domingo, 28 de fevereiro de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Privatizações de Bolsonaro não têm credibilidade – Opinião / O Globo

Para compensar as repercussões negativas da intervenção na Petrobras, o presidente Jair Bolsonaro lançou uma operação para tentar contrabalançar a má impressão que deixou. Na terça-feira, liderou uma comitiva para levar a pé ao Congresso proposta de Medida Provisória para privatizar o controle da Eletrobras. Fez elogio a Paulo Guedes e, na quinta-feira, enviou ao Legislativo projeto de conversão dos Correios (ECT) numa empresa de economia mista, um passo para permitir a entrada de sócios privados (não se sabe se majoritários).

Parecia notícia requentada. Não que deixem de ser importantes quaisquer ações para reduzir a presença do Estado na economia. A questão é a total desconfiança da ressurreição da agenda de desestatização, levando em conta os últimos movimentos de Bolsonaro. A pressa, na tentativa de transmitir um recado ao mercado revolto com a intervenção na Petrobras, fica evidente no descuido com o projeto sobre os Correios. Nem o modelo de abertura do capital foi definido, e falta ainda ouvir o Tribunal de Contas da União.

A primeira razão para o descrédito é o intervencionismo de Bolsonaro, com seus ecos no nacionalismo dos militares. Atribuir papel “social” às estatais equivale a subordiná-las não ao interesse público, mas ao interesse de políticos ou grupos específicos, sempre à espreita para tirar proveito.

Ao indicar o general Joaquim Silva e Luna para presidir a Petrobras, Bolsonaro elogiou sua gestão à frente de Itaipu por obras viárias, que nada têm a ver com o papel de uma geradora de eletricidade, mas muito com a geração de votos. Exatamente como a tentativa artificial de manipular o preço dos combustíveis. O custo disso tudo é a ineficiência das empresas, queda de produtividade da economia e transformação do país num ambiente tóxico para qualquer investidor, onde a sobrevivência passa a depender da corrupção. Não é à toa que os mercados derretem.

A segunda razão para o descrédito está no Congresso. De acordo com a economista Elena Landau, que presidiu o Conselho da Eletrobras até 2017, para vender o controle da empresa, bastaria uma lei específica que voltasse a incluí-la nas regras de privatização já existentes. Também seria necessário um estudo mais detido do impacto da venda no mercado de eletricidade. É um cenário improvável com o Centrão forte no Legislativo. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, tem apreço especial por Furnas, cujo comando conta com a bênção dos parlamentares mineiros. Como a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) e os políticos nordestinos. Os senadores Eduardo Braga, líder do MDB, e Davi Alcolumbre também desgostam da privatização. Não à toa também, a MP de Bolsonaro está repleta de compensações regionais e prevê conferir ao Estado uma golden share, ação com poder de veto sobre “decisões estratégicas”.

Não é difícil entender o sentido disso. Bolsonaro já deixou claro que colocaria o dedo na Eletrobras para reduzir tarifas elétricas, como fez na Petrobras (outra repetição da Era Dilma). Enquanto ele estiver no Planalto, não deverá ser forte o interesse privado pela empresa. Será difícil convencer investidores a comprar ações de uma empresa que, de uma hora para outra, pode estar sujeita a intervenção. No mercado, o jargão para tais papéis é conhecido: mico. Voltar a falar de privatizações só serve para Bolsonaro simular um aceno ao liberalismo, nada mais. 

Passaporte de imunidade poderia salvar turismo após tombo histórico – Opinião / O Globo

Desde o fim de 2019, quando o então desconhecido Sars-CoV-2 começou a empilhar vítimas na China e depois se espalhou por todo o planeta, o turismo entrou em colapso. Nada mais compreensível. A imposição de medidas de restrição para conter a disseminação do vírus pôs em quarentena as multidões de turistas que, diariamente, faziam movimentar a indústria. Em meio a uma das mais letais pandemias da História, hotéis ficaram vazios, atrações de todo tipo fecharam as portas, aviões foram deixados em solo, e cruzeiros marítimos, transformados em focos da Covid-19, rumaram do paraíso ao inferno.

