sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Fernando Henrique* - Derrota de Trump é o melhor fato do ano

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

É melhor guardar os impulsos ideológicos e negociar com todos

Creio que o ano em curso ficou marcado aqui e no mundo pela pandemia produzida pelo coronavírus. Ela vai agravar o ciclo econômico negativo que já estava em curso. A questão do emprego, como consequência, passou a ser preocupante e, se já era grave por causa das novas tecnologias, se tornou dramática. No Brasil, ainda por cima, temos um governo palavroso, que se diz liberal, mas de fato é rotineiro e ineficaz. Pior: ademais não dá valor à democracia.

De melhor, a meu ver, foi a derrota de Donald Trump nos EUA. Sem ilusões, mas comparativamente, a política interna naquele país deve ser menos agressiva que a conduzida pelo atual governante. Na externa, espero não haver guerra, mas sempre é difícil perder ou compartilhar a hegemonia.

Quanto a nós, é melhor entender que negociamos tanto com os EUA como com a China e a Europa, sem nos esquecermos do Mercosul e da América Latina. Portanto, melhor guardar os impulsos ideológicos e negociar com todos. E, sobretudo, olhar para nosso povo: a pobreza aumenta e a riqueza não é tanta... Como diz o provérbio, “Mateus, primeiro os teus”.

*Fernando Henrique Cardoso é ex-presidente da República

Alberto Aggio* - Bolsonaro, ano 2

No final do ano passado publiquei um artigo com o título Bolsonaro, Ano 1. Mobilizei, intencionalmente, a demarcação temporal recorrendo àquilo que Benito Mussolini estabeleceu para a Itália quando instituiu o fascismo. Contava-se a sequência dos anos da “Era Fascista”, com início em 1922, ano da tomada do poder com a “Marcha sobre Roma”. Como todo aspirante a “revolucionário”, Mussolini acalentava a ideia de alterar o tempo histórico.

Imagino que Bolsonaro tenha, por um instante, cultivado pensamento semelhante, especialmente quando, com menos de três meses de governo, traiu uma de suas posições de campanha e passou a se apresentar como candidato a reeleição em 2022. Mussolini realizou uma obra na Itália nos anos do fascismo. Uma obra infame que deixou marcas. Bolsonaro nos impinge um cotidiano de infelicidade, sem nos legar obra alguma. Sequer exerce sua responsabilidade primária: a de governar.

O Ano 2 – como dizem os jovens – “deu mal” para Bolsonaro. Ao final de 2020, seu destino é cada vez mais incerto, com popularidade declinante (especialmente nos grandes centros populacionais do país) e problemas políticos de grande magnitude. Com a derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, perdeu seu principal referente ideológico. O isolamento internacional do País é sem precedentes, depois de desavenças com a China e a União Europeia. Sob pressão, Bolsonaro estará forçado a uma readequação na política externa. Não haverá futuro caso não se supere a redução do Brasil a “País pária” na ordem mundial, admitido de bom grado pelo chanceler Ernesto Araujo.

Nas eleições municipais, os candidatos que se vincularam à imagem do presidente foram derrotados nas capitais e grandes cidades, com raríssimas exceções. O que indica movimento claro de redirecionamento do voto dado em 2018. É o resultado da postura errática de Bolsonaro nestas eleições, ora se afastando, ora se envolvendo na disputa. Mas o problema é anterior e advém do fracasso na montagem de um partido de apoio integral ao presidente, o Aliança pelo Brasil. Sem partido, Bolsonaro agiu por impulso, de forma temerária. O resultado não poderia ter sido diferente.

Merval Pereira - A traição decidirá

- O Globo

O ex-presidente Tancredo Neves afirmava que voto secreto “dá uma vontade danada de trair”. Nada mais certo quando vemos as traições sendo negociadas à luz do dia, em troca de emendas e cargos. Traições dignas do nome, e traições travestidas de ação política, como os partidos de esquerda que cogitam lançar candidaturas próprias quando sabem que, com isso, estarão selando a vitória do candidato do Palácio do Planalto.

Por isso, quem vai decidir a sucessão na Câmara dos Deputados é a traição, que ocorre sempre nas votações secretas, e não apenas nas eleições congressuais. Na Academia Brasileira de Letras (ABL), por exemplo, há uma taxa histórica de “traição”, o candidato vencedor tem que contar com cinco votos a mais, pelo menos, do que o mínimo necessário.

