segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Fernando Gabeira - O discreto poder das eleições

- O Globo

O prefeito que canalizar energia positiva que há no Rio poderá conduzir a cidade ao seu papel no planeta

Outrora tão animadas, as eleições municipais, coitadinhas, foram bombardeadas, este ano, por vários mísseis adversos: pandemia, as próprias eleições americanas e o crescente desencanto com a política.

Estávamos certos, no passado, quando dávamos a elas uma atenção maior que à escolha por cargos federais. Reuniões diárias, comícios domésticos, sabíamos que, mais do que todas, elas podem transformar nosso cotidiano.

É hábito usar as eleições municipais para checar a força dos líderes nacionais. Bolsonaro mostrou-se um cinturão de chumbo, mas seus candidatos nas duas grandes cidades são náufragos vocacionados: Russomanno populista pelo consumidor e Crivella tentando estrangular uma metrópole cosmopolita, com sua mediocridade administrativa e rígidos princípios religiosos.

A cidade onde vivo por amor passa por um perigoso momento de decadência. Algumas pessoas talentosas já a deixaram ou se preparam para isso. A pandemia nos atingiu em cheio.

Tenho o hábito de documentar os moradores de rua do meu bairro, na esperança de reter com as imagens os únicos rastros de sua passagem pelo mundo. Muitos desapareceram e, no seu lugar, veio uma multidão: famílias inteiras com seus animais domésticos e alguns trapos para cobrir a cama de papelão.

Nesta eleição, em vez de discutir candidatos, conversei sobre programas com pessoas que gostam e entendem do Rio. Minha expectativa inicial foi plenamente satisfeita por eles: não é hora de partir, temos uma grande chance de encontrar a vocação da cidade e de transformá-la numa das mais atraentes para viver no planeta.

Bonita e situada entre o mar e a Mata Atlântica, o Rio pode ser um lugar onde a qualidade de vida e o respeito ao meio ambiente impulsionam a economia. Quem diz isso é Arminio Fraga, que conhece o mundo, o Rio e a economia.

Eliane Cantanhêde - Eleitor dá uma grande vitória ao País

- O Estado de S.Paulo

Depois de se aventurar sem racionalidade em 2018, eleitorado desta vez preferiu caminhar em terra firme e a grande vitória destas eleições é da política tradicional

As eleições de 2018 foram um hiato e as de 2020 repõem as coisas nos devidos lugares. Assim como nesses dois anos evaporaram todas as bandeiras de campanha do presidente Jair Bolsonaro, também sumiram de Norte a Sul os partidos, candidatos e compromissos inventados sob o rótulo de “nova política”. Eles não tiveram vez.

Depois de se aventurar sem racionalidade em 2018, o eleitorado desta vez preferiu caminhar em terra firme e a grande vitória destas eleições é da política tradicional, do conhecido, de quem tem serviço prestado. A direita belicosa de Bolsonaro ficou pelo caminho, junto com o PSL, militares, policiais, bombeiros e juízes que se meteram onde não deviam.

Vera Magalhães - Há espaço contra polarização Bolsonaro-PT

- O Estado de S.Paulo

O que fica evidente é que há espaço para projetos alternativos à polarização Bolsonaro-PT, porque o eleitor está cansado do primeiro e sem saudade do segundo

Existe a máxima segundo a qual eleições municipais levam em conta apenas fatores diretamente ligados aos municípios. É verdade. Mas também é impossível, sobretudo nos grandes centros urbanos, dissociar esse voto de algumas balizas nacionais.

A primeira delas neste 2020 é a pandemia. Ela não só mudou a maneira como se fez campanha como moldou a disposição do eleitor de encarar os candidatos de forma mais racional e desapaixonada. Os gestores que demonstraram responsabilidade no trato da pandemia foram reconhecidos pelo eleitor.

A segunda grande conclusão possível é que houve um resgate da política do pântano no qual ela foi jogada depois de eventos traumáticos como Lava Jato, impeachment de Dilma Rousseff, prisão de Lula, desmoralização de Aécio Neves e denúncias em série contra Michel Temer no curso de sua curta Presidência.

