segunda-feira, 10 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Com todas as letras

O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro diz que não haverá eleição sem votos impressos e chamou País de “republiqueta”. Difícil imaginá-lo passando a faixa presidencial a quem quer que seja

O presidente Jair Bolsonaro classificou o Brasil como “republiqueta”. É espantoso que o político a quem foi conferida pelos eleitores a nobre tarefa de governar o Brasil tenha uma opinião tão desairosa sobre o País. A República brasileira tem muitos problemas – e em vários momentos, graças, sobretudo, a Bolsonaro, de fato se parece muito com uma republiqueta –, mas aqui ainda há uma Constituição, há instituições democráticas e há liberdade. E é justamente por ter esse sólido arcabouço democrático que os reptos autoritários de Bolsonaro, por mais tumulto que causem, serão, como têm sido, serenamente repelidos.

Isso não significa que o presidente se sinta dissuadido e afinal pare de desafiar a ordem constitucional que jurou respeitar ao tomar posse. Na mesma ocasião em que demonstrou seu desprezo pela República, Bolsonaro avisou que, se não for aprovado o “voto impresso” em lugar da urna eletrônica, “não vai ter eleição” no ano que vem.

“Ninguém mais aceita esse voto que está aí. Como é que vai falar que esse voto é preciso, legal, justo e não fraudado? A única republiqueta do mundo é a nossa, que aceita essa porcaria de voto eletrônico. Tem que ser mudado. E digo mais: se o Parlamento aprovar e promulgar, vai ter voto impresso em 2022, e ponto final. Não vou nem falar mais nada. Vai ter voto impresso. Se não tiver voto impresso, é sinal de que não vai ter eleição. Acho que o recado está dado”, disse Bolsonaro.

Não é a primeira vez que Bolsonaro lança dúvidas sobre a lisura das eleições com urnas eletrônicas. Frequentemente declara ter certeza de que a eleição presidencial de 2018 foi fraudada para impedir que ele vencesse já no primeiro turno. Em março de 2020, chegou a dizer que tinha “provas” dessa fraude e que as apresentaria “brevemente”. Mais de um ano se passou e as “provas”, obviamente inexistentes, não foram mostradas.

Bolsonaro segue incansável em sua campanha contra as urnas eletrônicas, a despeito dos inúmeros atestados de que o sistema é confiável, mas agora foi bem mais longe. Com todas as letras, ameaçou tumultuar a própria realização das eleições.

O presidente e seus fanáticos camisas pardas acalentam essa ideia há muito tempo, mas o projeto liberticida ganhou força com a tentativa de golpe liderada por Donald Trump, ídolo de Bolsonaro, nos Estados Unidos. Na campanha pela reeleição, o então presidente Trump disse diversas vezes que só perderia se houvesse fraude. Uma vez que as urnas indicaram sua derrota, Trump incitou seus seguidores a contestar a votação e a invadir o Capitólio, sede do Congresso norte-americano, para impedir a consagração do resultado.

É sintomático que Bolsonaro tenha sido um dos últimos chefes de Estado a reconhecer a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos e um dos únicos a alinhar-se a Trump na contestação do resultado. Com isso, o presidente brasileiro manteve coesa e excitada sua base radical, maravilhada com sua ousadia de questionar a eleição de Biden, colocando sua agenda lunática acima do bom senso, da etiqueta diplomática e do interesse público.

Esse gesto temerário do presidente serviu para antecipar a estratégia bolsonarista para a eleição de 2022. Na hipótese de derrota, está claro que Bolsonaro não aceitará o desfecho – mesmo se houver o tal “voto impresso”. Na insanidade de seus fanáticos seguidores, Bolsonaro encarna o povo, razão pela qual é simplesmente impossível que esse povo escolha outro candidato.

Trata-se de uma crise contratada desde que se elegeu presidente um homem que jamais respeitou o Exército quando militar nem respeitou as instituições democráticas quando parlamentar.

É preciso uma grande dose de otimismo para imaginar Bolsonaro, veteraníssimo provocador dos limites da democracia, passando a faixa presidencial a quem quer que seja – especialmente se o vencedor da eleição for um dos muitos políticos que ele trata como inimigos mortais. Sua escalada retórica praticamente impede um recuo. “O recado está dado”, advertiu Bolsonaro. Seria imprudente ignorá-lo.