No caso da Câmara, é tradicional essa taxa de “traição”, mas desta vez ele está sendo negociada abertamente. O PT começou conversando com o candidato do Planalto, deputado Artur Lira, alegando a necessidade de ter um espaço institucional na Mesa Diretora. Lira nega, mas há quem confirme que nessas conversas, até mesmo mudanças na Lei da Ficha Limpa foram abordadas, para favorecer o ex-presidente Lula.

Como a posição ficou esquisita, o PT voltou a se reunir com o grupo do presidente da Câmara Rodrigo Maia, e reivindicou a primeira-vice presidência da Mesa, exigência justa por ser a maior bancada da Câmara. Para valorizar sua posição na negociação, voltou a insinuar que lançará uma candidatura própria. Também o PSOL pensa lançar seu candidato.

Luiz Carlos Azedo - Maia articula centro-esquerda

- Correio Braziliense

Do ponto de vista prático, o Centrão conseguiu se unificar em torno de Lira, e o bloco de centro-esquerda que Maia organiza ainda não tem um nome de consenso

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), articula com os partidos de esquerda um nome de centro que possa derrotar a candidatura governista de Arthur Lira (PP-AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. Ontem, em reunião com os partidos de esquerda — PT, PDT, PSB, PSol e PCdoB —, fechou acordo para uma composição ampla, evitando candidaturas avulsas, para formar um bloco majoritário na Câmara. Com isso, fracassaram as articulações de Lira com setores desses partidos. O PT, com 54 deputados, ou seja, a maior bancada, teve um papel decisivo. Com o PSB (31), o PDT (28), o PSol (10) e a Rede (1), o bloco soma 124 deputados.

Entretanto, Maia ainda precisa coesionar os partidos do seu próprio bloco em torno dessa aliança. Caso consiga um nome de consenso, que também seja aceito pela esquerda, pode se formar um bloco majoritário na Câmara, pois o grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). Em tese, os dois blocos juntos podem chegar a 282 deputados, ou seja, a maioria da Câmara, que tem 513 deputados. O problema é que essa contabilidade é formal, pois os acordos de bancada precisam ser confirmados por cada deputado e o índice de traição é grande, principalmente quando envolve a negociação de cargos e a liberação de verbas federais, como está acontecendo.

Dora Kramer - Recuo estratégico

- Revista Veja

Realista, a esquerda prefere negociar a marcar posição na Câmara

Coisa rara, a esquerda em geral e o PT em particular imbuíram-se de realismo na atual disputa pela presidência da Câmara. Outras raridades cercam esse que é o principal movimento na política nacional no momento. Ele dará o tom de estabilidade ou de instabilidade no Congresso daqui em diante e norteará o início das articulações dos grupos postulantes à sucessão de Jair Bolsonaro, muito embora os acertos de agora no Parlamento não valham para a presidencial de 2022.

É a primeira vez desde a redemocratização que a esquerda não apresenta candidatura ao comando da Câmara. O PSOL ainda insiste, mas está sendo convencido a desistir sob o argumento de que é hora de deixar a adolescência e entrar da idade adulta, abandonando veleidades de caráter quixotesco.

Isso porque também é a primeira vez que esse campo, sendo como diz um petista, “irritantemente minoritário”, é tão decisivo para a definição de vitória ou derrota dos grupos em disputa. Ambos, um mais outro menos identificado com Bolsonaro, residentes no espectro direito (do centro ao extremo) da cena política.

Dada essa equivalência no terreno da doutrina, prevalece na esquerda o entendimento de que não se pode perder a oportunidade de conquistar espaço no andamento dos trabalhos legislativos. Vale dizer, lugar na mesa diretora, influência na pauta de votações e participação relevante nas comissões permanentes e especiais da Casa.

Ricardo Noblat - O dia amargo em que Bolsonaro só colheu derrotas

- Blog do Noblat / Veja

Seus seguidores estão ficando impacientes

Para o gosto do presidente Jair Bolsonaro, a quinta-feira 17 de dezembro até que começara bem. Em cerimônia no Palácio do Planalto, ele deu posse ao novo ministro do Turismo, Gilson Machado, líder de uma banda de forró em Pernambuco, e sanfoneiro que costuma tocar o instrumento nas lives semanais do presidente no Facebook. Uma vez até cantou a Ave-Maria.