Nesse cenário de terra arrasada, é positiva a ideia, que ganha força em vários países, de um passaporte de imunidade para retomar as atividades turísticas com um mínimo de segurança. O Arquipélago de Seychelles, no Oceano Índico, foi um dos primeiros a implementar a medida. Na Indonésia, o governo estuda permitir a entrada em Bali de viajantes que tenham sido vacinados contra a Covid-19. Reino Unido, Suécia, Dinamarca e Israel seguem estratégia parecida. Na Nova Zelândia, a companhia Air New Zealand deve exigir, a partir de abril, documento digital de vacinação nos voos entre Auckland e Sydney. A aérea australiana Qantas planeja adotar medida semelhante.

Nem tudo é consenso. Na União Europeia, o uso do passaporte de imunidade tem causado fraturas entre os integrantes do bloco. Grécia, Espanha e Itália, onde a indústria do turismo foi massacrada pelo vírus, são favoráveis à iniciativa, enquanto França e Alemanha alegam que, na prática, a decisão significaria discriminar viajantes que não quisessem tomar a vacina.

O risco de estigmatização dos não vacinados é um dos temas que esquentam o debate. Outra questão polêmica diz respeito aos grupos não prioritários. Por ocuparem os últimos lugares nas filas, eles acabariam cerceados em seu direito de ir e vir. Não se sabe também se, mesmo vacinado, o viajante deixaria de transmitir o vírus, um terceiro complicador para o passe-livre. O passaporte permitiria, em contrapartida, furar bloqueios impostos a visitantes no mundo inteiro.

No Brasil, a adoção de um passaporte de imunidade poderia recuperar um setor que entrou em coma com a pandemia. Não se trata apenas de prejuízo financeiro. Em cidades como o Rio, o turismo gera milhares de empregos, que foram perdidos ou estão sob risco. Já está claro que o vírus não irá embora de uma hora para outra, mesmo com vacinação. Ao contrário, a convivência com o Sars-CoV-2 e suas temidas variantes promete ser longa. O melhor é se preparar para a relação nada amistosa.

No caso brasileiro, a dificuldade maior não é a implementação de um passaporte de imunidade, pois pode-se seguir o modelo de outros países. O maior problema é a falta de vacinas. A campanha se arrasta — o país imunizou até agora menos de 4% da população. Se depender da vacinação para sair da UTI, o turismo no Brasil corre o risco de continuar entubado ainda por um bom tempo. 

A deterioração da educação básica – Opinião / O Estado de S. Paulo

Por causa da assombrosa desídia do governo federal na pandemia, a educação no Brasil vive uma crise dentro da crise

No mundo inteiro a pandemia precipitou uma crise sem precedentes na educação. O apagão acarretou perdas expressivas de aprendizagem, aumentou as desigualdades e ampliou os riscos de evasão escolar. Mas, por causa da assombrosa desídia do governo federal, a educação no Brasil vive uma crise dentro da crise. Ou melhor: já vivia uma crise endógena que foi agravada por uma crise exógena.

A mera dança das cadeiras no MEC é sintoma suficiente dessa incúria. Antes do atual ministro, Milton Ribeiro, que desde julho não mostrou a que veio, a pasta foi comandada três meses pelo inoperante Vélez Rodríguez; depois um ano e dois meses por Abraham Weintraub, que nada mais fez que reduzir o MEC a uma casamata para guerrilheiros culturais bolsonaristas; e alguns dias por Carlos Decotelli, que se notabilizou pelas fraudes em seu currículo acadêmico.

“Com relação ao MEC, além da ausência de coordenação nacional, cuja responsabilidade é do governo federal, o ano de 2020 reforçou a imagem de um ministério sem capacidade de liderança e com sérios problemas de gestão”, concluiu um balanço do instituto Todos Pela Educação. Nada ilustra mais essa inépcia que o desempenho na educação básica. Reiteradas vezes, até colidirem com a lei, o presidente Jair Bolsonaro e seu sabujo Abraham Weintraub ameaçaram sabotar o ensino universitário – em especial as Humanidades –, sob o pretexto de priorizar a educação básica. Se esse antagonismo espúrio entre ensino básico e superior já não demonstrasse uma concepção suficientemente tacanha da educação, o balanço prova que ela é também hipócrita. A educação básica encerrou o ano de 2020 com o menor orçamento e a menor execução da década.

