domingo, 11 de outubro de 2020

Merval Pereira - De olho em 2022

- O Globo

As primeiras pesquisas eleitorais demonstram que a polarização política entre extremos está sendo reduzida nos grandes centros, com o presidente Bolsonaro e o ex-presidente Lula sendo cabos eleitorais de pouca serventia. O caminho parece aberto para candidatos do centro democrático, sendo a experiência política uma qualidade requerida pelo eleitorado, mesmo que talvez signifique também ambientação a um sistema visto como corrompido.  

O melhor exemplo que une experiência e bem sucedida atuação de um candidato novo na política é o prefeito de Belo Horizonte Alexandre Khalil, que pode ser reeleito no primeiro turno derrotando forças políticas tradicionais como PT e PSDB no Estado de Minas.  
 
O exemplo contrário está no Rio de Janeiro, onde o prefeito Marcelo Crivella vai se desmanchando no processo eleitoral, com o presidente Bolsonaro evitando uma aproximação que seria natural. O presidente e Lula são os cabos eleitorais mais rejeitados no Rio, um estado que passou recentemente pelo trauma de um governador que representava enganosamente o novo na política, foi catapultado ao poder pelo apoio da família Bolsonaro, à qual traiu na ânsia de dar passos além de sua curta perna política.  

O fantasma da corrupção na política assombra vários candidatos na eleição do Rio, sendo que os dois que lideram a pesquisa, Eduardo Paes e Crivella, andam às voltas com processos. A boa experiência de Paes como prefeito se contrapõe à atual gestão catastrófica de Crivella, o que justifica o favoritismo do primeiro.  

Com as novas regras que impedem as coligações proporcionais, ficará mais difícil para partidos sem base territorial cumprir as cláusulas de barreira. Ter uma base municipal forte é um passo importante para a formação de bancadas de deputados federais mais adiante em 2022, e também de um Fundo Eleitoral que é proporcional ao número de cadeiras dos partidos.  

Dorrit Harazim - O enterro de um mundo

- O Globo

O perigo, agora, é que Trump passou a declarar sua intenção de moldar as regras do poder democrático com vigor redobrado

O dique foi rompido na sexta-feira, formalmente. Nancy Pelosi, a presidente da Casa dos Representantes dos EUA e terceira na linha sucessória da Casa Branca, encaminhou a criação de uma comissão bipartidária que terá 16 membros, com função decisória sobre eventual incapacidade de futuros presidentes. A proposta não tem chance nem tempo hábil para entrar em funcionamento ainda em 2020, mas ela acata a pergunta que ronda a Casa Branca desde a eleição de 2016: Donald Trump é, ou está, mentalmente são? O comportamento errático do 45º presidente às vésperas do pleito mais neurastênico do país, somado à incógnita quanto a seu real estado de saúde aditivado com medicamentos pesados, passou à emergência nacional.

Com uma agravante: a 25ª Emenda Constitucional que trata do tema não contém qualquer regra para uma eventual incapacitação simultânea também do vice-presidente. Considerando que Mike Pence, primeiro na linha sucessória, esteve e continua ao alcance do surto de Covid-19 que infesta a Casa Branca, a barafunda é grande. Segundo escreve Garrett Graff na última edição da revista “Politico”, o maior pesadelo a rondar Washington é, justamente, um Pence também afastado temporariamente pela Covid.

O histórico da Vice-Presidência na construção política dos Estados Unidos é cheio de sinuosidades. De início, o cargo nem sequer existia per se: os dois nomes mais votados para presidente simplesmente ocupavam o 1º e 2º cargos, mesmo quando filiados a partidos opostos. Imagine-se a confusão. Até meados do século XX, quando Dwight Eisenhower ficou hospitalizado por sete semanas em 1955 no auge da Guerra Fria, seu vice Richard Nixon não recebeu o aval do chefe para tomar as rédeas. Ele tampouco pôde exercitar qualquer poder quando “Ike” foi submetido a uma cirurgia estomacal, seguido de um derrame. O documento informal de quatro páginas que Eisenhower entregou em mãos e em segredo a Nixon, já no último quadrante do mandato, definindo as regras para o vice assumir, se necessário, só se tornaria publico décadas mais tarde.