O que disse Machado no seu discurso soou como música aos ouvidos de Bolsonaro e o deixou feliz a poucas horas de ter que voar para inauguração de obras em Minas Gerais e na Bahia. Refratário, como seu chefe, a medidas de isolamento social, Machado defendeu que festas de fim de ano reúnam ao menos 300 pessoas. Assim as aglomerações seriam evitadas.

“A gente tem que viver a vida, não morrer por antecipação”, argumentou o ministro, e recebeu aplausos. Em seguida, derramou-se em elogios a Bolsonaro: “O senhor está recuperando a autoestima do povo” (mais aplausos). “Aonde o senhor vai, o povo o aclama” (nesse momento, Bolsonaro sorriu). A cerimônia foi curta. O dia seria estafante para o presidente, e de fato foi.

Ele ainda estava em Jacinto, município de Minas Gerais, para o lançamento da pedra fundamental da implantação e pavimentação da BR-367, quando começou a receber notícias que o indignaram. O Supremo Tribunal Federal decidira que a vacinação contra a Covid-19 seria obrigatória. E também que governadores e prefeitos poderão impor restrições a quem não se vacinar.

Bruno Boghossian - Inimigo da vacina e da economia

- Folha de S. Paulo

Fica claro que o presidente não liga nem para a recuperação das atividades nem para a saúde da população

Dias depois de chamar a Covid-19 de gripezinha, em março, Jair Bolsonaro usou um argumento econômico para justificar sua indiferença diante da pandemia. “Não é apenas a questão de vida. É a questão da economia também”, declarou.

Bolsonaro fez uma escolha e defendeu por meses o retorno forçado a uma normalidade impossível. Agora, quando a chegada da vacinação abre o primeiro caminho para a redução do distanciamento e para uma retomada segura, a sabotagem presidencial permanece na equação.

Ruy Castro - Focinheira, camisa de força e jaula

- Folha de S. Paulo

É a receita para Bolsonaro, oferecida por um psiquiatra com quem conversei

Em sua guerra contra o povo brasileiro, Jair Bolsonaro ganha cada vez mais posições. O Poder Executivo lhe pertence pelo voto, e seu cartel de apoiadores continua firme, composto de uma multidão de mulheres de malandro —Bolsonaro os trai diariamente, renegando suas promessas de campanha, e eles gostam.

Em dois anos de administração, não se conhece uma medida positiva de sua parte. Ao contrário, dedica-se a destruir tudo que o Brasil levou séculos para construir na educação, na cultura, no meio ambiente, na diplomacia, nos direitos humanos e na relação entre as pessoas. Sua meta é que se matem pelas ruas, a tiros entre si ou pela polícia, esta, a depender dele, com carta branca para disparar.

Reinaldo Azevedo - A democracia precisa punir a barbárie

- Folha de S. Paulo

Espero que Bolsonaro e Pazuello, mesmo fora do cargo, respondam por improbidade

Enquanto escrevo nesta quinta a coluna que você lê agora, o precioso tempo dos ministros do Supremo Tribunal Federal é consumido numa questão já pacificada na Constituição, na legislação ordinária e numa portaria do ministério da Saúde: a compulsoriedade da vacina. Por compulsória, os recalcitrantes sem causa, que não uma injustificada obstinação, têm de arcar com as consequências de sua resistência.

Não se aplica a vacina à força, escreveu o ministro Ricardo Lewandowski, relator de duas ações diretas de inconstitucionalidade, num voto impecável. Mas é legítimo que o Estado casse benefícios ou crie restrições de circulação a quem decidir se apartar da imunização desde que isso esteja previsto em lei.

Ao ler o voto do ministro na quarta à noite, uma música de protesto começou a soar aos meus ouvidos, vinda lá de 1969, ano seguinte à decretação do AI-5: "E na gente deu o hábito/ De caminhar pelas trevas/ De murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo correr".

É trecho de "Rosa dos Ventos", de Chico Buarque, que deu nome a um show de Maria Bethânia, com direito a LP, em 1971. Tudo muito antigo. Santo Deus! Não é possível que, 50 anos depois, estejamos aqui a caçar metáforas nas trevas, entre as pregas, nas pedras, vendo o tempo correr...