A contração não pode ser atribuída exclusivamente à crise. Entre 2010 e 2018 (incluindo, portanto, os anos de recessão), a dotação anual média para a educação básica foi de R$ 52,2 bilhões. Nos dois anos de Bolsonaro, foi de R$ 45,2 bilhões. O desempenho da educação básica em 2020, tanto na comparação com outras etapas quanto com anos anteriores, foi muito aquém do esperado: dentre todas as etapas, as despesas discricionárias com o ensino básico obtiveram a menor taxa de pagamento (47%); a dotação das emendas parlamentares acumulou redução de 40%; e, das despesas obrigatórias, 81% foram executados, ante 86% em 2019, 95% em 2018 e 92% em 2017.

Em razão da baixa execução orçamentária iniciada no primeiro ano do governo, 2020 foi marcado pelo financiamento excessivo de restos a pagar, dificultando a execução subnacional pela falta de previsibilidade dos recursos recebidos.

A “síntese da pasta”, segundo o Todos Pela Educação, é de “inação, baixa execução orçamentária e fragilidades na governança e na pactuação com Estados e municípios, trazendo prejuízos incalculáveis a curto, médio e longo prazos para a melhoria da qualidade da educação básica”. 

Além da anomia na provisão do ensino remoto e no planejamento do retorno às aulas, o governo federal ainda vetou trechos da MP 934/20 que previam o repasse de recursos da merenda diretamente aos pais e deixou à deriva reformas como a implementação da Base Nacional Curricular Comum, o Novo Ensino Médio e medidas voltadas à profissionalização de carreira e formação docente. Numa lista de 34 prioridades apresentadas pelo governo ao Congresso, apenas uma diz respeito à educação, tratando da pauta absolutamente irrelevante da regulamentação do homeschooling.

O quadro em 2020 só não foi pior por causa da ação de prefeituras, governos estaduais, entidades representativas e do Congresso, responsáveis por avanços importantes, como a aprovação do Novo Fundeb.

Se, no campo educacional, um voto de confiança no início da gestão Bolsonaro era uma ingenuidade culposa, condescender dois anos depois com essa ilusão já caracteriza uma atitude dolosa. Mais do que nunca, garantir o avanço da educação – ou, ao menos, conter a sua deterioração – dependerá do protagonismo enérgico da sociedade civil, dos governos subnacionais e principalmente do Congresso. 

A fisionomia do futuro – Opinião / O Estado de S. Paulo

Lideranças ponderam que 2025 será muito mais tecnológico – e muito mais desafiador

Em meio à crise, nada é mais normal que se falar em “novo normal”. Mas o que será exatamente “novo”? Quais mudanças são circunstanciais (anormais) e quais serão permanentes (normais)? Em busca de respostas, o Pew Research Center consultou quase mil lideranças políticas, econômicas, científicas e sociais para conjecturar sobre como será a vida em 2025.

O consenso é que as pessoas se apoiarão mais em conexões digitais para o trabalho, educação, saúde, comércio e interações sociais – cenário que muitos descrevem como “teletudo”.

O catálogo de revoluções tecnológicas é estonteante. Na saúde, por exemplo, prevê-se uma “internet das coisas médicas” possibilitando um monitoramento holístico da saúde dos pacientes; avanços na biologia sintética; mapeamentos diagnósticos de genes e microbiomas; e toda uma legião de teleprofissionais da saúde. 

Além disso, fala-se em mídias sociais 3D (via hologramas); “internet voadora das coisas”, com drones de vigilância e entrega; economia gig (empresas que optam pela contratação temporária e sob demanda) expandida em torno de freelancers trabalhando de casa; avanços nas criptomoedas; ou escolhas educacionais que permitirão a estudantes montar cardápios personalizados.