Esse conjunto surreal de eventos, em menos de quatro anos, permitiu que um outsider como Jair Bolsonaro virasse um Cacareco com sucesso eleitoral.

A pandemia, a maneira irresponsável com que Bolsonaro se comportou ao longo do ano e a rápida debacle de outras figuras histriônicas eleitas na sua aba levaram a que agora, apenas dois anos depois, a “nova” política fosse devolvida às redes sociais.

Rosângela Bittar - Pandemia tem impacto no voto

- O Estado de S.Paulo

O eleitor se distanciou de 2018, quando apostou numa nova política que caducou em menos de dois anos

O impacto da pandemia do coronavírus sobre o eleitor municipal foi amplo, sem limites. Longe de impor seu peso apenas sobre a esperada abstenção dos mais velhos, o efeito maior se deu sobre a definição dos critérios do voto.

O eleitor se distanciou de 2018, quando apostou numa nova política que caducou em menos de dois anos. Também se mostrou alheio a 2022, indiferente à sucessão de Jair Bolsonaro. Pensou no aqui e agora. Valorizou a experiência, a política convencional. Quis escolher as lideranças que, com paixão, compreendessem o drama principal. Menos ideologia, mais emoção.

Ao longo do ano, o eleitor municipal veio informando sobre a prioridade que atribuía à pandemia. Os que negaram a crise sanitária sentiram agora sua presença eleitoral.

Ricardo Noblat - A orfandade dos que ainda acreditavam na força de Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

Por mais que ele negue, como negou a pandemia, perdeu

São Paulo, em 2022, estará para Jair Bolsonaro como a Filadélfia esteve há pouco para Trump? Há dois anos Bolsonaro venceu em São Paulo, como há quatro Trump havia vencido na Filadélfia. São Paulo, na eleição de ontem, deu as costas a Bolsonaro e deixou os bolsonaristas órfãos de um candidato a prefeito.

Farão o quê quando tiverem de comparecer outra vez às urnas no próximo dia 29? Votar em Guilherme Boulos (PSOL), um candidato de esquerda que mimetiza Lula, nem pensar. Até hoje ainda fazem questão de lembrar que o desequilibrado mental que esfaqueou Bolsonaro em Juiz de Fora era filiado ao PSOL.

Votar em Bruno Covas (PSDB), mas como? O partido de Covas faz oposição a Bolsonaro. O governador João Doria foi escolhido por Bolsonaro como seu inimigo número um. Doria fez questão de dizer que Bolsonaro foi o grande derrotado no primeiro turno da eleição na capital paulista. Covas já avisou que quer distância dele.

Na eleição da pandemia, cresceu por toda parte a parcela do eleitorado que preferiu abster-se.  Com 99,89% das urnas apuradas, o país registrou 23,14% de abstenções, o maior índice para eleições municipais dos últimos 20 anos. No Brasil, o voto é obrigatório. Talvez no futuro próximo se torne facultativo.

Celso Rocha de Barros* - São Paulo deixou Bolsonaro sem teto

- Folha de S. Paulo

Reorganização da esquerda pode ser sintoma da volta da política brasileira ao normal

Com a passagem de Guilherme Boulos (PSOL-SP) para o segundo turno da eleição em São Paulo, Jair Bolsonaro tornou-se um sem-teto na política paulistana. Bruno Covas (PSDB-SP), que terminou em primeiro e disputará a prefeitura com Boulos, também é adversário do governo federal. O candidato de Bolsonaro, Celso Russomanno, tornou-se um sem-piso depois de receber o apoio presidencial.

O líder sem-teto realizou um feito notável. Sem o apoio do PT –cujo candidato, Jilmar Tatto, teve 8% dos votos válidos na boca de urna Boulos conseguiu atrair a maior parte dos eleitores que deram a Prefeitura de São Paulo à esquerda em três oportunidades. A campanha de Boulos foi eficiente em linguagem e proposta, e a escolha de Luiza Erundina como vice não poderia ter sido melhor: acrescentou experiência administrativa à candidatura e fez o aceno certo ao eleitorado petista.

