Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Teremos
que sobreviver até que a aplicação das vacinas atinja o patamar social de
proteção eficaz da sociedade inteira. A direção da Anvisa e os cientistas que
expuseram o resultado de suas análises dos protocolos apresentados pelo
Butantan e pela Fiocruz, para obter a autorização de uso emergencial das
vacinas, alertaram enfaticamente que o início da vacinação impõe uma mudança no
comportamento da sociedade para assegurar a eficácia da imunização.
A
autorização de uso das duas vacinas - a do Butantan e a da Fiocruz - foi uma
grande vitória da ciência brasileira, uma demonstração de competência e de
responsabilidade social dos nossos cientistas. Foi, também, uma grande vitória
científica e moral contra um senso comum pobre e impregnado de crendices e
voluntarismos, à margem dos grandes valores da civilização, da ciência e da
liberdade.
O
confinamento se prolongará pelo mesmo tanto que já dura. Os que o têm violado
terão que se conformar com a reversão de conduta, com a mudança de hábitos. A
covid-19 encerra o período da história social dominado pelos valores da
sociedade de consumo, da minimização da sobriedade da prudência. Todos terão
que mudar para sobreviver e garantir a sobrevivência dos demais.
É mudar ou morrer e matar. A pandemia não ataca apenas o corpo das pessoas. Ataca também e, talvez sobretudo, a sociabilidade que as faz seres sociais.
Mudanças sociais têm sido comuns em situações de crises econômicas, políticas, de guerras e revoluções. Os costumes são corroídos pelas adversidades, pelas carências quase súbitas, pela cessação da legitimidade de valores sociais, pela privação de sentido para as condutas e orientações do costume.
Os
processos interativos perdem referências, que precisam ser reinventadas. Uma
situação de anomia, de ausência de normas que perderam a eficácia, cobra dos
seres humanos a inventividade de criar uma nova organização social, ainda que
seja longamente provisória. A sociedade conhecida é colocada entre parênteses.
Fragiliza-se em face da incerteza e do medo.
No
geral, quando as pessoas acordam do pesadelo, mal se reconhecem. Já estamos
vivendo isso, sofridamente. Os amigos e os parentes que vão morrendo, que se
ausentam para sempre, que não voltam mais e deixam suspensa no ar a conversação
interrompida, o vácuo de um silêncio que mutila nossos grupos de referência, a
família, as amizades da escola, de vizinhança, do estar juntos que alimenta
nosso modo social de ser. Os elos sociais se rompem.
No
Brasil, o caso será muito mais complicado do que em outros lugares. O país está
sem liderança política. O presidente da República, seus ministros, seus
coadjuvantes, seus assessores, desde as eleições de 2018, são agentes do
negacionismo, ativistas da negação da ordem estabelecida, dos valores
reconhecidos, das orientações de conduta que dão segurança ao homem comum, que
reatam continuamente os laços sociais.
Governam
em nome do avesso do que supunham ser a sociedade e o Estado que queriam
demolir, que é seu programa de governo. A reunião governamental de 22 de abril,
dos palavrões, dos truques para deixar a boiada passar e enganar, expôs a
lógica da governação desvirtuada. Essa gente achou que ser eleito é para
usurpar o grande sentido democrático do voto para exercitar a vontade pessoal,
por mais tosca que seja e tem sido.
Quando
surgiram os primeiros sinais da pandemia e de que estava chegando ao Brasil,
quando foram feitas as primeiras recomendações médicas de cuidados necessários
para evitar a contaminação e a difusão da doença, Bolsonaro deles debochou e
debochou da morte, minimizou-a, desrespeitou as regras de segurança
recomendadas pelos cientistas, provocou aglomerações.
Comprou
e difundiu a cloroquina, medicamento que a ciência não reconhece como eficaz no
caso. Por teimosia e insegurança, pode ter contribuído para que a doença se disseminasse
e vitimasse uma boa parte dos mais de 210 mil mortos. Porque se expôs e porque
deu e dá o mau exemplo do desrespeito às normas de segurança, à máscara, ao
álcool gel, ao sabonete. Mostrou que não é capaz de mudar sua conduta para
ajustá-la à necessidade de segurança de todos.
Ele
pode ter praticado a renúncia tácita ao mandato ao demonstrar cotidiana
incapacidade de governar corretamente numa situação de guerra que é contra a
pandemia e não deveria ser contra o povo brasileiro.
Ele
não tem, portanto, condições de protagonizar a pedagogia política necessária a
induzir as mudanças que transformem, na emergência, o Brasil do deboche, do
pouco caso, da indiferença, no Brasil compenetrado e responsável das mudanças
terapêuticas de comportamento necessárias à multiplicação social da eficácia
das vacinas.
*José de
Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq.
Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque
de Fábrica” (Ateliê).
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