Foi um arranjo extraconstitucional, sem registro nem processo formal, uma aberração para aqueles tempos nucleares. Ainda assim, nos anos seguintes, também John Kennedy e seu vice Lyndon Johnson trataram de eventual sucessão de maneira não formal, com base na confiança.

Lourival Sant'Anna* - A vantagem de Biden

- O Estado de S.Paulo

Pesquisas eleitorais de 'The New York Times', CNN e Ipsos indicam candidato democrata à frente em diferentes cenários

Mais de 7 milhões de eleitores americanos já depositaram seu voto. Se a composição do eleitorado que está votando até o dia 3 for parecida com a dos entrevistados nas pesquisas de intenção de voto, Joe Biden terá vitória tão contundente no colégio eleitoral que deixará pouca margem para contestação.

Os institutos de pesquisas afirmam ter corrigido os erros cometidos em 2016. Eles acertaram no resultado nacional, ao prever a vitória de Hillary Clinton, mas erraram nos Estados, que definem a eleição dos delegados ao colégio eleitoral proporcional à população de cada um.

 Clifford Young, presidente nos EUA do Ipsos, um dos maiores institutos de pesquisas do mundo, me disse que, em 2016, faltaram investimentos para entrevistar eleitores da zona rural, que em vários condados foram decisivos na vitória de Trump. Ele afirma que neste ano está sendo dada a devida atenção a eles.

A divisão de estatísticas do New York Times calcula que, mesmo que as pesquisas estaduais deste ano estejam tão distorcidas quanto em 2016, ainda assim Biden obteria 319 cadeiras no colégio eleitoral, e Trump, 219. São necessárias 270 para se eleger. 

Considerando apenas os Estados nos quais um candidato tem 3 pontos porcentuais de vantagem sobre o outro, Biden teria 341 delegados e Trump, 125. De acordo com a CNN, os Estados que estão solidamente no campo de Biden somam 203 cadeiras e aqueles que se inclinam para ele são mais 87, totalizando 290. Trump tem 163. 

Segundo modelo matemático da revista The Economist, Biden teria 350 votos no colégio eleitoral e Trump, 188. A chance de o candidato democrata vencer é de 92%, calcula a revista; a de o partido continuar com maioria na Câmara é de 99% e a de conquistá-la no Senado, 70%. 

Eliane Cantanhêde* - Zumbi internacional

- O Estado de S.Paulo

Vitória de Biden rompe a dupla 'Deus' e 'mito' e joga o Brasil no isolamento e no limbo

Contagem regressiva para as eleições americanas, em 3 de novembro, com o presidente Donald Trump dando sinais de desespero, perdendo o rumo, aprofundando a arrogância, incapaz de tirar do centro da pauta o seu maior calcanhar de Aquiles: a pandemia. Mais do que as pesquisas, é o próprio Trump quem sinaliza ao mundo que caminha para uma derrota histórica na maior potência do planeta.

Isso deixa o Brasil, e diretamente o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e o chanceler Ernesto Araújo, numa enrascada. Em seu artigo mais chocante, ou delirante, intitulado “Trump e o Ocidente”, Araújo prega que o Ocidente está em perigo e depende de Deus. Em seguida, nomeia: “só Trump pode ainda salvar o Ocidente”. Trump é Deus. Logo, coitado do Ocidente, estará perdido sem Trump.

São visões confusas, que põem o Brasil numa situação difícil com a perspectiva de um governo democrata, com Joe Biden e Kamala Harris. Onde esconder os textos de Araújo? O boné “Trump 2020” do ex-quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro? A subserviência de Jair Bolsonaro a Trump?