Boulos foi o mais surpreendente dos "meteoros vermelhos", expressão criada por Vinícius Torres Freire para descrever os candidatos fortes de esquerda em uma eleição dominada pela centro-direita. O outro, que se saiu melhor do que Boulos, inclusive, mas tinha apoio do PT, foi Manuela D’Ávila (PC do B-RS), candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad em 2018. Manuela deve ir ao segundo turno em Porto Alegre com impressionantes 40% dos votos válidos.

Marcus André Melo* - O Leviatã Domado

- Folha de S. Paulo

Os dois pecados originais do desenvolvimento institucional nos EUA

Como entender a inexistência nos EUA de uma autoridade eleitoral federal? Por que o país é a única democracia rica sem um sistema público de saúde ou um imposto sem valor adicionado? O que explica a recorrência de protestos raciais?

As vicissitudes institucionais do país foram analisadas por Acemoglu e Robinson no merecidamente festejado "O Corredor Estreito".

O argumento é que a chave para a emergência de uma democracia inclusiva e próspera é um Leviatã domado: produto do fortalecimento da capacidade estatal e de uma sociedade ativa.

Um estado forte é pré-condição para o controle da violência, a provisão de bens públicos e a proteção dos direitos de propriedade; a sociedade forte é o que impede que o estado fortalecido degenere em exclusão, predação e arbítrio. O argumento é dinâmico: o mecanismo combina sucessivas ondas de fortalecimento do estado com contrapontos pelos quais a sociedade mantém o estado sob controle. Parafraseando Jefferson, as rebeliões são boas para fazer o governo sentir-se sempre vigiado.

Bruno Carazza* - Em busca de sinais

- Valor Econômico

Eleições mornas dificultam leitura dos resultados

 “Que lições podemos tirar destas eleições?”, pensava eu enquanto voltava para casa depois de cumprir minha obrigação democrática, esta coluna esperando para ser escrita. Seções sem filas, nenhum cabo eleitoral distribuindo santinhos nas imediações do local de votação, ruas desertas como num feriado qualquer - nem parecia dia de eleição.

A pandemia foi apontada por muitos como a principal razão para o desinteresse demonstrado pelo eleitor com o pleito deste ano. Certamente o medo da contaminação e as medidas de distanciamento social tiveram sua importância, mas o novo coronavírus está longe de ser a única explicação.

Nos últimos meses os governos locais flexibilizaram as restrições às atividades econômicas e sociais, e muitos de nós também relaxamos as limitações auto impostas de circulação. Dados compilados pelo aplicativo Waze e disponibilizados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) mostram que a taxa de congestionamento de trânsito nas regiões metropolitanas brasileiras, que chegaram a cair mais de 80% em abril, já estavam “apenas” 8% menores na última semana. O relatório de mobilidade urbana do Google também vai na mesma direção, indicando que a frequência a locais de trabalho, que atingiu -34% na última semana de março, já havia recuperado para -5% no dia 10, na média nacional.

Sergio Lamucci - O contraste entre 2021 e o cenário de curto prazo

- Valor Econômico

Economia foi bem no terceiro trimestre, mas o quadro para o futuro continua incerto

O crescimento da economia brasileira no terceiro trimestre saiu melhor que a encomenda. As estimativas apontam para uma expansão na casa de 9% em relação ao trimestre anterior, feito o ajuste sazonal. Além da reação ao tombo violento dos três meses anteriores, quando houve o impacto mais forte da pandemia, o efeito do auxílio emergencial foi significativo, e setores como construção civil e agronegócio vão bem. No ano, é possível uma queda do PIB na casa de 4% ou até menos, um recuo significativo, mas bem menor do que a retração de 9,1% que o Fundo Monetário Internacional (FMI) chegou a projetar em junho.

Esse bom resultado de curto prazo, contudo, não assegura que o ritmo de crescimento vai continuar firme nos próximos meses. Mais uma vez, o governo de Jair Bolsonaro age para produzir incertezas, em vez de buscar diminuí-las. Primeiro, não há clareza sobre o quadro fiscal que vai prevalecer em 2021, a um mês e meio do começo do ano. A definição do Orçamento deve ficar para o primeiro trimestre do ano que vem. Não se sabe se um programa mais amplo de transferência de renda será criado, por exemplo.