Vinicius Torres Freire – Morte e fome no governo do anticristão

- Folha de S. Paulo

 Estados e STF improvisam governo da vacina, Congresso está em pane, Bolsonaro avança

 “O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê o lobo aproximar-se, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as arrebata e dispersa, porque ele é mercenário e não se importa com as ovelhas”. Está no Evangelho de João, aquele que Jair Bolsonaro cita de modo blasfemo, como se fora um clichê mundano, sem entender o que quer dizer “a verdade vos libertará”, se é que leu o texto, que de qualquer modo não entendeu, dada a sua grosseria moral e intelectual.

No início da epidemia, esse homem não apenas abandonou os brasileiros a seu próprio azar, mas sabotou os esforços de quem se bateu para não entregar as pessoas ao lobo da praga. Outra vez agora, o que restou de decência e razão no país se organiza a fim de vacinar o povo, proteger as pessoas que trabalham nos hospitais e salvar da morte pelo menos os nossos avós, de início.

A maioria dos governadores, prefeitos e o Supremo Tribunal Federal tentam improvisar um governo nacional pelo menos no que diz respeito à emergência da saúde. A desgraça recrudesceu, as mortes outra vez passam das mil por dia. É possível que entre o Ano Novo e o que alguns cristãos chamam da festa de Reis, 6 de janeiro, pelo menos 200 mil brasileiros tenham morrido de Covid-19. Em São Paulo, as internações e mortes aumentaram na casa de 60% desde o início de novembro.

José de Souza Martins - Humanidade de rua

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A covid-19 agravou e muito nossa miséria humana, a dos pobres de tudo, as vítimas da pandemia de carências, filhas do neoliberalismo econômico excludente

O coração dos brasileiros que o têm, que são os acostumados a se preocupar com os outros, certamente terá um cuidado adicional com o não pequeno número dos moradores de rua. Os confinados no meio de ninguém, cidadãos de país nenhum, os órfãos de pátria. A covid-19 agravou e muito nossa miséria humana, a dos pobres de tudo. As vítimas da pandemia de carências, filhas do neoliberalismo econômico excludente.

A brutal realidade desumanizadora dos moradores de rua ficou dolorosamente evidente nos resultados de uma pesquisa sociológica de emergência, realizada na cidade de São Paulo no mês de novembro e parte de dezembro.

Foi ela proposta e coordenada pela professora Fraya Frehse, do Departamento de Sociologia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e acolhida no Instituto de Estudos Avançados.

Há anos ela se dedica ao estudo das ruas da cidade e dos costumes de sua população. Teve como auxiliar de coordenação a dra. Maria Antonieta da Costa Vieira, antropóloga pela Unicamp, reconhecida especialista no tema, que há 30 anos coordenou a primeira pesquisa ampla sobre a população de rua na cidade.

A realização da etnografia sobre “Morar nas Ruas de São Paulo Durante a Pandemia de Covid-19” reuniu 28 pessoas, a maioria jovens doutorandos das ciências sociais, da USP e da Universidade Federal do ABC.

A pandemia, em vários casos, alterou a condição dessa humanidade para pior. Melhorou apenas nas providências oficiais localizadas e insuficientes, como a de instalar equipamentos propriamente domésticos em certos lugares, e não em outros, como lavadoras, pias, sanitários.

Fernando Abrucio- Um 2021 a favor da vida

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos próximos anos

Ao refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida, numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.

A principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes efeitos.

O primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”

Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.

Martin Wolf* - Cinco forças do futuro pós-covid-19

- Valor Econômico

Estamos em uma era de instabilidade. A pandemia não a criou, mas a deixou em mais evidência. A derrota de Trump dá ao mundo tempo para recuperar o fôlego. Mas os desafios são enormes. Em 2025, muitos ainda estarão presentes e, com certeza, serão ainda maiores

A covid-19 acelerou o mundo rumo ao futuro. Aqui estão cinco forças que estavam em ação antes da covid-19, se intensificaram durante a pandemia e ainda estarão afetando o mundo em 2025, e por bem mais além.

Primeira: tecnologia. A marcha da tecnologia da computação e das comunicações continua modelando nossas vidas e a economia. Hoje, as comunicações em banda larga, somadas ao Zoom e a softwares similares de videoconferência possibilitaram que um número imenso de pessoas trabalhe em casa.

