Há
setores da esquerda dispostos a sacrificar os direitos humanos se as ditaduras
são ‘amigas’
Nem
mesmo quando a pandemia grassava nos Estados Unidos sem perspectiva de
controle, e o então presidente Donald Trump perdia o trunfo de alguns ganhos
econômicos que podia alardear, era totalmente certa sua derrota nas urnas. Não
importava muito que os democratas houvessem encontrado em Joe Biden uma saída
equilibrada e confiável, de resto quase sempre à frente na maioria das
pesquisas pré-eleitorais. Na verdade, tão espalhado é o mal-estar difuso nas
democracias, tão grande a crise do político, mais além das crises convencionais
da política, que o campo aberto à disposição dos demagogos parece inesgotável,
possibilitando-lhes passes de mágica e ilusionismos vários até há pouco
próprios só do realismo fantástico.
Convém ter isso claro ao analisar o momento atual do presidente Bolsonaro no penúltimo ano de mandato, já se podendo prever, sem margem a dúvida razoável, o quadro catastrófico que se abriria em caso de reeleição. Os números negativos sobre seu desempenho no (não) enfrentamento da pandemia – um evento excepcional – ou na administração regular dos problemas do País podem até subir consistentemente, como parece ser a tendência, mas sempre sobrará para esse tipo de líder a tentação do desatino fatal: o ataque frontal às instituições, iconicamente representado no assalto ao Capitólio.
Além
disso, a derrota de Trump ao fim do primeiro mandato – como assinalou Yasha
Mounk, que de populismo autoritário entende – não seguiu o padrão habitual. É
que, em média, tais líderes tendem a ficar mais tempo no poder do que
primeiros-ministros e presidentes comprometidos com as regras da alternância, e
os eleitores só os defenestram depois de já seriamente comprometidas as
instituições.
Nada
simples desvendar o segredo de tal resiliência, mas o fato é que esses
dirigentes autoritários expressam e estimulam um contexto em que há imensas
falhas tectônicas entre os territórios da política e da economia. A primeira,
ainda basicamente vivida e pensada em termos nacionais; a segunda, crescentemente
globalizada, sem instituições que a regulem e garantam a correção dos
desequilíbrios provocados por seu movimento “cego”. Retomar o controle nacional
sobre o movimento da “máquina do mundo”, fechar fronteiras, destruir os fóruns
de cooperação mundial e, por certo, acirrar conflitos externos e a guerra
interna de classes, eis a substância da distopia que incendiou a imaginação de
políticos e ideólogos do novo populismo.
Por
isso o léxico de que se valem os nacionalistas autoritários é impressionantemente
monótono: a “América primeiro”, de Trump, é o lema que tentaram, ou tentam,
retraduzir em suas nações Salvini, Erdogan, Orban, Le Pen. Entre nós, o “Brasil
acima de tudo” trouxe em si o aspecto irônico de ser um nacionalismo
contraditoriamente dependente de outro, e ademais, com a vitória de Joe Biden,
agora órfão na parte ocidental do mundo. E o “Deus acima de todos”,
independentemente do que pensarmos sobre a profundidade da vida espiritual de
quem nos governa, sintetiza no plano retórico a disposição de usar, sem
moderação e a despeito dos processos de secularização que supúnhamos
consagrados, a arma do fundamentalismo religioso.
O
cardápio envenenado implica a volta aos valores de um passado muitas vezes
pré-iluminista, a proposição de uma modernidade reacionária e amputada da
dimensão do individualismo democrático, para nada falar do marxismo, seja lá a
extensão ou o sentido a ser atribuído a esse termo. O recuo às fronteiras
nacionais, por óbvio, tem como consequência abdicar da capacidade de pôr de pé
uma ordem mundial minimamente cooperativa e pacificada: até o comércio entre as
nações se torna a continuação da guerra por outros meios. Em cada país
individualmente considerado, as marcas evidentes são a democracia sem
liberalismo, o Führerprinzip como
a realidade por trás do slogan do
“povo no poder”, bem como o recurso permanente às rançosas lutas culturais, na
falta de projeto hegemônico consistente. E naturalmente, com o isolacionismo, a
intensificação do racismo e da xenofobia.
Tudo
seria simples demais, os campos estariam bem demarcados e só restaria partir
para o bom combate do voto e das ideias, não fosse o fato perturbador de que
também há setores da esquerda de orientação “soberanista” e antiliberal,
dispostos a sacrificar o legado iluminista e até os direitos humanos, quando os
ditadores são “nossos” e as ditaduras, amigas. Não se trata só de crasso erro
prático, capaz de minar a prática das alianças e das amplas frentes em prol dos
valores democráticos. Trata-se, também, de insuficiência teórica que impede ver
em toda a sua amplitude os processos de democratização política e social, bem
como o papel que neles tiveram os “subalternos”, em geral representados por
socialistas em conflito – mas também em colaboração – com liberais e mesmo
conservadores.
É
essa dinâmica aberta e generosa, historicamente decisiva, que convém restaurar
o quanto antes, mesmo porque os bárbaros estão às portas e, ai de nós, em
alguns casos já as derrubaram.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
Aplaudo de pé. Demoradamente.
ResponderExcluirLuiz Sérgio Henriques desnuda a crise brasileira e as ameaças pesadas que nossa democracia vem enfrentando — principalmente as perpetradas pelo infame, despreparado e fortuito ocupante do Planalto. Vozes como esta precisam gritar sem descanso para que a perversidade desse sub-humano não triunfe, caso contrário nossa esperança, mais uma vez, será trancafiada nas masmorras do totalitarismo.