Cacá Diegues - Vai melhorar, sim

- O Globo

Vamos trocar a pólvora pela saliva, o contrário do que Bolsonaro propõe. Que a saliva não acabe nunca!

Depois de quase dois anos ouvindo absurdos políticos e assistindo desorientados às trapalhadas totalitárias do presidente; depois dos cerca de nove meses de uma pandemia de muitos mortos, para os quais as autoridades federais não deram a menor bola; depois de uma recuperação significativa de nosso PIB, que fez o Brasil ter agora, contados pelo IBGE, 199 mil milionários e 52 milhões de pessoas, um quarto de sua população, vivendo abaixo da linha de pobreza; depois de tanto susto e surpresa, os brasileiros foram enfim às urnas escolher seus administradores municipais. Menos, é claro, em Macapá, capital do Amapá, o estado sem luz.

Celebremos nesta eleição o sucesso do espírito democrático, um teste de nossa capacidade de escolher quem vai mandar na nossa rua pelos próximos quatro anos. Passaremos quatro anos explicando a nossos pares o que anda acontecendo e eles ainda não entenderam; ou nos declarando traídos por um governo municipal e uma câmara de vereadores de sacripantas e enganadores. Pois é disso que trata a democracia, o regime mais parecido com o ser humano. Ou, como dizia Churchill (ou não sei quem), o pior regime que existe, excetuando todos os outros.

Carlos Pereira - Combate à corrupção tem ideologia?

- O Estado de S. Paulo

Rotular iniciativas e movimentos de combate à corrupção como “de direita” tem sido uma alegação comum da esquerda, não apenas no Brasil.

Tem-se argumentado que, ao expor os meandros e bastidores do suposto “jogo sujo” da política, movimentos anticorrupção desempenhariam um papel central de fortalecimento da antipolítica. A devastação moral do governo de plantão fortaleceria o sentimento de que a política não seria mais um veículo de mudanças – todo o sistema seria corrupto e só um líder messiânico, fora do sistema – ou seja, fora da “política” – seria capaz de exercer mudanças significativas e, finalmente, higienizar a política.

Movimentos de combate à corrupção seriam, assim, paradoxais. A rejeição generalizada da política levaria necessariamente à fragilização do sistema vigente e ao surgimento de políticos de perfil populista e carismático que prometem acabar com a corrupção. Entretanto, uma vez eleitos, esses líderes “antipolítica” acabariam por colocar em risco as próprias instituições do País. Como exemplos, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Silvio Berlusconi na Itália ou Jair Bolsonaro no Brasil.

Marcelo Trindade* - Coalizão em torno do centro

- O Globo

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia

Menos de 50 mil votos em três estados (Arizona, Geórgia e Wisconsin). Essa foi a real diferença que elegeu Joe Biden presidente dos Estados Unidos, não os mais de cinco milhões de votos de vantagem no resto do país.

Para a maioria dos analistas, essa vitória só foi possível porque Biden é de centro, capaz de atrair eleitores de todas as correntes. Só a coalizão foi capaz de vencer o radicalismo, e por tão pouco. É urgente traduzir essa lição para o ambiente brasileiro, se pretendemos, como nação, voltar a progredir, deixando para trás a ignorância e o ódio.

Um bom começo é reconhecer a fragilidade da democracia e trabalhar imediatamente por uma coalizão em torno do centro, que possa vencer as eleições de 2022.

Voto antipolítica fica para trás

Eleitores privilegiaram em suas escolhas nomes já conhecidos e com experiência pública testada, ou no Executivo ou no Legislativo

Por Malu Delgado e Ricardo Mendonça | Valor Econômico

SÃO PAULO - Pulverização partidária, ascensão do DEM como grande força de direita, recuperação da esquerda sem a hegemonia petista e derrota do bolsonarismo foram as principais marcas das eleições municipais de ontem. Foi um pleito com características bastante distintas do anterior, em 2018, quando postulantes que negavam a política se elegeram nos Estados e despontaram como novas lideranças no Congresso, puxados pelo radicalismo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.