O enigma – tão excitante quanto amedrontador – é se os seres humanos saberão lidar com tais transformações operando com “emoções paleolíticas, instituições medievais e tecnologias divinas”, nas palavras do biólogo E. O. Wilson. Como disse a presidente da Data & Society Research, Danah Boyd, “tecnologias digitais sempre espelham e magnificam o bom, o mau e o feio”. O aprimoramento da interconexão digital pode gerar mais empatia, consciência das ameaças à humanidade e ações públicas positivas. Mas, na luta pela sobrevivência, indivíduos, cidades ou nações podem se tornar mais insulares e competitivos, desencadeando surtos de xenofobia e fanatismo. 

A perspectiva de que os privilegiados gozarão mais privilégios e os desfavorecidos ficarão ainda mais vulneráveis é das apreensões mais comuns. Outra é com o poder das empresas de tecnologia. A hiperconectividade tem um caráter de “dois gumes”: ela aumenta os riscos à privacidade, e sistemas de segurança otimizados podem reduzir as liberdades civis, especialmente nas mãos de regimes autoritários – cuja expansão também desperta os piores temores. A automação pode deixar muitos fora da equação do trabalho. A saúde mental será desafiada com a contração do universo presencial. E a disseminação das mentiras pelas redes digitais ameaça os sistemas sociais, políticos e econômicos. 

Por outro lado, tecnologias como a Inteligência Artificial, cidades inteligentes, análise de dados e a realidade virtual podem tornar esses sistemas mais seguros, humanizados e produtivos. Mais comunicação e mais informação podem melhorar dramaticamente a capacidade de resposta às crises e aliviar o sofrimento. “A covid-19 pode eventualmente acelerar a desconstrução de um capitalismo decrépito que fracassa em alocar recursos a professores, trabalhadores, serviços essenciais e muitos outros setores econômicos subvalorizados ante o favorecimento de rentistas e bolhas financeiras que não acrescentam valores reais à sociedade”, ponderou Chris Arkenberg, pesquisador da Deloitte.

Para 47% dos entrevistados, a vida, em geral, deve piorar; para 39%, deve melhorar. Mas, na voracidade da crise, um grau de pessimismo deve ser descontado – tanto mais que a enquete foi feita antes das vacinas. Em outra pesquisa com a população norte-americana, 51% disseram que sua vida não deve mudar após a pandemia. As lideranças ouvidas pelo Pew Research, por sua vez, ao descrever reconfigurações de realidades fundamentais como a “presença” física e as concepções de verdade e confiança, recorreram frequentemente a expressões como “ponto de inflexão”, “escala inimaginável”, “processo exponencial” ou “ruptura massiva”.

Percepções tão ambivalentes sugerem que não se pode condescender a qualquer forma de fatalismo. Entre esperanças e apreensões, o futuro está aberto: os riscos estão aí, mas as oportunidades também. 

Cuidado com o retrocesso – Opinião / O Estado de S. Paulo

Mudanças são necessárias, mas é preciso garantir conquistas recentes

As manifestações de 2013 e a ojeriza generalizada à “velha política” nas eleições de 2018 evidenciam a necessidade de uma ampla reforma política que elimine distorções e anacronismos que induzem, entre outras coisas, à fragmentação partidária em legendas nanicas e ideologicamente invertebradas, subvertendo a atividade parlamentar num balcão de negócios para seus caciques. Nos últimos anos, passos importantes foram dados. Agora, a Câmara criou uma comissão para estudar mudanças no sistema eleitoral. Mas, sob o pretexto de dar um passo à frente, há o risco não desprezível de dar vários para trás.

Entre o extenso catálogo de temas apresentados pela relatoria, fala-se em adaptações nas regras da propaganda eleitoral, debates, divulgação de pesquisas, condições de elegibilidade, recursos judiciais ou sistemas de votação (eletrônicos e/ou impressos). Há ainda pautas de extrema relevância para a moralização do sistema partidário, como o financiamento de campanha ou a prestação de contas. 

