sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

José de Souza Martins* - O desafio social da vacina

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

No Brasil, o caso será muito mais complicado do que em outros lugares: o país está sem liderança política

Teremos que sobreviver até que a aplicação das vacinas atinja o patamar social de proteção eficaz da sociedade inteira. A direção da Anvisa e os cientistas que expuseram o resultado de suas análises dos protocolos apresentados pelo Butantan e pela Fiocruz, para obter a autorização de uso emergencial das vacinas, alertaram enfaticamente que o início da vacinação impõe uma mudança no comportamento da sociedade para assegurar a eficácia da imunização.

A autorização de uso das duas vacinas - a do Butantan e a da Fiocruz - foi uma grande vitória da ciência brasileira, uma demonstração de competência e de responsabilidade social dos nossos cientistas. Foi, também, uma grande vitória científica e moral contra um senso comum pobre e impregnado de crendices e voluntarismos, à margem dos grandes valores da civilização, da ciência e da liberdade.

O confinamento se prolongará pelo mesmo tanto que já dura. Os que o têm violado terão que se conformar com a reversão de conduta, com a mudança de hábitos. A covid-19 encerra o período da história social dominado pelos valores da sociedade de consumo, da minimização da sobriedade da prudência. Todos terão que mudar para sobreviver e garantir a sobrevivência dos demais.

É mudar ou morrer e matar. A pandemia não ataca apenas o corpo das pessoas. Ataca também e, talvez sobretudo, a sociabilidade que as faz seres sociais.

Mudanças sociais têm sido comuns em situações de crises econômicas, políticas, de guerras e revoluções. Os costumes são corroídos pelas adversidades, pelas carências quase súbitas, pela cessação da legitimidade de valores sociais, pela privação de sentido para as condutas e orientações do costume.

Os processos interativos perdem referências, que precisam ser reinventadas. Uma situação de anomia, de ausência de normas que perderam a eficácia, cobra dos seres humanos a inventividade de criar uma nova organização social, ainda que seja longamente provisória. A sociedade conhecida é colocada entre parênteses. Fragiliza-se em face da incerteza e do medo.

No geral, quando as pessoas acordam do pesadelo, mal se reconhecem. Já estamos vivendo isso, sofridamente. Os amigos e os parentes que vão morrendo, que se ausentam para sempre, que não voltam mais e deixam suspensa no ar a conversação interrompida, o vácuo de um silêncio que mutila nossos grupos de referência, a família, as amizades da escola, de vizinhança, do estar juntos que alimenta nosso modo social de ser. Os elos sociais se rompem.

No Brasil, o caso será muito mais complicado do que em outros lugares. O país está sem liderança política. O presidente da República, seus ministros, seus coadjuvantes, seus assessores, desde as eleições de 2018, são agentes do negacionismo, ativistas da negação da ordem estabelecida, dos valores reconhecidos, das orientações de conduta que dão segurança ao homem comum, que reatam continuamente os laços sociais.

Governam em nome do avesso do que supunham ser a sociedade e o Estado que queriam demolir, que é seu programa de governo. A reunião governamental de 22 de abril, dos palavrões, dos truques para deixar a boiada passar e enganar, expôs a lógica da governação desvirtuada. Essa gente achou que ser eleito é para usurpar o grande sentido democrático do voto para exercitar a vontade pessoal, por mais tosca que seja e tem sido.

Quando surgiram os primeiros sinais da pandemia e de que estava chegando ao Brasil, quando foram feitas as primeiras recomendações médicas de cuidados necessários para evitar a contaminação e a difusão da doença, Bolsonaro deles debochou e debochou da morte, minimizou-a, desrespeitou as regras de segurança recomendadas pelos cientistas, provocou aglomerações.

Comprou e difundiu a cloroquina, medicamento que a ciência não reconhece como eficaz no caso. Por teimosia e insegurança, pode ter contribuído para que a doença se disseminasse e vitimasse uma boa parte dos mais de 210 mil mortos. Porque se expôs e porque deu e dá o mau exemplo do desrespeito às normas de segurança, à máscara, ao álcool gel, ao sabonete. Mostrou que não é capaz de mudar sua conduta para ajustá-la à necessidade de segurança de todos.

Ele pode ter praticado a renúncia tácita ao mandato ao demonstrar cotidiana incapacidade de governar corretamente numa situação de guerra que é contra a pandemia e não deveria ser contra o povo brasileiro.

Ele não tem, portanto, condições de protagonizar a pedagogia política necessária a induzir as mudanças que transformem, na emergência, o Brasil do deboche, do pouco caso, da indiferença, no Brasil compenetrado e responsável das mudanças terapêuticas de comportamento necessárias à multiplicação social da eficácia das vacinas.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).


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