Resta a eles orar para o “Deus” Trump conseguir um milagre e repetir 2016: perder no voto popular, mas vencer no colégio eleitoral. Não é o que as pesquisas indicam, pois Trump perde não só em Estados-pêndulos, que historicamente podem ir para um lado ou outro, mas até em bases republicanas. Eleição não se ganha ou perde de véspera e Trump surpreendeu em 2016, tem estratégia e truques diabólicos – inclusive massificar que Joe Biden, de 77 anos, está senil, desorientado. Logo, nunca é demais botar um pé atrás, mas tudo aponta a vitória democrata.

Vera Magalhães - A construção de bunkers

- O Estado de S.Paulo

Como Bolsonaro minou o combate à corrupção para proteger a família

Bastou se aproximar do Centrão, da ala fisiológica do MDB e dos ministros antilavajatistas do Supremo Tribunal Federal que Jair Bolsonaro, logo quem, passou a ser visto por setores da política (os mesmos acima, diga-se) e até da imprensa como alguém imbuído da disposição de construir pontes.

Trata-se de uma leitura entre cínica e ingênua de uma realidade bastante clara aos olhos de quem quiser ver. Bolsonaro continua onde sempre esteve: avesso à ideia de qualquer composição a não ser as de ocasião, que lhe permitam lograr seus intentos na política e proteger a si e aos filhos da perigosa aproximação das garras da lei quando esticaram demais a corda da ruptura institucional e/ou foram com sede ao pote demais nos recursos públicos a que tiveram acesso nas suas longas carreiras políticas dotadas de todos os vícios de um clã tradicional brasileiro.

Eduardo Bolsonaro, o “03”, conhecido por ser dos menos brilhantes da família, deixou claro o jogo nas redes sociais, com direito a erro de português: “Não é arrependimento, é espertise (sic) de mudar de estratégia pois o plano original fracassou”.

Não precisa desenhar. O plano original era fazer as instituições se curvarem diante de uma tropa golpista, “antiestablishment”, como adorava se gabar o “estrategista” Filipe G. Martins. A pandemia foi o gatilho para colocar o plano original em marcha, com direito a uso de terroristas como Sara Winter, que agora se diz decepcionada, e seus 30 gatos-pingados.

O fracasso constatado pelo ex-quase-embaixador veio do próprio STF, que colocou freio aos delírios autoritários de Bolsonaro. 

Bernardo Mello Franco - Delírios amazônicos

- O Globo

A placa descerrada na cerimônia anunciava o início de uma “arrancada histórica”. De terno e gravata na selva, o presidente Emilio Garrastazu Medici se empolgou ao testemunhar a derrubada de uma árvore de 50 metros de altura. A queda da castanheira foi “aplaudida entusiasticamente” pelo general, relatou o enviado especial do GLOBO.

Medici havia pousado em Altamira para inaugurar a construção da Transamazônica, que se estenderia por mais de cinco mil quilômetros, cortando sete estados. A visita completou 50 anos na sexta-feira, mas a rodovia nunca ficou pronta. Alguns trechos foram engolidos pela floresta, outros jamais saíram do papel.

A obra faraônica fazia parte do Programa de Integração Nacional, lançado em 1970. A ditadura embalou o plano com o lema “Integrar para não entregar”. Nas palavras de Medici, era preciso “colonizar” a região para combater o “interesse estrangeiro”. O general prometia tirar o “relógio amazônico” do passado. Sua visão de futuro se resumia a fumaça, asfalto e motosserra.

A pretexto de povoar a Amazônia, os militares promoveram a exploração predatória da floresta. A ditadura estimulou a derrubada da mata para a criação de gado e o cultivo de soja. Garimpeiros e madeireiros também receberam subsídio para desmatar. Tudo em nome da “soberania nacional”.

Janio de Freitas – ‘Somos todos Ustra’

- Folha de S. Paulo

Declaração de Mourão presta um serviço ao esclarecer como o Exército pensa

Os generais Hamilton Mourão e Eduardo Pazuello, vice de Bolsonaro e ministro da Saúde, prestaram serviço muito apropriado à sociedade em geral, e à imprensa em particular, com suas mais recentes revelações.