Em 2025, é provável que uma parte, possivelmente a maioria, dessa transferência para fora dos escritórios seja revertida. A reversão, porém, não será completa. As pessoas terão capacidade (e permissão) para trabalhar fora do escritório. Inevitavelmente, isso incluirá não apenas trabalhadores nos próprios países, mas também no exterior, normalmente, com salários mais baixos. O resultado provavelmente será um aumento desestabilizador na chamada “imigração virtual”.

Segunda: desigualdade. Muitos trabalhadores de escritório de altos salários tiveram condições de trabalhar em casa, enquanto a maioria dos demais trabalhadores, não. Nos países ocidentais, muitos dos que foram mais afetados também fazem parte de minorias étnicas. Enquanto isso, muitos dos que já eram bem-sucedidos e poderosos prosperaram assombrosamente.

O mais provável é que as iniquidades exacerbadas pela pandemia não tenham diminuído em 2025. As forças que as enraizaram são muito fortes. O máximo que podemos esperar é uma modesta melhora. Isso, por sua vez, indica que as políticas populistas do passado recente continuarão a influenciar a esfera política em 2025.

Terceira: endividamento. O endividamento agregado cresceu em quase todos os países nos últimos 40 anos. Sempre que alguma crise interrompia a capacidade do setor privado de continuar captando, os governos se encarregaram de preencher a lacuna. Isso ocorreu depois da crise financeira mundial [de 2008] e, de novo, durante a covid-19.

Ricardo Mendonça - Sobre promessas e calotes de Bolsonaro

- Valor Econômico

O Brasil estaria pior se ele não tivesse esquecido seu plano

Na virada de 2020 para 2021, daqui a duas semanas, Jair Bolsonaro completa dois anos na Presidência. A metade exata de seu mandato é uma ótima ocasião para um balanço de realizações e do andamento das promessas feitas em 2018.

À primeira vista, um balanço assim parece exercício simples de ser feito. Com meio mandato percorrido, seria razoável esperar que Bolsonaro estivesse com algo próximo a 50% das promessas executadas. Ou que as metas estivessem 50% implementadas - pouco mais ou pouco menos, considerando as dificuldades inerentes e as variações de conjuntura.

Só que não.

A primeira dificuldade é identificar o que Bolsonaro prometeu em 2018. A forma mais óbvia, recorrer ao programa formal de governo, é também a mais inútil. Toscamente organizado e pessimamente redigido, o documento “O Caminho da Prosperidade”, protocolado no TSE, é uma peça imprestável com ponto de partida para uma análise minimamente razoável.

Trata-se de uma apresentação de 81 páginas que amontoa colagens de fotos e gráficos despadronizados com slogans vazios (“faremos uma aliança da ordem com o progresso”), compromissos genéricos (“enfrentaremos os grupos de interesses escusos”), muito conspiracionismo (“enfrentaremos o viés totalitário do Foro de São Paulo”) e pitadas de autoajuda (“SOMOS MUITO MAIS FORTES que todos esses problemas”, assim mesmo, com maiúsculas). Áreas inteiras são ignoradas, como meio ambiente, e não há metas nem prazos fixados. Como medir o desempenho de um governo a partir de uma base assim? Não dá.

Claudia Safatle - Quando fevereiro chegar

- Valor Econômico

Reforma tributária já deixou a agenda do Ministério da Economia

Na agenda de reformas do Ministério da Economia para 2021, a tributária está fora. Tão logo se defina a eleição das mesas da Câmara e do Senado, em fevereiro, a primeira Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que o governo pretende se empenhar na aprovação é a Emergencial, que cria os gatilhos e travas para o cumprimento da lei do teto de gastos. Nesta, a área econômica ainda sonha com a possibilidade de inclusão para votação dos três D, sobretudo a desindexação, além da desvinculação e desobrigação. Estes, porém, não constavam da última versão do texto do relator da PEC, senador Marcio Bittar (MDB-AC).

O Orçamento do próximo ano já está com despesas subestimadas por causa da indexação do salário mínimo à variação do INPC. Com a aceleração da inflação, o valor do INPC ficou subavaliado, afetando, assim, os cálculos dos gastos com benefícios previdenciários e assistenciais vinculados ao salário mínimo.

Segundo dados apresentados pelo jornalista Ribamar Oliveira na sua coluna de ontem, publicada neste espaço, se o INPC ficar em 4,8% - ou seja, 0,7 ponto percentual acima do indice considerado no orçamento -, isso resultará em uma despesa adicional para os cofres da União de R$ 5,378 bilhões.