 O plantador de árvores

O Estado de S. Paulo

Ação obstinada de um cidadão legou à cidade de São Paulo o seu primeiro parque linear

A obstinação e o espírito público de um cidadão legaram à cidade de São Paulo o seu primeiro parque linear. Em 2003, Hélio da Silva, um gerente comercial de 70 anos, natural de Procissão, no interior do Estado, começou a plantar mudas de árvores nas margens do Rio Tiquatira, na Penha, bairro da zona leste da capital paulista. Dezoito anos depois, o que parecia ser apenas uma despretensiosa ação isolada de um morador incomodado com o abandono da área deu origem ao Parque Linear Tiquatira, uma floresta com mais de 33 mil árvores de 160 espécies, que se espalham por quase quatro quilômetros de extensão ao longo das duas margens do rio.

“O que fiz foi trazê-las (as árvores) de volta para cá. Podem não acreditar, mas, quando as trouxe, o solo as reconheceu e tudo se transformou. É lúdico (acompanhar) o negócio. Aqui era terra de ninguém e agora é isso aí”, disse seu Hélio, como é conhecido no bairro, ao Estado.

As árvores são quase todas nativas da Mata Atlântica. “Tem ingá, quaresmeira, babosa, jequitibá, aroeira, salsa, pau-d’alho”, disse. Sem conhecimento técnico formal, seu Hélio aplicou na plantação e conservação do parque que criou os conhecimentos que adquiriu em pesquisas na internet e em conversas com outras pessoas. “A cada 12 mudas plantadas, obrigatoriamente, uma tem de ser frutífera”, explica. O objetivo é atrair os pássaros.

E, de fato, eles vieram. De acordo com a Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, no local já foram observadas 45 espécies de aves, incluindo três espécies endêmicas da Mata Atlântica, periquito-rico, teque-teque e tiê-preto. 

Hoje o Parque Linear Tiquatira – Engenheiro Werner Zulauf está consolidado, criado como tal por um decreto do ex-prefeito Gilberto Kassab, de 13 de agosto de 2008. Mas não foram poucas as dificuldades que seu Hélio teve de superar para ver suas árvores crescerem frondosas. Houve desde sabotagem de pessoas que arrancavam as primeiras mudas até ameaças de comerciantes que temiam que as copas das árvores ofuscassem seus estabelecimentos ou se aborreciam com a perda de uma área usada como estacionamento irregular. No entanto, nada foi capaz de deter o espírito de um cidadão que acreditava no bem maior que fazia a si mesmo e à sua comunidade.

O desprendimento e a obstinação de seu Hélio por plantar cada vez mais árvores podem ser medidos pela quantia de dinheiro do próprio bolso que investiu em terra, adubo, ferramentas e mudas. “Em um ano, foram R$ 29 mil. Em outro, R$ 32 mil. No início, era menos. Mas é melhor não calcular essas coisas”, disse o plantador de árvores.

A ação de um único cidadão contribuiu para mudar completamente a realidade do bairro onde mora. O crescimento do parque linear da Penha, segundo seu Hélio, levou à valorização dos imóveis na região, além de tornar a temperatura local um pouco mais amena. Seus vizinhos de bairro passaram a frequentar um local antes degradado para a prática de atividades físicas. De acordo com a organização do parque, cerca de 700 pessoas frequentam o local diariamente.

“Nada mais fiz do que retribuir o que a cidade de São Paulo, onde vivo há mais de 60 anos, me deu”, disse seu Hélio. Para além do impacto positivo local, sua ação serve como bom exemplo de cidadania e cuidado com o meio ambiente, em sentido amplo, para todos os paulistanos. Esse cuidado com a cidade não é uma prerrogativa exclusiva do poder público. Muito ao contrário, é uma responsabilidade de cada munícipe, no limite de suas possibilidades.

Evidentemente, são pouquíssimos os cidadãos que têm recursos financeiros para investir ao longo de anos em projetos como o de seu Hélio. Mas há uma infinidade de ações que independem de dinheiro para gerar efeitos positivos para a coletividade, a começar pela própria conservação de parques como o idealizado por ele. Rios urbanos, como o Tiquatira, sofrem com o descarte irregular de lixo, entulho e esgoto. Ademais, no curso de uma pandemia, o mero uso correto de máscara que se exige no parque já é sinal de civilidade e cuidado com o próximo que não custa mais do que a boa vontade de cada um.

