- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Até que o desvio de personalidade ganhe
percepção social de que a sociedade está sendo governada por um louco pode
passar muito tempo
Em lugar nenhum, os poderosos hereditários ou de circunstância estão sujeitos a um radar político eficaz que acenda a luz vermelha em caso de que apresentem sinais de loucura. Apenas supostamente a própria estrutura do Estado tem mecanismos de detecção automática de casos de insanidade para bloquear o governante que deixe de atender aos requisitos de normalidade mental para governar.
A loucura não é a mesma coisa em todas as
partes. Ela é definida culturalmente, mesmo pelo médico. No Brasil, a sabedoria
popular tem uma definição benevolente que retarda a estigmatização de alguém
por comportamento anômalo: “De músico, poeta e louco, todo mundo tem um pouco.”
Aqui, pode-se supor que uma fonte social de
loucura eventual na política é a da tradição localista do autoritarismo
patriarcal, decorrente da dominação escravista. Pessoas com essa mentalidade,
deslocadas para situações da sociedade moderna e urbana, estão sujeitas a desconforto
mental que pode se manifestar em alguma forma de loucura.
Se faltar a tais pessoas a ressocialização
para esse outro modo de vida, inconformadas, nos casos mais brandos reagem com
objeções demolidoras à sociedade que desconhecem. Nas formas mais graves,
eventualmente no poder, sua reação tenderá à obsessão do golpe de Estado para
impor sua vontade política tosca e torta, demolir as instituições e reinventar
uma sociedade só para si.
Até que o desvio de personalidade ganhe percepção social de que a sociedade está sendo governada por um louco, pode passar muito tempo. Artistas e escritores têm capturado com mais facilidade do que os políticos e do que o cidadão comum os indícios de que um rei ou um presidente saiu dos eixos e que, portanto, talvez deva ser removido do trono ou do poder. Simão Bacamarte, o alienista de Machado de Assis, documenta essa percepção. Louco é sempre quem acha que loucos, idiotas e errados são os outros.
Um belo exemplo dessa lentidão e de
tolerância é o filme “As Loucuras do Rei George”, inspirado na história do rei
George III, da Inglaterra. Teve ele um longo reinado, de mais de 60 anos. Só
foi privado do trono quando sua loucura passou do limite e substituiu-o o
príncipe herdeiro.
É memorável a cena do rei, à medida que vai
se recuperando no tratamento, quando se insurge contra o médico e grita algo
como “Eu sou o rei!”. E recebe do médico, também em grito, o esclarecimento:
“Você é o meu paciente!”. A questão da loucura no poder é a de saber quem manda
e a de saber a quem a loucura interessa.
Nós também tivemos loucos no poder. A
primeira rainha portuguesa a pisar em terra brasileira, em 1808, foi Dona Maria
I, a Louca. Aqui faleceria. No momento da partida da família real de Portugal,
em dia de chuva, correndo pelo lama do terreiro do paço para embarcar nos
navios ingleses da viagem ao Brasil, foi ela a única que se lembrou de dizer:
“Não corram! Vão pensar que estamos fugindo”. Nenhum louco diz isso,
especialmente quem foi educado nas normas do decoro e do respeitar para ser respeitado.
No regime republicano, tivemos no poder um
reconhecidamente louco na Presidência da República, Delfim Moreira.
Vice-presidente de Rodrigues Alves, assumiu o poder em 1919, quando o
presidente eleito, contaminado na pandemia da gripe espanhola, não pôde
assumir. Morreria pouco depois. O vice vivia desconectado da realidade. Às
vezes, vestia traje de rigor e ornamentava-se com suas condecorações nos dias
de trabalho rotineiro. Imaginava-se o que era, mas não na situação em que devia
ser.
Há os governantes frágeis que, não sendo
loucos, em decorrência de sua debilidade, são vulneráveis à manipulação de
espertalhões que de sua fragilidade se aproveitam. São os que mandam no
governante, até parentes, como donos do poder que de fato não são.
No geral, o reconhecimento da loucura pode
ser precedido por um certo tempo, durante o qual surge a desconfiança de que
determinado comportamento do governante não é normal. Mesmo quando ele se
sujeita a terceiros em suas decisões e atos.
Nesses casos, de quem tem poder, as
anomalias de sua conduta, quando as há, têm acolhida benevolente da população.
Ainda pensamos os poderosos na arraigada persistência do que é tradição
monárquica e dominação oligárquica. Nela, os poderosos são bons e mansos, pais
da pátria, mesmo na loucura.
Apesar de pessoas no poder estarem
geralmente protegidas por acobertadores de seus gestos e ações anômalos, a
visibilidade pública da loucura e sua decorrente interdição dependem de quem
suponha que a anomalia é sinal de loucura e compartilhe a suposição com outros
que a aceitem. É o que o sociólogo canadense Erving Goffman chama de
conspiração alienativa. A loucura pode ser “fabricação” política.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica”(Ateliê).
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