sábado, 20 de fevereiro de 2021

Naercio Menezes Filho* - O fundo do poço?

- Valor Econômico

Programas temporários de redução de pobreza valem a pena para as finanças públicas

Como o auxílio emergencial acabou e a pandemia ainda está a pleno vapor, o governo e o Congresso estão planejando um novo programa de transferências de renda. Como deveria ser esse novo programa? Quem deveria ser o novo público-alvo? Será que ele conseguirá evitar que cheguemos ao fundo do poço?

A situação econômica, a sanitária e a social parecem piorar a cada dia. O número de óbitos permanece num patamar acima de 1000 mortes por dia e a situação começa a sair do controle em algumas cidades. Nesta semana, Bahia e Ceará decretaram toques de recolher para tentar conter a expansão da doença. O processo de vacinação, bastante lento, terá que ser suspenso nos próximos dias por falta de vacinas, já que o governo não se preocupou em contratá-las em quantidade suficiente no ano passado. E o próprio processo de vacinação está sendo muito confuso, com grupos de risco dando lugar a jovens ocupados em qualquer área remotamente ligada à saúde.

As escolas tentam reabrir, mas novos casos de vírus as obrigam a fechar novamente. As crianças e jovens estão aprendendo muito pouco na maioria das cidades, desenvolvendo problemas de saúde mental e, em muitos casos, sofrendo com a violência doméstica. O seu futuro será permanentemente prejudicado pela falta de aprendizado e problemas psicológicos. É necessário que as redes persistiam com os planos de retorno às aulas, mas sem contar com o apoio do governo federal para organizar as medidas de prevenção nas escolas, há muito pouco o que as redes municipais possam fazer.

Muitos jovens pobres que acabaram de sair do ensino médio (sem terem aprendido o conteúdo do terceiro ano) só conseguem emprego em empresas de entrega por aplicativo, supermercados ou construção civil, o que limita sua experiência profissional. Isso vai fazer com que tenham salários mais baixos ao longo da vida e não se realizem profissionalmente, empurrando muitos para uma carreira na criminalidade. E essa carreira deverá ter sua letalidade aumentada pelos decretos de liberação de armas que estão sendo editados.

A pobreza, que havia diminuído bastante com o auxílio emergencial, está aumentando novamente. Com a normalização da vida nas cidades que ocorria no final do ano passado, a pobreza estava aumentando menos do que o esperado, convergindo para uma taxa um pouco acima da observada antes da crise. Entretanto, a segunda onda e os toques de recolher irão fazer com que os negócios fechem e as pessoas deixem de circular novamente, o que fará com que a pobreza acelere rapidamente. Isso, por sua vez, fará com que as pessoas saiam às ruas para obter renda, desafiando os toques de recolher, o que poderá aumentar o contágio nas grandes cidades, especialmente com as novas variantes do vírus que estão se disseminando pelo país.

As desigualdades na educação, na saúde e no mercado de trabalho aumentarão de forma permanente na geração que está crescendo nessa crise, pois todos esses fatores afetam mais fortemente as camadas mais pobres da população. Nesse contexto, não há dúvidas de que é necessário desenhar e implementar rapidamente um novo programa de auxílio emergencial. E podemos aproveitar a experiência com o auxílio anterior, que teve muitos aspectos positivos e alguns negativos, para melhorar o desenho do novo programa.

Pelo lado positivo, tivemos a velocidade com que o programa foi desenhado e implementado e também os seus efeitos sobre a pobreza e desigualdade, que caíram a níveis nunca vistos no Brasil. Já o principal erro foi a falta de focalização, pois praticamente metade das famílias brasileiras receberam as transferências, bem mais do que o necessário para atenuar os efeitos da crise no emprego e para diminuir a pobreza e a desigualdade.

O auxílio emergencial almejava proteger as pessoas que perderam emprego por causa da pandemia, mas acabou beneficiando muito mais gente. Muitas pessoas que não eram pobres nem perderam seus empregos receberam as transferências, pois os limites de renda para inclusão no programa eram muito altos. Além disso, os que já eram pobres antes da pandemia também se beneficiaram, mesmo quem não tinha emprego antes da crise. Mas, se foi errado transferir recursos para quem não era e não ficou pobre, o programa acertou ao conceder o benefício para todos os que já eram pobres antes da crise, por vários motivos.

Em primeiro lugar, porque as mulheres que estavam gestando seus filhos nesse período puderam ter uma gravidez menos sofrida, o que melhorará o futuro dos bebês em termos educacionais e de mercado de trabalho. E o mesmo ocorre com as que tinham filhos pequenos, pois puderam lhes dar alimentação adequada e interagir com eles de forma mais sadia. Mais ainda, os recursos fizeram com que os pais pudessem ficar em casa durante a pandemia, diminuindo suas chances de contaminação. E permitiram que eles ajudassem seus filhos nas tarefas escolares à distância, principalmente os que estavam em processo de alfabetização. As evidências mostram que tudo isso tem um retorno elevado para o governo e para a sociedade no longo prazo, bem maior do que os custos das transferências para os menos privilegiados.

Além disso, muitos usaram o dinheiro para comprar ativos que geram rendimento no presente e no futuro, como uma bicicleta para fazer entregas, por exemplo. Vários estudos mostram que transferências de recursos concentradas no tempo podem facilitar a saída da pobreza de forma permanente. Finalmente, o grande volume transferido teve impacto significativo no consumo, atenuando os efeitos de uma recessão que teria sido bem maior e, portanto, aumentando o emprego e a arrecadação de impostos.

Para o novo auxílio, o governo deveria focar na expansão do programa Bolsa Família, tanto em termos de valores como em número de beneficiados. O valor transferido para cada família deveria dobrar e as famílias com crianças deveriam receber um valor ainda maior. O aplicativo desenvolvido para a inscrição no auxílio emergencial deveria ser utilizado para alcançar todos os que perderam emprego por causa da pandemia e se tornaram pobres.

Em suma, programas temporários de redução de pobreza têm efeitos importantes no longo prazo e valem a pena para as finanças públicas. E o novo programa de transferências terá que ser aprovado com urgência, caso contrário atingiremos o fundo do poço nas próximas semanas.

*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP e membro da Academia Brasileira de Ciências

 

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