Ao mesmo tempo pessoais e funcionais, as palavras de ambos despencam, talvez inadvertidas, sobre a assimilação de Bolsonaro e do bolsonarismo pelos meios de comunicação, outros setores antes eriçados como os atores e escritores, e muitas eminências, a ponto de no recuo a ombudsman da Folha, Flavia Lima, apontar também “amarelamento”.

A intervenção do vice consistiu em repentino elogio ao coronel Brilhante Ustra, que passou das masmorras da ditadura para a memória nacional como símbolo da criminalidade militar em torturas e assassinatos. Mourão sempre provocou interrupções na escalada da sua imagem de mais lúcido dos centuriões de Bolsonaro. O general dialogável, o general alternativo. Agora foi mais decisivo.

elogio a Ustra foi como Mourão dizendo-nos: Não se iludam. Nunca ouviram falar em pensamento único? É o nosso no Exército. Como vocês diziam “somos todos Marielle”, nós podemos dizer “somos todos Ustra”. E é assim que estamos aqui, para nossos objetivos, não para os de vocês.

Bruno Boghossian - Bolsonaro, Ustra e a 'direita burra'

- Folha de S. Paulo

Qual seria a tal direita iluminada com que Bolsonaro se identifica?

Depois de apanhar nas redes por uma semana, Jair Bolsonaro se irritou com as milícias digitais que costumavam agir a seu favor. Numa transmissão ao vivo, ele disse que os ataques à sua primeira indicação ao STF partiam de "uma direita burra". "Não é infiltrado de esquerda! Não é petista, não!", reclamou.

Em 2018, o candidato extremista que explorou uma agenda ultraconservadora conseguiu se vender como o verdadeiro representante da direita naquela campanha. Hoje, o presidente se sente confortável para questionar a inteligência dos ex-apoiadores que criticam os acordos políticos que ele fechou em busca de proteção para sua família.

Qual seria a tal direita iluminada com que Bolsonaro se identifica? O presidente pode estar pensando na turba que perseguiu uma menina de 10 anos que buscava um aborto legal depois de ser estuprada pelo tio. Ou na ministra de Estado que defendeu que ela levasse a gravidez adiante.

Ainda é possível que a referência destra do chefe de governo sejam os torturadores da ditadura militar. O próprio Bolsonaro, afinal, já usou o cargo para enaltecer o coronel Brilhante Ustra, condenado por sua atuação no regime. Na última semana, o vice Hamilton Mourão disse que aquele era “um homem de honra”.

Hélio Schwartsman - O que justifica as cotas?

- Folha de S. Paulo

Elas seguem na lógica de que podemos definir o destino de alguém com base em suas características fenotípicas

Há dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas seriam uma forma de reparar injustiças históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego para não ver que existe racismo estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria, então, uma forma de fazer justiça.

Não gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal, favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados, aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.

Elio Gaspari - Luiz Fux comeu a jabuticaba

- Folha de S. Paulo / O Globo

Alteração no regimento do STF levou para o plenário questões penais que envolvem foro privilegiado

Ao alterar o regimento do Supremo Tribunal Federal levando para o plenário questões penais que envolvem maganos com foro privilegiado, o presidente do Supremo Tribunal, ministro Luiz Fux, limitou o alcance da jabuticaba das duas turmas da Corte. Com a provável chegada de Kassio Nunes à segunda turma, no lugar de Celso de Mello, Gilmar Mendes reinaria absoluto. Com o seu voto, o de Kassio, mais o de Ricardo Lewandowski, formariam maiorias automáticas, inclusive nos processos da família Bolsonaro.

Isso no varejo. No atacado, Fux fez muito mais, pois as turmas do Supremo são uma jabuticaba criada no século passado. Não há no mundo corte constitucional renomada que decida em turmas. A Constituição diz que os ministros são 11, e 11 deveriam ser os ministros que decidiriam. Gilmar Mendes não gosta que se busquem paralelos na Corte Suprema dos Estados Unidos, mas lá só há turmas quando os juízes fazem ginástica no último andar do prédio.

A providência é tão cristalina que Gilmar Mendes não gostou, mas votou a favor da mudança, decidida por unanimidade.