DEM e esquerda se fortalecem em capitais

Desta vez, os eleitores privilegiaram nomes já conhecidos e com experiência pública. Para o cientista político Leonardo Avritzer, esses movimentos políticos apontam para um “pós-bolsonarismo” em 2022. A disputa foi realizada em 5.567 municípios em meio à pandemia, com o número recorde de 556.033 candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador. Uma eleição em que os 147,9 milhões de eleitores aptos a votar foram chamados a exercer esse direito.

O DEM é um dos partidos que saem fortalecidos: venceu a disputa no primeiro turno em três capitais - Florianópolis, Curitiba e Salvador - e disputa o 2º turno no Rio, com Eduardo Paes. O vencedor com uma das maiores votações proporcionais nas capitais até o início da madrugada de hoje era Alexandre Kalil (PSD), em Belo Horizonte, reeleito em primeiro turno com 63,37% dos votos.

No Recife, um fato inédito: a histórica polarização entre direita e esquerda deu lugar a uma disputa, no segundo turno, entre candidatos do mesmo campo político (esquerda). O deputado João Campos (PSB) ficou com 29,17% dos votos, seguido pela deputada Marília Arraes (PT), com 27,95% - os dois são, respectivamente, bisneto e neta do ex-governador Miguel Arraes.

No grupo dos candidatos eleitos em primeiro turno apoiados por prefeitos em fim de mandato o maior destaque foi Bruno Reis (DEM), em Salvador, apadrinhado pelo prefeito ACM Neto (DEM).

Entrevista | ‘O discurso da nova política perdeu a força’, diz cientista político Jairo Nicolau

Ainda sem o resultado oficial do primeiro turno, especialista avalia que as urnas apontam para uma vitória dos grandes partidos e uma redução do impacto das redes sociais

Maiá Menezes | O Globo

Especialista nos meandros da política e autor do livro “O Brasil virou à direita”, publicado este ano, o cientista político Jairo Nicolau interpreta o resultado das urnas como um retorno ao que classifica como velha ordem, em uma eleição em que o espectro da “nova política”, que dominou 2018, se dispersou. Em entrevista ao GLOBO, ainda sem o resultado oficial das urnas, ele avalia o cenário pós-primeiro turno e o impacto desta eleição em 2022.

Na sua avaliação, o presidente Jair Bolsonaro demonstrou peso na transferência de voto?

O presidente Jair Bolsonaro não tem projeto de organizar um campo político, um partido, todo jogo dele é muito solitário. Nesses dois anos, ele perdeu lideranças que o apoiaram. Não conseguiu agregar nada coletivamente. Ele agiu, na eleição, no estilo que manteve no governo: dando apoios pessoais e ocasionais em lives. Não mirou um campo político. Apoiou candidatos diferentes entre si. Não transferiu votos para ninguém. E quem se elegeu com o poder de transferência que ele tinha em 2018 foi embora. No Rio, na reta final, ele no máximo deu quatro pontos ao (Marcelo) Crivella para chegar ao segundo turno — um candidato que tem a máquina da igreja (Universal) e da própria gestão.

O que as urnas marcaram neste 2020?

Ficou claro que o discurso da “nova política” perdeu a força. As redes sociais perderam a força, muitos candidatos que subiram com o Bolsonaro em 2018 não foram bem. O próprio Crivella tem 1/5 dos votos que teve em 2016. Vejo uma chance remotíssima de se reeleger.

O discurso da nova política então não prosperou?

Houve de fato um insucesso. A maior renovação de 2018 foi a renovação dos votos do PSL. (Em 2016) Houve uma frustração, que levou o Rio a defenestrar o candidato do ex-prefeito Eduardo Paes (o deputado federal Pedro Paulo). O (governador afastado do Rio) Wilson Witzel deu no que deu. Me parece que houve um reencontro com a política. Um entendimento de que ela deve ser feita por intermédio de lideranças. (Guilherme) Boulos (candidato do PSOL em São Paulo) é liderança política importante. Lideranças do DEM ressurgiram.