Antes da tributária, argumenta-se, tem a reforma administrativa para ser discutida e aprovada ainda no ano que vem. Embora a proposta do Executivo, que está no Congresso, seja tímida demais - porque o presidente da República não quis mexer com os atuais funcionários públicos -, a administrativa é o único projeto que busca reduzir o gasto com o pagamento de pessoal de forma estrutural.

Eliane Cantanhêde - Aos trancos e barrancos

- O Estado de S. Paulo

Bolsonaro é Bolsonaro, mas o STF e as instituições sabem defender o Brasil. Até dele.

A vacinação contra a covid-19 preserva vidas, é um direito e uma obrigação coletiva e “não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas político eleitoreiras e, principalmente, não permite ignorância”. Essa enxurrada de bom senso, que serve como uma verdadeira aula para todos e cada um, foi dada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, em mais um julgamento memorável do Supremo nesses nossos tempos tão sombrios, às vezes macabros.

Na votação a favor da vacina obrigatória, por bem ou por mal, Moraes mandou um claro recado ao presidente, ao ministro da Saúde, a governadores, prefeitos e seguidores desses lunáticos de internet que são contra vacinas, especialmente contra a “vacina da China”. Isso começa “de cima”, quando o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em guerrear contra isolamento social, máscaras e “maricas”, declara: “Não vou tomar a vacina. Ponto final”.

Quantos, por ideologia ou ignorância, não acataram o grito de guerra do presidente contra as vacinas? Quantos, por se acharem “de direita”, sendo simplesmente burros, não começaram a ver demônios e “interesses geopolíticos” na Coronavac, chamada de “vacina da China” ou “do Doria” por Bolsonaro? Assim como isolamento e máscaras eram as únicas saídas para escapar do vírus e reduzir a contaminação, as vacinas são o único instrumento científico capaz de salvar vidas, trazer de volta a normalidade, os negócios e os empregos. Bolsonaro atacou aqueles, tentou combater estes.

Ignácio de Loyola Brandão* - O dia em que os selos acabaram

- O Estado de S. Paulo

Nada mais há a se admirar com este governo demente. Há de tudo

Enorme surpresa, posso mesmo dizer estupefação, teve o arquiteto Michel em uma agência dos Correios, na Vila Madalena. Levou, como faz todos os anos, e coloquem anos nisso, o primeiro lote das centenas de cartões de Natal desenhados por ele e pela Ciça Barbieri, sua mulher e também arquiteta. Todos os anos, o grupo de amigos espera para ver o que a dupla criou, ambos são designers de alto humor. Michel chegou à agência e encontrou o usual. Pessoas esparramadas, quase aglomeradas na calçada, porque, segundo o protocolo, não podem entrar. E se amontoam para poder descobrir a chamada do número da senha.

Ainda bem que a tal pandemia está no final, segundo o nosso presidente. Afinal, são apenas 180 mil mortos e mais mil a cada dia. Falando em presidente, agora temos mais um filho, o 04. Logo chegaremos ao 007, que terá licença para matar. Finalmente, Michel foi atendido e a funcionária passou um tempo conferindo cartão a cartão. “Estou a conferir os destinos, explicou.” Coisa que jamais vimos. Conferir destinos? Indagada, ela revelou:

“Se for para o México, Colômbia e Turquia não posso aceitar.”

Michel levou um susto. Qualquer um de nós levaria, pensando nas loucuras do Ernesto Araújo, o chanceler que acredita que a terra é plana e a ciência uma charlatanice. 

“Por quê? Estamos em guerra com tais países?”

“Não sei se é guerra, ou o que é! Só sei que o correio está sem comunicação com vários destinos e estes três estão no seu pacote.”

Nada mais há a se admirar com este governo demente. Há de tudo. Pois o casal presidencial não exibe em uma vitrine o terno e o vestido da posse? O terno nada tem de especial. Não é londrino, de Saville Row, nem feito sob medida em Roma, ou com o Diógenes Estilista que, no Rio, atendeu a vida inteira o Roberto Marinho, além de ser quem sempre faz os fardões da Academia Brasileira. Um craque. 

