para, juntos, gerarem vantagens ilícitas a cada oportunidade. Como estancar esta patologia que nos sufoca e que leva o país a um dos seus piores momentos?

Na saúde, cresce a opinião contra as OS, como se nelas estivesse a falha do sistema. Diversas vozes, do governo e da sociedade, levantam acusações contra as OS e reclamam a volta à administração direta dos serviços de saúde. Falsa solução, pois em todo o país, onde houve denúncias as secretarias de Saúde foram destaque entre as agências corruptoras, com o respaldo de outros órgãos estratégicos do Estado. Note-se inclusive que governos e municípios estimularam o surgimento de OS venais, portadoras de CNPJ descartáveis, sem história e sem valor próprio, criadas justamente para a rodagem das transações ilícitas. Note-se ainda que a maior parte das compras escandalosas propiciadas pela crise global da Covid-19 foram feitas diretamente pelos governos com empresas oportunistas de variada procedência, nacionais e estrangeiras.

Vinícius Amaral e Élida Graziane Pinto* - É isto uma reforma?

- Valor Econômico

Proposta concorre para dilapidar esforços de décadas pelo aperfeiçoamento do serviço público

“Reformar” significa “dar melhor forma a”. Esse primeiro sentido dado pelo dicionário promete mudança intrinsecamente positiva. É preciso, no entanto, investigar se toda e qualquer reforma pode receber tão positiva alcunha.

Recentemente, o Executivo federal enviou sua proposta de reforma administrativa. A pretexto de preocupações fiscais, a PEC 32/2020 promete subsidiariedade para reduzir inconstitucionalmente a oferta estatal de serviços públicos, mas se omitiu, por exemplo, de conter violações ao teto remuneratório.

Como se reinventasse a roda do tema, a PEC ignorou a aprendizagem de erros e acertos das reformas administrativas empreendidas pelo Decreto-Lei 200/67 e pela Emenda 19/98. Se fosse madura, em vez de novas alterações constitucionais, a proposta de reforma administrativa atual demandaria mudanças em leis ordinárias e complementares, para dar efetividade às previsões já existentes sobre avaliação de desempenho e controle da produtividade dos servidores públicos.

A propósito, soa contraditória para quem defende a melhoria da gestão pública a proposta de revogação da atual exigência da existência de escolas de governo para formação e aperfeiçoamento dos servidores públicos.

Mas, enfim, qual é a razão de ser da PEC 32? Em uma análise fria do texto, parece-nos que ela pretende, essencialmente, fomentar maior concentração de poder nas mãos do Executivo. Tal cenário tende a ampliar o risco de exercício autoritário da gestão e facilitar hipóteses de loteamento e aparelhamento político-partidário do Estado.

Ilustra bem nossa preocupação a proposta de extinção dos atuais cargos em comissão e funções de confiança, destinados unicamente às atribuições de direção, chefia e assessoramento, para que sejam substituídos pelos novos “cargos de liderança e assessoramento”. Por trás do que aparenta ser um mero jogo de palavras, todavia, há duas radicais alterações.

Cristovam Buarque* - Faltam educacionistas

O Brasil tem alguns dos mais renomados educadores do mundo e um dos sistemas educacionais de pior qualidade. A explicação é que não temos educacionistas. Os educadores brasileiros disseram ao mundo como deve ser o processo pedagógico, mas caberia aos políticos implantar o sistema nacional de educação com qualidade. 

Educadores definem métodos; educacionistas determinam metas, estratégias, políticas, sistemas administrativos, financiamento. O educador vê e cuida de cada sala de aula; o educacionista do sistema de todas as salas. O educador é como o cientista que descobre a vacina; o educacionista é o sanitarista que desenha a logística para a distribuição da vacina. Sem o primeiro não temos vacina, ou método educacional, sem o segundo a vacina não chega a todos, como a escola não atende a todos.

Para o educacionista, a educação é o vetor do progresso, tanto para a eficiência econômica quanto para a justiça social. Ele vê o futuro de um país com a cara da escola pública no presente, porque todos os problemas da nação passam pela educação do povo. Foi o que fizeram os políticos educacionistas em países como Irlanda, Finlândia e Coreia do Sul. 