A provável chegada de Kassio Nunes ao Tribunal, com seu currículo e seu percurso, obrigará Fux e seus colegas a trabalhar para recolocar a composição nos trilhos. Limitando o poder das turmas, a bola volta ao centro do campo, e as decisões que envolvem maganos com foro privilegiado vão para o plenário. A menos que se faça uma pirueta, muita coisa poderá acontecer em função dessa mudança, e mudará a qualidade da proteção de réus condenados por malfeitorias e roubalheiras. Aquilo que poderia ser resolvido com três conversas, precisará de pelo menos seis.

Vinicius Torres Freire - Pense em Maria, 109, que o vírus levou

- Folha de S. Paulo

Epidemia vai se arrastar e já pode ter matado quase 1 em 100 idosos de São Paulo

Duas mulheres de 109 anos morreram de Covid na cidade de São Paulo. A doença levou 46 paulistanos de cem anos ou mais.

A gente sabe que esta é uma peste ainda mais cruel com os idosos. As pessoas de mais de 65 anos são cerca de 75% dos mortos pela doença tanto aqui na cidade como no estado de São Paulo. Mas a gente vai bulir nas estatísticas por outros motivos e vê lá então que duas paulistanas de 109 anos morreram de Covid. É outra história.

Dá o que pensar: nessas mulheres, no paulistano de 104 anos que o vírus levou, nessa morte muitas vezes dolorosa e sempre solitária, de nenhuma despedida. Penso na minha avó Maria, que morreu aos 101, antes desta praga, que esteve muito bem até pouco antes de partir, quando então ainda cozinhava e teria ido à feira sozinha, se deixassem.

Penso nas outras Marias centenárias ou nem perto disso, todas muito ameaçadas pela indiferença geral e crescente, que não deve diminuir agora que São Paulo entrou na “fase verde” da epidemia.
Penso nos amigos e nos parentes do homem de Man Bac.

Ele viveu faz mais de 4 mil anos no que é hoje o Vietnã. Arqueólogos descobriram que esse homem sofria de um mal que o deixou paralisado da cintura para baixo desde antes da adolescência. Quase não podia mexer os braços, se tanto, ou se alimentar sozinho, mas sobreviveu pelo menos uma década depois do ataque da doença.

Míriam Leitão - Perdas humanas e custo econômico

- O Globo

Por Alvaro Gribel (interino)

O Brasil chega a 150 mil mortes na pandemia combinando o pior dos cenários: elevado custo econômico e um número assustador de perdas humanas. Na média de mortes por milhão, o país é o pior entre as 10 maiores populações. Ultrapassou os Estados Unidos. Na economia, também não há o que comemorar. O custo fiscal foi mais elevado porque o governo não soube fazer o que era mais barato: comunicar de forma eficiente e orientar a população. Vários estudos têm comprovado que há uma relação direta entre a redução das mortes e a recuperação do consumo.

O FMI divulgou um relatório importante na última semana confirmando que os países que melhor controlaram o vírus estão tendo maiores ganhos econômicos. Se a perda no curto prazo foi mais forte, pelas políticas de isolamento social, no médio prazo isso está sendo compensado pela volta da confiança. O Fundo lembra que há o isolamento orientado pelo governo e o isolamento voluntário, quando as famílias ficam trancadas em casa pelo medo do vírus. De um jeito ou de outro o isolamento acontece, e é melhor que seja de forma organizada. Isso quer dizer que nunca houve trade off entre saúde e economia, as duas coisas sempre andaram juntas, de forma complementar.

*Pedro S. Malan - Corredor estreito, tempo curto

- O Estado de S.Paulo

Podemos estar escrevendo a crônica de um fim de linha preanunciado

 

“A função intelectual exercita-se sempre por antecipação (sobre

o que poderia acontecer) ou 

com atraso (sobre o que ocorreu); 

raramente sobre o que está 

acontecendo, por razões de ritmo, pois os eventos são sempre 

mais rápidos e prementes do que 

as reflexões sobre os mesmos”

Umberto Eco

As palavras de Eco retêm especial relevância e atualidade à luz do que está a acontecer no mundo e no Brasil da pandemia. Estamos em meio ao mais severo choque global dos últimos 75 anos. Os impactos, diretos e indiretos, da covid-19 estarão conosco muito além deste dramático ano de 2020, e não ficarão restritos a questões de saúde pública.