Ele, o terninho presidencial, pode ter sido comprado no Mappin, na Exposição, na Mesbla, na Isnard, na Sears, no Eron (pioneiro dos crediários), na Cassio Muniz... Epa! Estou delirando, essas lojas desapareceram há décadas, era onde comprávamos a prestação. Mas este governo parece daquela época, estamos andando para trás no tempo. Quantos anos regredimos neste período bolsonarista? Quanto ao vestido da primeira dama, deve ter sido comprado com aquele cheque de 89 mil reais, que ninguém explicou.

Há mais a se admirar. Dias depois, Michel levou ao correio a segunda parte dos cartões e pediu 80 selos. A funcionaria avisou.

“Oitenta? Meu senhor, lamento, não tem nenhum.”

Bernardo Mello Franco - Estupidez contagiosa

- O Globo

Enquanto Jair Bolsonaro esperneia, o Supremo tenta proteger os brasileiros do coronavírus e do desgoverno. Em outubro, o presidente disse que a Justiça não poderia decidir “se você vai ou não tomar uma vacina”. Ontem a Corte ignorou a bravata e autorizou estados e municípios a adotarem a imunização obrigatória.

Ao contrário do que sugere a propaganda bolsonarista, ninguém será arrastado pelos cabelos até o posto de vacinação. Mas quem se negar a entrar na fila poderá ser impedido de frequentar escolas, comer em restaurantes ou usar o transporte público.

“A saúde coletiva não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas”, resumiu o ministro Ricardo Lewandowski. “A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser soberanamente egoísta”, reforçou Cármen Lúcia.

O ministro Alexandre de Moraes lembrou as mais de 180 mil mortes e disse que o momento não permite “demagogia”, “hipocrisia”, “obscurantismo” e “ignorância”. Faltou combinar com o capitão e seus aspones.

Em mais uma aglomeração no Planalto, o novo ministro do Turismo discursou contra as medidas de distanciamento social. Ele também defendeu a realização de festas de réveillon com até 300 pessoas “A gente tem que viver a vida, não dá para morrer por antecipação”, disse.

Flávia Oliveira - (Des)promessa de vida

- O Globo

A chamada terceira idade encurtou na pandemia

Ubirany Félix do Nascimento, um dos fundadores do Cacique de Ramos e do Grupo Fundo de Quintal, duas instituições cariocas, tinha 80 anos quando teve a vida ceifada por complicações decorrentes da Covid-19. No Brasil que viu a longevidade da população aumentar ininterruptamente desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o inventor do repique de mão — instrumento que saiu do subúrbio carioca para ganhar o mundo em rodas de pagode, estúdios e palcos — teria esbanjado saberes, talento e afeto por mais uma década. Antes da pandemia, era de 9,8 anos o horizonte de vida dos que chegavam aos 80. Mas a tragédia sanitária que levou o artista e, até aqui, quase 185 mil brasileiros está encurtando a existência dos brasileiros, sobretudo dos idosos.

Com base nas estatísticas do Registro Civil, a demógrafa Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), calculou o impacto da pandemia — ainda mais mortal por mal gerida, a começar pelo ocupante do Palácio do Planalto — na expectativa de vida da população. Antes da crise sanitária, um brasileiro nascido em 2019 viveria em média 76,5 anos, estimara. Os óbitos aos milhares pela Covid-19 — até fim de novembro, 177,3 mil formalizados em cartórios — reduzirão a longevidade em 1,9 ano, projeta agora. Como três quartos (76,7%) dos mortos pela doença tinham 60 anos ou mais de idade, nesse grupo a existência será diminuída em 1,7 ano. Em vez de mais 23,7 anos, 22.

“A pandemia está causando mortalidade precoce. Dá para dizer que a chamada terceira idade encurtou, porque a letalidade é muito maior nas faixas de 70-79 e 60-69 anos, respectivamente. Está havendo interrupção de um processo de redução da mortalidade e de aumento da expectativa de vida que ocorria, sistematicamente, desde os anos 1950”, relata Ana Amélia, uma das principais especialistas do Brasil em envelhecimento populacional.

Ruth de Aquino - A Anvisa e o porquê de nossa ansiedade

- O Globo

Quando penso que seremos vacinados contra a Covid-19 quando a Anvisa der seu aval, tento entender o que é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Seu presidente é o contra-almirante da Marinha Antônio Barra Torres. Ele participou sem máscara de manifestações em março, em Brasília, tirando selfies com o presidente Bolsonaro, que tocava, rindo, as pessoas. Torres cancelou recentemente “por motivos técnicos” o estudo da Coronavac (“a vacina chinesa do Doria"), mas depois retomou.

