sexta-feira, 28 de maio de 2021

José de Souza Martins* - Poder e loucura

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Até que o desvio de personalidade ganhe percepção social de que a sociedade está sendo governada por um louco pode passar muito tempo

Em lugar nenhum, os poderosos hereditários ou de circunstância estão sujeitos a um radar político eficaz que acenda a luz vermelha em caso de que apresentem sinais de loucura. Apenas supostamente a própria estrutura do Estado tem mecanismos de detecção automática de casos de insanidade para bloquear o governante que deixe de atender aos requisitos de normalidade mental para governar.

A loucura não é a mesma coisa em todas as partes. Ela é definida culturalmente, mesmo pelo médico. No Brasil, a sabedoria popular tem uma definição benevolente que retarda a estigmatização de alguém por comportamento anômalo: “De músico, poeta e louco, todo mundo tem um pouco.”

Aqui, pode-se supor que uma fonte social de loucura eventual na política é a da tradição localista do autoritarismo patriarcal, decorrente da dominação escravista. Pessoas com essa mentalidade, deslocadas para situações da sociedade moderna e urbana, estão sujeitas a desconforto mental que pode se manifestar em alguma forma de loucura.

Se faltar a tais pessoas a ressocialização para esse outro modo de vida, inconformadas, nos casos mais brandos reagem com objeções demolidoras à sociedade que desconhecem. Nas formas mais graves, eventualmente no poder, sua reação tenderá à obsessão do golpe de Estado para impor sua vontade política tosca e torta, demolir as instituições e reinventar uma sociedade só para si.

Até que o desvio de personalidade ganhe percepção social de que a sociedade está sendo governada por um louco, pode passar muito tempo. Artistas e escritores têm capturado com mais facilidade do que os políticos e do que o cidadão comum os indícios de que um rei ou um presidente saiu dos eixos e que, portanto, talvez deva ser removido do trono ou do poder. Simão Bacamarte, o alienista de Machado de Assis, documenta essa percepção. Louco é sempre quem acha que loucos, idiotas e errados são os outros.

Um belo exemplo dessa lentidão e de tolerância é o filme “As Loucuras do Rei George”, inspirado na história do rei George III, da Inglaterra. Teve ele um longo reinado, de mais de 60 anos. Só foi privado do trono quando sua loucura passou do limite e substituiu-o o príncipe herdeiro.

É memorável a cena do rei, à medida que vai se recuperando no tratamento, quando se insurge contra o médico e grita algo como “Eu sou o rei!”. E recebe do médico, também em grito, o esclarecimento: “Você é o meu paciente!”. A questão da loucura no poder é a de saber quem manda e a de saber a quem a loucura interessa.

Nós também tivemos loucos no poder. A primeira rainha portuguesa a pisar em terra brasileira, em 1808, foi Dona Maria I, a Louca. Aqui faleceria. No momento da partida da família real de Portugal, em dia de chuva, correndo pelo lama do terreiro do paço para embarcar nos navios ingleses da viagem ao Brasil, foi ela a única que se lembrou de dizer: “Não corram! Vão pensar que estamos fugindo”. Nenhum louco diz isso, especialmente quem foi educado nas normas do decoro e do respeitar para ser respeitado.

No regime republicano, tivemos no poder um reconhecidamente louco na Presidência da República, Delfim Moreira. Vice-presidente de Rodrigues Alves, assumiu o poder em 1919, quando o presidente eleito, contaminado na pandemia da gripe espanhola, não pôde assumir. Morreria pouco depois. O vice vivia desconectado da realidade. Às vezes, vestia traje de rigor e ornamentava-se com suas condecorações nos dias de trabalho rotineiro. Imaginava-se o que era, mas não na situação em que devia ser.

Há os governantes frágeis que, não sendo loucos, em decorrência de sua debilidade, são vulneráveis à manipulação de espertalhões que de sua fragilidade se aproveitam. São os que mandam no governante, até parentes, como donos do poder que de fato não são.

No geral, o reconhecimento da loucura pode ser precedido por um certo tempo, durante o qual surge a desconfiança de que determinado comportamento do governante não é normal. Mesmo quando ele se sujeita a terceiros em suas decisões e atos.

Nesses casos, de quem tem poder, as anomalias de sua conduta, quando as há, têm acolhida benevolente da população. Ainda pensamos os poderosos na arraigada persistência do que é tradição monárquica e dominação oligárquica. Nela, os poderosos são bons e mansos, pais da pátria, mesmo na loucura.

Apesar de pessoas no poder estarem geralmente protegidas por acobertadores de seus gestos e ações anômalos, a visibilidade pública da loucura e sua decorrente interdição dependem de quem suponha que a anomalia é sinal de loucura e compartilhe a suposição com outros que a aceitem. É o que o sociólogo canadense Erving Goffman chama de conspiração alienativa. A loucura pode ser “fabricação” política.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica”(Ateliê).

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