terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Eliane Cantanhêde - Vacina e democracia

- O Estado de S. Paulo

É melhor Bolsonaro arranjar vacina do que depois tentar ‘arranjar’ voto, como Trump

O último ato (espera-se) de Donald Trump na presidência da maior potência do planeta mostra um homem desesperado, desarticulado e fora da realidade, falando frases desconexas e ameaçadoras que configuram um atentado criminoso e imoral às instituições. Trata-se, claro, da pressão de Trump para que o secretário de Estado da Geórgia “arranjasse” uns votos para reverter a derrota dele para Joe Biden.

É inacreditável, tão inacreditável quanto um tipo dessa natureza ter sido eleito nos Estados Unidos, ter presidido o país por quatro anos e conseguido 74 milhões de votos ao tentar a reeleição em 2020. Apesar da derrota e de Trump ter sido o primeiro presidente não reeleito desde 1992, é uma quantidade de votos incrível para um presidente tão absurdo. Ou melhor, uma pessoa tão absurda.

É um alíviomanifesto de dez ex-secretários de Defesa, em governos democratas e republicanos, defendendo o resultado eleitoral e desautorizando membros das Forças Armadas a reforçar a cruzada de Trump contra a vitória de Joe Biden: “Oficiais civis e militares que realizarem tais medidas (interferência eleitoral) podem ser punidos, incluindo de forma criminal, pelas graves consequências de suas ações em nossa república”, afirma o texto, após Trump encher o Pentágono de aliados no apagar das luzes.

A reação a esses atos de Trump, barulhenta, serve de alerta inclusive no Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro bombardeia as pesquisas que não sejam a seu favor, acusa as eleições (até a dele) de fraudulentas e faz campanha a favor da cédula de papel e contra a urna eletrônica, assim como faz a favor da cloroquina e contra as vacinas. Contra o futuro.

Bolsonaristas ameaçavam melar a eleição de 2018 se ele não vencesse, ele próprio, já vitorioso, falou em fraude e generais reforçaram a descrença em pesquisas, eleições, urnas eletrônicas, mas ex-ministros da Defesa do Brasil também já lançaram manifesto: “Qualquer apelo e estímulo às instituições armadas para a quebra da legalidade democrática – oriundos de grupos desorientados – (...) constituem afronta inaceitável ao papel constitucional de Marinha, Exército e Aeronáutica, sob a coordenação da Defesa.”

Também já se uniram ex-ministros de Relações Exteriores, Meio Ambiente, Educação e Cultura, rechaçando o desmanche de suas áreas. Falta a manifestação em massa de ex-ministros e autoridades da saúde por seriedade, planejamento e negociação de vacinas de diferentes procedências, seringas, agulhas e frascos. E pelo cuidado de testes jogados por aí.

Trump e Bolsonaro são negacionistas, desdenharam da “gripezinha”, combateram o isolamento social, fizeram propaganda da cloroquina e pegaram a covid-19. Analistas da cena americana atribuem a derrota de Trump muito aos erros na pandemia. Bolsonaro continua jogando, nadando, sorrindo, provocando, mas as vacinas, ou a falta delas, podem custar caro.

Até agora, há 10.800 milhões de doses da Coronavac, que nem sequer pediu registro na Anvisa. Há também acertos do Ministério da Saúde com a vacina Oxford/Astrazeneca, que está no mesmo pé. E, de repente, há uma corrida por míseros dois milhões de doses dessa vacina, mas produzidas na Índia. A impressão é que, para o Planalto, basta uma dose, uma só, para ser aplicada, fotografada e filmada antes da “vacina do Doria”.

No centro do furacão está um general da ativa, pronto para virar bode expiatório, mas a lambança na pandemia, particularmente na vacina, pode custar caro em 2022, como custou a Trump em 2020. E não adianta jogar a culpa em “fraude” e em urna eletrônica, nem tentar “arranjar” na marra uns votos a mais. Os militares podem até ser coniventes com Bolsonaro e Eduardo Pazuello, mas a democracia não funciona só nos EUA. Aqui também.

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