A pandemia criou problemas econômicos e sociais, derivados de choques negativos simultâneos da oferta e da demanda que se reforçaram mutuamente em infernal círculo vicioso. Perderam-se dezenas de milhões de empregos, é inédita a contração da atividade econômica, elevaram-se em escala global os níveis de pobreza, vulnerabilidade e desigualdade.

“Quando chegaremos ao pós-covid?” é a pergunta que se ouve com frequência. Não é, lamentavelmente, pergunta muito apropriada. Não há “novo normal” no horizonte. O curso da História nada tem de normal, sempre esteve pleno de peripécias, instabilidades e surpresas. Quando medicamentos eficazes tiverem surgido, vacinas aprovadas e aplicadas em bilhões de pessoas – mesmo então, e muito além, estaremos a falar do “mundo pós-covid” para designar o que se tenha seguido a 2020. Ano em que, além da pandemia, e por causa dela, se exacerbaram tendências preexistentes.

Em particular no que diz respeito ao crescente descontentamento com a globalização, que a crise de 2008-2009 fez eclodir de forma contundente. Descontentamento com os efeitos dos avanços tecnológicos sobre o mercado de trabalho e o consequente agravamento da percepção de excessiva desigualdade na distribuição de oportunidades. Essa tendência é duradoura e continuará a exigir respostas econômicas e políticas dos governos e, paradoxalmente, inescapável cooperação internacional. O mundo já é outro no pós-2020 – e o Brasil também.

Rolf Kuntz* - Um gigante sem fôlego e sem rumo

- O Estado de S.Paulo

Sem plano sequer para alongar a retomada, o País parece condenado a crescer menos que 3%

O Brasil, vejam só, deixou de ser o país do futuro. Que futuro pode ter um país emergente incapaz de crescer 3% ao ano? Esqueçam Stefan Zweig. Pensem num ministro da Educação preocupado com a vida sexual dos estudantes, num ministro do Meio Ambiente avesso à proteção das florestas, num ministro da Economia empenhado em recriar uma aberração tributária, a CPMF. Considerem um presidente negacionista, propagandista da cloroquina e centrado em interesses pessoais e familiares, com destaque para a reeleição. Quem se importa, em Brasília, com o miserável crescimento projetado para o médio e o longo prazos, nada além de 2,5% ao ano?

Bolas de cristal muito consultadas preveem mediocridade, ou algo pior que isso, no médio e no longo prazos. Por enquanto, há algum dinamismo. Passado o grande choque, os negócios voltaram a mover-se, como em todo o mundo. Em 2021 o produto interno bruto (PIB) crescerá 3,5%, segundo a mediana das projeções do mercado. A expansão ficará em 2,8%, de acordo com estimativa recente do Fundo Monetário Internacional (FMI). A partir daí o cenário fica menos claro, mais inquietante e, principalmente, mais estimulante para uma avaliação das condições do Brasil.

Sérgio C. Buarque - Decrescimento? O que é isso?

 - Revista Será? (PE)

Durante o lockdown da China, no início deste ano, fotografias da Nasa mostravam a purificação do ar nas grandes cidades chinesas poupadas da emissão de poluentes, evidenciando a relação direta entre o nível de atividade econômica e a degradação do meio ambiente. Apesar da bela e inspiradora foto, o mundo torcia pela recuperação da economia chinesa, pelos negócios que gera e pelos milhões de empregos que dependem do crescimento econômico da China. Dados os atuais níveis de produção e consumo, a estrutura produtiva e o padrão tecnológico dominante, o aumento do PIB provoca uma elevação proporcional da pressão sobre o meio ambiente. A desejada recuperação da economia chinesa vai continuar degradando a natureza e emitindo gases de efeito estufa, embora o governo chinês esteja fazendo um esforço sério de recuperação e moderação das pressões antrópicas no país.