Deixando os dólares fugir

O Estado de S. Paulo

Além de assustar os investidores, o País tem sido incapaz de reter os dólares

O mercado mundial vai muito bem para o Brasil, com as grandes economias em recuperação e a China comprando volumes crescentes de alimentos e de minérios. Além disso, há muito dinheiro em circulação e investidores dispostos a buscar oportunidades no mundo emergente. Mas o País tem sido incapaz de reter boa parte dos dólares faturados com exportações e de atrair investimentos para acelerar sua expansão. O Brasil deve receber US$ 55 bilhões de investimentos diretos, neste ano, segundo estimativa do mercado captada em pesquisa do Banco Central (BC). Mas até essa estimativa, embora modesta quando comparada com resultados de uma década, parece otimista diante dos pífios valores acumulados nos últimos meses.

Com baixo crescimento, mesmo depois de ultrapassada a recessão de 2015-2016, o País ainda conservou algum atrativo para o investidor estrangeiro até o último ano antes da pandemia. Mas esse atrativo tem declinado, por causa das indefinições da política econômica, das incertezas quanto à evolução das contas oficiais e da dívida pública e, de modo especial, de atitudes e orientações do presidente Jair Bolsonaro. Sua política ambiental, tolerante e até favorável à devastação de florestas e de outros ativos naturais, tem desencorajado a aplicação de recursos no mercado brasileiro. Além disso, tem estimulado a fuga de capitais. Tudo isso se reflete, por exemplo, na desvalorização excessiva do real.

O Brasil contabilizou US$ 39,26 bilhões de investimentos diretos nos 12 meses até março. Esse dinheiro foi mais que suficiente para cobrir o buraco das transações correntes, no valor de US$ 17,83 bilhões no mesmo período. As transações correntes são o resumo principal das transações externas (comércio de bens, conta de serviços e movimento de rendas). Investimentos diretos são a melhor forma de investimento estrangeiro, porque se destinam à atividade empresarial e são menos voláteis que as aplicações no mercado de papéis, isto é, de ações e títulos de dívida.

Esses investimentos vêm declinando há mais de dois anos. Atingiram US$ 78,16 bilhões em 2018, diminuíram para US$ 69,17 bilhões em 2019 e encolheram para US$ 34,17 bilhões em 2020, quando a pandemia afetou duramente a economia global e os fluxos de capitais. Apesar de alguma recuperação, ainda se mantiveram, nos 12 meses terminados em março, bem abaixo dos volumes observados na fase anterior à covid-19.

Também o ingresso de recursos no mercado de papéis tem sido afetado. O volume oscila, mas a insegurança dos investidores – nacionais e estrangeiros – é constante. As incertezas tornam-se visíveis no mercado de ações, na determinação dos juros futuros e, é claro, nas oscilações cambiais. Pelas condições do comércio externo e pelo volume de reservas, o câmbio brasileiro poderia estar na vizinhança de R$ 4,50 por dólar, dizem especialistas, mas dificilmente a moeda americana é negociada abaixo de R$ 5,40.

O Brasil poderia beneficiar-se muito mais do ciclo de alta dos produtos básicos. A economia continua emperrada, os investimentos são insuficientes para dinamizar o crescimento e o ganho das vendas externas escorre para fora. O País tem feito muito menos que o necessário para reter os dólares e para atrair mais investimentos, segundo declaração atribuída pelo site especializado Investing.com a Drauzio Giacomelli, estrategista-chefe para mercados emergentes do Deutsche Bank.

Entrevistado pelo Estado, o estrategista-chefe da XP, Fernando Ferreira, apontou a perda de importância do País para o investidor estrangeiro. Tendo reduzido sua exposição, esse investidor hoje pode, se quiser, “ignorar o Brasil”. Para mudar esse quadro, será preciso dar previsibilidade às condições econômicas e financeiras.