Mas há mudanças que nem deveriam estar sendo discutidas. Não porque não toquem temas relevantes e muito menos por não serem de competência do Parlamento, mas sim, ao contrário, porque já foram deliberadas em amplos processos participativos de alcance constitucional e, agora que estão em processo de implementação, correm o risco de serem abortadas antes que a população possa averiguar seus frutos. As duas mais relevantes são a cláusula de desempenho dos partidos e a extinção do sistema de coligações.

Desde a redemocratização, verificou-se uma escalada da fragmentação partidária, dificultando a governabilidade na mesma proporção em que facilitava o trabalho dos caciques interessados em acessar recursos públicos e alugar as suas cotas de horário eleitoral gratuito. Em 1986, a Câmara dos Deputados tinha 12 partidos; em 2018, eram 30 – 1/3 deles tinha apenas de um a nove deputados. Essa proliferação de legendas sem representatividade foi contida com uma emenda constitucional de 2017.

A nova lei impôs uma cláusula de barreira (ou desempenho) impedindo que os partidos que não recebem um cociente mínimo de votos sejam brindados com recursos dos fundos partidário e eleitoral e com horário eleitoral. Já em 2019, os partidos na Câmara precisavam ter ao menos 1,5% dos votos para deputados distribuídos em ao menos nove Estados, além de um mínimo de 1% em cada Estado. Dos 30 partidos que elegeram representantes na Câmara, 14 não atingiram esses patamares. Alguns optaram por se incorporar a outras legendas ou ceder seus deputados, de modo que hoje há 24 partidos na Casa. A lei prevê que a eficácia desse filtro salutar seja gradativamente ampliada com a elevação do piso de votos para 3% até 2030. Mas nos bastidores da nova comissão já se fala em congelamento da cláusula.

Talvez mais importante tenha sido a extinção das coligações partidárias, uma perniciosa distorção dos mecanismos representativos. Pelo sistema proporcional vigente, a quantidade de votos de cada partido determina a sua quantidade de vagas, que então são distribuídas aos candidatos mais votados. Ocorre que, antes da nova lei, os partidos podiam se coligar para somar seus votos. Com isso, legendas minúsculas podiam eleger candidatos inexpressivos herdando votos de fenômenos populares – o chamado “efeito Tiririca”. De resto, o eleitor que votava em um candidato acabava muitas vezes contribuindo à revelia para eleger um “caroneiro” de orientação ideológica distinta da sua. No pleito municipal de 2020, o primeiro sem essa possibilidade, os partidos nanicos elegeram apenas 1,1% dos vereadores, enquanto na anterior foram 2,4%.

Agora, alguns deputados flertam com o retorno ao antigo sistema. Mas que sentido pode haver em sustar as novas regras antes mesmo de serem testadas nas eleições estaduais e federais de 2022? A menos que a reversão do novo sistema seja muito bem justificada – o que é difícil, dado que ele está cumprindo sua finalidade – não é possível classificá-la senão com um nome: retrocesso.

PEC da impunidade – Opinião / Folha de S. Paulo

Deputados pretendiam atropelar a discussão para obter blindagem injustificável

Sob o pretexto de regular o que estaria confuso no ordenamento jurídico brasileiro, uma parcela dos deputados federais achou por bem apresentar uma proposta de emenda à Constituição para definir de modo mais preciso os limites da imunidade parlamentar.

Na prática, porém, a medida não limita nada; ao contrário, o que se propõe é ampliar a blindagem constitucional a que deputados e senadores já têm direito. Não surpreende que, nos bastidores do Congresso Nacional e nas redes sociais, tenha circulado um apelido merecido: PEC da impunidade.

Fique bem entendido que o problema não está nas atuais imunidades. Parlamentares precisam de algumas garantias para que exerçam seus mandatos com a máxima liberdade e o mínimo de receio. Somente assim poderão defender os interesses de seus eleitores sem censuras externas nem internas.