Os padrões produtivos e tecnológicos não são constantes e estão mesmo atravessando, neste século, mudanças profundas que, no geral, tendem a reduzir o impacto ambiental, ou pelo menos, conter a marcha desesperada para o abismo. Ainda muito insuficiente, é verdade, mas está em curso uma transição energética para novas fontes renováveis, inclusive na China, emergindo novas alternativas de uma economia verde e atividades de baixo carbono, acelerando inovações tecnológicas que amortecem as pressões antrópicas, e aumentando a participação na estrutura produtiva do setor Serviços de baixo impacto ambiental. Tudo isso reflete o aumento da consciência ambiental no mundo e o debate técnico e político alimentado por diferentes proposições e negociações.

Desde a década de 90, quando as Nações Unidas lançaram a proposta de desenvolvimento sustentável e, mais recentemente, com as pesquisas e o debate em torno das mudanças climáticas, vem crescendo a preocupação mundial com a degradação do meio ambiente e, ao mesmo tempo, com a pobreza e a exclusão social no planeta[1]. O conceito de desenvolvimento sustentável parte da compreensão de que o modelo econômico atual está destruindo a natureza e de que são necessárias reorientações profundas na produção, no consumo, na tecnologia. A proposta se sustenta na correlação e busca do equilíbrio dos pilares equidade socialconservação ambiental e crescimento econômico, mesmo sabendo que existem tensões entre eles e que, por último, dependem de escolhas políticas.

Entrevista | Elly Schlein, Vice-Governadora da Emília Romanha (Itália): Extrema direita em xeque

‘A esquerda não quis propor um modelo corretivo para as desigualdades. É o que falta.’

 Dirigente da região da Emília Romanha, Elly Schlein, de 35 anos, defende que progressistas precisam formar rede internacional, como faz a direita populista: 'Não podemos deixar o internacionalismo aos nacionalistas'

Lucas Ferraz, especial para O Globo (10/10/2020)

ROMA — Elly Schlein, 35 anos e sem partido por opção, é vista como uma esperança de renovação para a centro-esquerda italiana. De pai americano e mãe italiana, nascida em Lugano, na Suíça, Elly estudou direito em Bolonha e foi eleita para o Parlamento Europeu pelo Partido Democrático em 2014, rompendo com a sigla no ano seguinte. Antes, foi voluntária nos EUA nas duas campanhas presidenciais de Barack Obama. Bissexual declarada, após a experiência como parlamentar em Bruxelas enveredou na política nacional. Mais votada nominalmente na eleição para a Assembleia da Emília Romanha, foi depois convidada para ser a vice-governadora na chapa do mesmo PD com o qual rompera. Ela se destacou na campanha ao registrar um encontro — por acaso, disse – com Matteo Salvini e questioná-lo sobre a omissão da Liga nas votações no Parlamento Europeu sobre a imigração.

O vídeo, que viralizou, mostra um Salvini que enrola e escapa sem respondê-la. Schlein falou com o GLOBO num bar da Praça Venezia, no centro de Roma. Ela — que disse ter ficado admirada com a história de Marielle Franco, conhecendo sua trajetória após o assassinato — estava na cidade para alguns compromissos, entre eles uma manifestação pelos direitos dos imigrantes.

A senhora tem dito que a esquerda precisa de um choque. Que tipo de choque?