Bernardo Mello Franco - Onda bolsonarista virou marolinha

- O Globo

A onda que varreu as urnas em 2018 virou marolinha nas eleições municipais. Há dois anos, Jair Bolsonaro impulsionou a vitória de azarões e aventureiros em todo o país. Agora colhe fiascos na maioria das disputas em que se meteu.

O presidente pediu votos em seis capitais. Em quatro delas, seus candidatos naufragaram ainda no primeiro turno. Em Manaus, Coronel Menezes amargou um quinto lugar. No Recife, Delegada Patrícia terminou em quarto. Em Belo Horizonte, Bruno Engler ficou em segundo, mas não conseguiu nem 10% dos votos válidos.

Em São Paulo, Bolsonaro teve uma tripla derrota. Seu aliado Celso Russomanno, que liderava as pesquisas, derreteu e acabou na quarta posição. Os dois finalistas não querem conversa com o capitão. Bruno Covas já dispensou qualquer hipótese de apoio, e Guilherme Boulos faz oposição radical ao Planalto.

Bela Megale - O discurso de perdedor de Bolsonaro nas eleições municipais

- O Globo

O presidente Jair Bolsonaro já tem um discurso ensaiado para tentar tirar do seu colo derrotas amargadas por boa parte de candidatos que ele apoiou nas eleições municipais. O caso mais emblemático é o de Celso Russomano, que ficou em 4o lugar em São Paulo.

Segundo integrantes do governo, a estratégia é defender a tese de que o apoio público dado pelo presidente serviu para mostrar ao eleitor o seu contínuo incentivo ao voto conservador, com o propósito de aprofundar os laços com essa base, em especial, com os evangélicos.

Em conversas recentes, quando aliados alertaram o presidente de que o cenário estava ruim e as derrotas seriam associadas a ele, Bolsonaro já vinha saindo pela tangente. Ele dizia que não mergulhou de cabeça nas campanhas, mas deu apoios pontuais a alguns nomes. Na semana passada, Bolsonaro decidiu fazer um "horário eleitoral próprio" com lives de apoio a candidatos. 

Alguns ministros e integrantes do governo avaliam que a ideia de atuar nas eleições municipais foi um erro e que Bolsonaro deveria ter permanecido neutro, como era o plano inicial. Parte deles atribui a mudança de postura à influência do filho “03” de Jair Bolsonaro, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que abraçou o nome de vários candidatos.

Demétrio Magnoli - A eleição que não terminou

- O Globo

Partido Republicano corre o risco de ser reduzido a movimento de contestação do sistema democrático

 ‘Nós precisamos considerar o antigo vice-presidente como presidente eleito. Joe Biden é o presidente eleito.” A declaração do governador de Ohio, o republicano Mike DeWine, riscou o céu de Washington uma semana depois que a apuração dos votos da Pensilvânia concluiu a disputa pela Casa Branca. O óbvio caiu quase como uma bomba nas hostes republicanas, ainda congeladas pelo negacionismo eleitoral de Donald Trump. A eleição americana não terminou: ela prossegue sob a forma de um conflito existencial no interior do Partido Republicano.

Trump assentou sua estratégia pós-eleitoral em três pilares. O primeiro: a alegação de que o candidato democrata fraudou a vontade popular. O segundo: o Partido Republicano, submetido a sua liderança incontestável, rejeitará de modo monolítico qualquer diálogo com o governo do suposto usurpador. O terceiro: o partido funcionará, desde já, sob o signo de sua candidatura presidencial de 2024.

Trump começa a erguer o Comitê de Ação Política “Save America” (Salvar os EUA), destinado a operar como direção efetiva do Partido Republicano. Simultaneamente, prepara-se para criar uma nova rede de TV, concebida como veículo pessoal e alternativa à direita da Fox News. O projeto trumpiano é subordinar as bancadas republicanas na Câmara e no Senado a suas conveniências, transformando-as em máquinas de sabotagem permanente do governo Biden.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

É hora de trabalhar, presidente – Opinião | O Estado de S. Paulo

Com o fim do primeiro turno da eleição, acabou a última desculpa de Jair Bolsonaro para não trabalhar. Qual será a próxima?