É por esse motivo que congressistas são invioláveis por votos e opiniões emitidas no exercício do mandato. Pela mesma razão, só podem ser presos em circunstâncias específicas —flagrante de crime inafiançável. E, ainda, têm a oportunidade de suspender um processo contra um de seus pares ou mesmo de tirá-lo da cadeia.

A ideia por trás de todas essas vantagens é proteger o mandato parlamentar contra abusos de outros Poderes. A democracia seria muito mais frágil se o Judiciário, sem nenhum freio, pudesse tirar do Congresso deputados e senadores que não fossem de seu agrado.

O sistema funciona. Se o Judiciário exorbitar, basta o Legislativo corrigir o erro —os mecanismos para isso já existem.

Não satisfeitos, alguns deputados queriam mais. Decerto ficaram impressionados com o encarceramento de Daniel Silveira (PSL-RJ) e, ao que parece, se mexeram para salvar a própria pele.

O sentido de urgência foi tão intenso que, sob comando do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tentaram atropelar o rito regular de tramitação das PECs, driblando a discussão na Casa e na sociedade. Não pegou bem.

Para piorar, o conteúdo da proposta cria regalias penais inaceitáveis, deixando os parlamentares quase sem controle judicial.

Se algo desse debate merece consideração, é a sugestão de regular as ocasiões em que um congressista pode ser afastado do mandato por ordem do Judiciário. O ideal, nesses casos, é seguir o rito que já existe para prisões: submeter a decisão ao crivo do Legislativo.

Caso o Congresso queira conduzir um debate maduro sobre esse tema, a oportunidade está dada. Arthur Lira, pressionado por seus colegas, decidiu restabelecer o ritmo normal e criou uma comissão para analisar a PEC. Melhor assim.

A hora mais grave – Opinião / Folha de S. Paulo

Mortandade atinge pico, mas autoridades têm dificuldade em impor restrições

Nunca se morreu tanto no país devido à pandemia de Covid-19 como agora. A chamada média móvel diária atingiu seu número mais alto na quinta-feira (25), com 1.129 óbitos, mesma data em que o recorde para 24 horas foi batido.

Nunca o Sistema Único de Saúde esteve tão próximo de colapsar, enquanto a vacinação avança lentamente. Dezessete capitais registram taxa de ocupação de UTIs de ao menos 80%, de acordo com a Fiocruz, numa lista capitaneada por Porto Velho, Florianópolis, Manaus, Goiânia e Fortaleza.

Filas já começam a se tornar comuns nos hospitais Brasil afora, e estados vêm sendo obrigados a suspender cirurgias eletivas e outros procedimentos não relacionados à doença —o que também se observa na rede privada, inclusive em hospitais de referência como Albert Einstein e Sírio Libanês, em São Paulo.

Completa a nossa desgraça o comportamento de Jair Bolsonaro, cujo empenho diuturno em sabotar as medidas de enfrentamento se voltou, no mais recente desvario, para o uso das máscaras, nada menos que o item de proteção mais importante neste momento.

Ante a desídia criminosa da administração federal, prefeitos e governadores agem como podem. Nos últimos dias, estados e cidades do país anunciaram medidas para restringir a circulação do público.

Na região Sul, que enfrenta verdadeira explosão de casos e internações, Santa Catarina e Paraná decretaram suspensões de atividades não essenciais, além de toques de recolher no início da noite.

A Bahia impôs uma lei seca, restringiu a circulação a partir das 20h e suspendeu a maior parte dos serviços —mas apenas durante este fim de semana. Já Pernambuco adotou um controle mais brando, embora por tempo maior.

No estado de São Paulo, onde a ocupação média de leitos está acima de 70%, a região metropolitana da capital e outras cinco áreas retrocederam sua classificação no plano estadual —duas delas para a fase vermelha, a mais restritiva. Araraquara mantém há uma semana confinamento rígido.

Sem qualquer coordenação nacional, quase sempre de alcance restrito e frequentemente efêmeras, tais medidas tendem a ter efeito limitado na contenção da pandemia.

Contudo os temores de consequências econômicas, somados ao cansaço de parte da população e à oposição cruenta de Brasília, tornam difícil para as autoridades implementar ações mais severas.

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