A esquerda perdeu terreno porque não foi capaz de propor um modelo que governasse as grandes transformações que estamos vivendo, a desigualdade econômica e social, as mudanças demográficas, territoriais e de gênero. A esquerda não repensou o Estado de bem-estar num sentido universal. De outra parte, não fomos capazes de propor uma alternativa que promovesse uma renovação da economia observando a questão ecológica e as novas tecnologias. A transição ecológica é extremamente complexa numa sociedade que vem de anos de industrialização, e a esquerda não foi capaz de exprimir essa alternativa. Precisa de um choque cultural, geracional, de método. Vimos uma política fechada nos palácios, autocentrada, distante das pessoas. Um governo sem visão de integração tecnológica deixa todo o processo com os grandes grupos de tecnologia, que acumulam riqueza, governam a nossa vida, roubam os nossos dados e mantêm o conhecimento em poucas mãos. Se amanhã desaparecerem da Itália todos os imigrantes, a minha geração não terá aposentadoria. Mas a política não tem coragem de dizer isso por medo da reação da direita. Já somos um país multicultural. A resposta ao tema da imigração levantada pela direita não pode ser o silêncio, como frequentemente acontece. Uma sociedade mais segura é também mais inclusiva, a história mostra isso. A política precisa encontrar a coragem para chamar as coisas pelo nome. Um dos problemas é exatamente esse.

O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais

A conversão e o compadrio – Opinião | Revista IstoÉ

Eis que Brasília assiste a uma nova tomada de poder. O Centrão, aquele bloco político disforme e corrosivo, avesso a práticas republicanas, já assumiu por completo as rédeas no Planalto. Para salvar as duas causas que julga essenciais — a proteção à família contra investigações por malfeitos notórios e a reeleição — Bolsonaro cercou-se do pior. Entregou-se à esbórnia craquenta do toma lá, dá cá, do compadrio fisiológico, da desfaçatez nos arranjos espúrios. E não imagine que fez isso de malgrado. Claro que não!

Quem o conhece de tempos imemoriáveis, sabe e não se deixa levar pelo verniz marqueteiro do Messias senhor das boas novas. Desde sempre quis o mandatário incorporar no governo convicções baixo clero acalentadas em toda a sua trajetória. Obviamente, elas nunca incluíram medidas liberalizantes, privatizações, reformas estruturais e as “baboseiras” de Estado enxuto. Não era da sua crença, natureza ou interesse pregar tantos vitupérios revolucionários. Ele ventilou como promessas durante a campanha? Claro que sim! Precisava arregimentar seguidores à causa.

Ineptos senhores do capital, sedentos por alternativas conservadoras que lhe garantissem lucro, caíram voluntariamente na lorota. Valeu a mentira. Sempre vale, em se tratando da tática prevalente no abecedário do capitão. Mas Bolsonaro tem unidade carnal com as chamadas conveniências paroquiais. Prefere levar vantagem em tudo, certo Gérson? Tome-se o exemplo da indicação desse desembargador Kássio Nunes Marques à cadeira no Supremo Tribunal — e nem vamos entrar no estupendo show de maquiagens do currículo fake do honorável indicado, que inclui cursos inexistentes, plágio de artigos e a turbinada de títulos como método de promoção (de novo? Indagariam os saudosos do episódio Decotelli, que ocupou a pasta da Educação por lapso de dias).

De que critérios se valeu o “mito”? Em suas próprias palavras, precisava ser alguém que tomasse cerveja ao seu lado nos finais de semana. Até tubaína valia. Afinal, na bolsa de valores do capitão, uma rodada de bebida no balcão do boteco substitui qualquer necessidade de qualificação técnica. O presidente também disse buscar alguém “leal as nossas causas”. E quais seriam elas? Um doce para quem adivinhar. Flávio Zero Um Bolsonaro encalacrado já levou papai-mandatário a pedir arrego ao então plenipotenciário do STF, Dias Toffoli.

Ter agora um nome de sua estrita confiança, indicado diretamente por ele, na Suprema Corte, seria mamão com açúcar. “Kássio Nunes já tomou muita tubaína comigo. A questão de amizade é importante, né? O convívio da gente”. A reveladora sinceridade do inquilino palaciano deixa uma mensagem inequívoca: para ele, no plano da Justiça, colocar amigos que atuem como defensores de seus interesses é algo fundamental. Diria: o que basta. Jair Bolsonaro confunde zelo à Constituição com proteção ao governo. Quer ministros magistrados subjugados, prestando-lhe vassalagem e gratidão pela benção da cadeira ocupada.

Poesia | João Cabral de Melo Neto - A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.