Em agosto passado, o presidente Jair Bolsonaro anunciou, solenemente, que não participaria das eleições municipais como cabo eleitoral de ninguém, porque, segundo suas palavras, “tenho muito trabalho na Presidência e tal atividade (a campanha eleitoral) tomaria todo meu tempo num momento de pandemia e retomada da nossa economia”. Na mesma época, proibiu seus ministros de participarem da campanha, com argumento semelhante.

Como se sabe, contudo, Bolsonaro foi um dos mais ativos cabos eleitorais nesta campanha, bem como alguns de seus ministros. Nem a pandemia acabou nem a economia engrenou, mas o presidente achou espaço na sua agenda para entregar-se a suas especialidades – participar de eleições e ignorar promessas. O presidente alegou que pedia votos para seus candidatos somente “depois do expediente” – como se a Presidência fosse um cargo ocupado por um barnabé que bate cartão.

O problema é que Bolsonaro não trabalha. A prova disso é a absoluta incapacidade de seu governo de encaminhar as reformas e as medidas sem as quais o País não se recuperará tão cedo do desastre em curso. Há sempre uma desculpa para a procrastinação, e a mais recente era a realização das eleições municipais.

Poesia | Fernando Pessoa - Acordar

 

 

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 
 Acordar da Rua do Ouro, 
 Acordar do Rocio, às portas dos cafés, 
 Acordar 
 E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 
 Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 
 
 Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar, 
 Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.  
 À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se  
 Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,  
 E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo. 
 
 Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne, 
 Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha, 
 Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom, 
 São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada, 
 Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes, 
 Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste, 
 Seja 
 
 A mulher que chora baixinho 
 Entre o ruído da multidão em vivas... 
 O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito, 
 Cheio de individualidade para quem repara... 
 O arcanjo isolado, escultura numa catedral, 
 Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã, 
 Tudo isto tende para o mesmo centro, 
 Busca encontrar-se e fundir-se 
 Na minha alma. 
 
 Eu adoro todas as coisas 
 E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. 
 Tenho pela vida um interesse ávido 
 Que busca compreendê-la sentindo-a muito. 
 Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, 
 Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, 
 Para aumentar com isso a minha personalidade. 
 
 Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio 
 E a minha ambição era trazer o universo ao colo 
 Como uma criança a quem a ama beija. 
 Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, 
 Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo 
 Do que as que vi ou verei. 
 Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. 
 A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. 
 Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. 
 
 Dá-me lírios, lírios 
 E rosas também. 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também, 
 Crisântemos, dálias, 
 Violetas, e os girassóis 
 Acima de todas as flores... 
 
 Deita-me as mancheias, 
 Por cima da alma, 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também... 
 
 Meu coração chora 
 Na sombra dos parques, 
 Não tem quem o console 
 Verdadeiramente, 
 Exceto a própria sombra dos parques 
 Entrando-me na alma, 
 Através do pranto. 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E llrios também... 
 
 Minha dor é velha 
 Como um frasco de essência cheio de pó. 
 Minha dor é inútil 
 Como uma gaiola numa terra onde não há aves, 
 E minha dor é silenciosa e triste 
 Como a parte da praia onde o mar não chega. 
 Chego às janelas 
 Dos palác ios arruinados 
 E cismo de dentro para fora 
 Para me consolar do presente. 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também... 
 
 Mas por mais rosas e lírios que me dês, 
 Eu nunca acharei que a vida é bastante. 
 Faltar-me-á sempre qualquer coisa, 
 Sobrar-me-á sempre de que desejar, 
 Como um palco deserto. 
 
 Por isso, não te importes com o que eu penso, 
 E muito embora o que eu te peça 
 Te pareça que não quer dizer nada, 
 Minha pobre criança tísica, 
 Dá-me das tuas rosas e dos teus lírios, 
 Dá-me rosas, rosas, 
 E lírios também..