Torres chegou a ser cotado para substituir Mandetta como ministro. Médico formado pela Souza Marques, ele assumiu a presidência da Anvisa em novembro. Sempre foi contra “a disseminação do pânico” e a favor de “uma tranquilidade atenta” na pandemia. Era contra o isolamento social. A filosofia de Torres e Bolsonaro, vitoriosa num Ministério da Saúde com 25 militares, nos levou a uma tragédia descomunal. E, agora, a dúvidas: a Anvisa tem autonomia para aprovar as vacinas? Com urgência? O aval da Anvisa é mesmo essencial? Qual é a data de início da imunização? 

Já perdemos o bonde da Pfizer até para países como o Chile e o Equador. A vacina da Pfizer foi registrada pelo FDA (a Anvisa americana). Poderia ser aprovada aqui no regime de “fast-track” (em 72 horas). Mas o Brasil não entrou na “corrida maluca” das vacinas. Por opção política, por desmazelo. Torres deve concordar com seu chefe direto, o general Pazuello, quando ele pergunta à nação em luto por mil mortes ao dia: “Pra que essa ansiedade, essa angústia?” 

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

STF acerta ao impor vacina obrigatória – Opinião | O Globo

Julgamento no tribunal contrasta com irracionalidade anticientífica que emana do Palácio do Planalto

Acertou o Supremo Tribunal Federal (STF) em garantir a estados e municípios o direito a impor a vacinação obrigatória contra a Covid-19. É o que determina a lei da pandemia, aprovada pelo Congresso em fevereiro. É o que combina com o espírito da leis de imunização em vigor desde 1975. E, mais que isso, é o que preconizam a ciência, a razão e o bom senso. A vacina obrigatória é uma conquista civilizatória de que a humanidade já não poderia abrir mão numa situação de normalidade. Que dizer de uma pandemia que já matou de modo inclemente quase 185 mil brasileiros?

A decisão do Supremo contrasta com a irracionalidade que emana do Palácio do Planalto em relação não apenas às vacinas, mas a todo conhecimento científico. Mais uma vez, em desafio aos protocolos sanitários, o presidente Jair Bolsonaro imprecou esta semana contra a vacina em São Paulo diante de uma aglomeração de centenas de pessoas, a maioria sem máscara.

As campanhas antivacinação e a resistência do bolsonarismo às vacinas — em particular à CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a chinesa Sinovac — têm contribuído para instilar na população brasileira uma resistência antes impensável a uma prática essencial para a saúde pública. Em poucos meses, a parcela de brasileiros afirmando que tomará a vacina contra a Covid-19 caiu de 89% para 73%, de acordo com o Datafolha.

Poesia | Antonio Machado - O crime foi em Granada

 

(A Federico García Lorca)

 I. O crime

Viram -no, caminhando entre fuzis

por uma longa estrada,

sair ao campo frio,

ainda com estrelas, madrugada.

Mataram a Federico

quando a luz já se elevava.

O pelotão de verdugos

não ousou olhar sua cara.

Todos fecharam os olhos;

rezaram: nem Deus te salva!

Morto caiu Federico

– sangue na fronte e chumbo nas entranhas –

...Foi lá em Granada o crime,

sabei – pobre Granada – , em sua Granada.

II. O poeta e a morte

Viram-no caminhar a sós com Ela,

sem temer sua gadanha.

– Já o sol de torre em torre; e já os martelos

na bigorna – metal, metal das fráguas.

Falava Federico,

galanteando a morte. Ela o escutava.

“Porque ontem no meu verso, companheira,

soava o golpe de tuas secas palmas,

e deste o gelo ao meu cantar, e o gume

de tua foice de prata à minha desgraça,

te cantarei a carne que não tens,

os olhos que te faltam,

teus cabelos que o vento sacudia,

os rubros lábios em que te beijavam...

Hoje como ontem, morte, minha cigana,

que bom estar só contigo ,

por estes campos de Granada, minha Granada!”

III.

Viram-no caminhar...

Talhai, amigos,

de pedra e sonho, lá no Alhambra

um túmulo ao poeta,

sobre uma fonte na qual chore a água,

e eternamente diga:

foi em Granada o crime, em sua Granada!