Ivan Alves Filho* - Relembrando os 130 anos de Astrojildo Pereira

O que mais impressiona na trajetória de Astrojildo Pereira, a meu juízo, é a união que ele soube cimentar entre o homem de pensamento e o homem de ação. Uma combinação rara. Talvez por isso, o escritor e homem público Afonso Arinos de Mello Franco tenha se referido a ele como “a maior aventura intelectual” do Brasil, em seu tempo.

Vamos tentar entender melhor o motivo disso. Nascido em 1890, em Rio dos Índios, localidade de Rio Bonito, na velha província fluminense, Astrojildo vivenciou, em 1908, um episódio que o marcaria para o resto da vida. Foi assim. Ao ler nos jornais que o romancista Machado de Assis agonizava, ele pegou, imediatamente, uma barca em Niterói, atravessou a Baía de Guanabara e desceu na Praça Quinze, no centro do Rio de Janeiro. Lá chegando, se enfiou em um bonde e foi bater com os costados, no Cosme Velho, aprazível bairro onde vivia o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Profundo admirador da obra machadiana, o rapaz, de apenas 17 anos, queria se despedir do velho mestre. Expôs sua intenção às pessoas que se encontravam na casa e foi autorizado a entrar, no quarto do escritor. Ajoelhou-se, beijou-lhe então as mãos e logo depois se retirou. Na belíssima crônica “A última visita”, Euclides da Cunha, que presenciara a cena, escreveu: “Naquele momento, o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Reforma administrativa: questão de cidadania – Opinião | O Estado de S. Paulo

Apesar de atrasada e diminuta, proposta apresentada pelo governo abre ao Parlamento a possibilidade de agir

No início de setembro o governo encaminhou ao Congresso uma proposta de Reforma Administrativa atrasada e diminuta. Apesar dos pesares, ela abre ao Parlamento a possibilidade de agir. A atual legislatura mostrou ímpeto reformista na Previdência, mas agora o desafio é mais complexo. Uma nota técnica do Centro de Lideranças Públicas (CLP) dá a medida dessa complexidade.

Antes de tudo há as distorções: a estabilidade indiscriminada; a progressão automática de carreira; e o déficit nas avaliações de desempenho. Muitos servidores ingressam com remunerações elevadas e alcançam em pouco tempo o topo da carreira, não com base em resultados e méritos, mas em tempo de serviço ou certificados acadêmicos.

Além das distorções, há as perversões. O Banco Mundial estima que os servidores públicos no Brasil recebam em média 18% acima de seus pares privados. Outras estimativas apontam que essa diferença pode chegar a 50%. De resto, há as disparidades no próprio serviço público entre a elite e a base. Pelo coeficiente Gini de mensuração de desigualdade, estima-se que a desigualdade no setor público seja 7 vezes maior que no privado, podendo variar de 4 a 14 pontos conforme a região.

Poesia | Charles Baudelaire -A alma do vinho

A alma do vinho assim cantava nas garrafas:
“Homem, ó deserdado amigo, eu te compus,
Nesta prisão de vidro e lacre em que me abafas,
Um cântico em que há só fraternidade e luz!
Bem sei quanto custou, na colina incendida,
De causticante sol, de suor e de labor,
Para fazer minha alma e engendrar minha vida;
Mas eu não hei de ser ingrato e corruptor,
Porque eu sinto um prazer imenso quando baixo
À goela do homem que já trabalhou demais,
E seu peito abrasante é doce tumba que acho
Mais propícia ao prazer que as adegas glaciais.
Não ouves retirar a domingueira toada
E esperanças chalrar em meu seio, febris?
Cotovelos na mesa a manga arregaçada;
Tu me hás de bendizer e tu serás feliz:
Hei de acender-te o olhar da esposa embevecida;
A teu filho farei voltar a força e a cor
E serei para tão tenro atleta da vida
Como o óleo e os tendões enrija ao lutador.
Sobre ti tombarei, vegetal ambrosia,
Grão precioso que lança o eterno Semeador,
Para que enfim do nosso amor nasça a poesia
Que até Deus subirá como uma rara flor!”