Com a insegurança, perdem-se investimentos e dinheiro já conquistado é mantido lá fora. Exportadores, segundo se estima, deixam no exterior mais de US$ 40 bilhões. Quando se considera todo o dinheiro mantido em contas estrangeiras, fala-se em cerca de meio trilhão de dólares. Isso é parte do custo da incerteza.

Passando a limpo

Folha de S. Paulo

Revogação da LSN representa avanço, mas texto da Câmara ainda gera insegurança

Deve ser reconhecido como um avanço o projeto da Câmara dos Deputados que revoga a Lei de Segurança Nacional, aprovado a toque de caixa na última terça (4) e agora submetido à análise do Senado.

Em substituição à lei anacrônica editada nos estertores da ditadura militar e até hoje vigente, o texto abre no Código Penal um novo capítulo para proteger as instituições democráticas e a soberania do país contra ações criminosas.

Os novos tipos penais são definidos com precisão que os distancia das normas herdadas do período autoritário, reduzindo a margem para abusos como os que têm ocorrido na aplicação da lei contra jornalistas e opositores políticos.

O projeto pune atos violentos praticados com o objetivo de abolir o Estado de Direito ou depor governos legalmente constituídos, mas busca evitar que críticas legítimas e atos sem maiores consequências sejam tratados como graves ameaças contra as instituições.

Enquadram-se como atentados à soberania do país somente atos extremos, como negociações com governos hostis, o uso de violência para desmembrar o território nacional ou a entrega de documentos oficiais secretos a estrangeiros.

Punições previstas para ofensas à honra do presidente da República e dos chefes dos outros Poderes continuariam agravadas, mas deixariam de ser tratadas pela legislação como se colocassem em xeque a estabilidade institucional do país.

Apesar do pouco tempo de debate, que se encerrou após um mês e meio, houve um esforço para acolher contribuições da sociedade e contemplar suas preocupações.

Causa desconforto, entretanto, a inclusão no texto de uma seção específica para tratar de crimes contra o processo eleitoral. Ela pode se tornar fonte de grande insegurança jurídica se não houver correções e deveria ser objeto de maior reflexão no Senado.

Com linguagem genérica que dá margem a todo tipo de interpretação, um dos seus dispositivos prevê até cinco anos de prisão para quem usar robôs e outros artifícios para difundir “fatos que sabe inverídicos”, capazes de “comprometer o processo eleitoral”.

Parece grande o risco de o dispositivo ser usado para restringir a liberdade de expressão e silenciar adversários em campanhas eleitorais. A proposta permite, inclusive, que partidos políticos acionem a Justiça se o Ministério Público não agir nesses casos.

Na reta final dos debates, incluiu-se no projeto um artigo para esclarecer que os novos tipos penais não se aplicam à atividade jornalística, a manifestações críticas às instituições e outros atos protegidos pela Constituição. Que seja necessário reafirmar o óbvio não deixa de ser um sinal dos tempos.

Retomada desigual

Folha de S. Paulo

Dados mostram dano econômico abaixo do esperado, mas alívio não chega a emprego

Com os resultados da indústria e do varejo relativos a março, vai se revelando um impacto menor que o esperado do agravamento da pandemia na atividade econômica. Tal como na Europa, a segunda onda de contágio no Brasil, trágica em casos e mortes, afetou menos a dinâmica de produção e consumo.

A expectativa de queda acentuada do Produto Interno Bruto no primeiro trimestre já se converte na possibilidade de modesto crescimento. A julgar pelos índices de mobilidade ao longo de abril, o restante do primeiro semestre também pode ser de retomada.

As razões passam por um certo aprendizado na manutenção de atividades durante as medidas de distanciamento. Como houve pouca recuperação dos setores mais afetados, como turismo e serviços, há pouco a retroceder agora.

Outro fenômeno importante é a mudança no padrão de demanda em favor de matérias-primas e bens, o que sustenta o agronegócio, a indústria e serviços associados. Mesmo com a queda de 2,4% em março, ante o mês anterior, o nível da produção se manteve 10,5% acima de março do ano passado.

É notável a retomada de setores mais formalizados, como mostra a criação de 837 mil vagas com carteira no primeiro trimestre.

A arrecadação de impostos, muito ancorada nestes segmentos, também apresenta dinâmica surpreendente —a coleta de tributos subiu 5,6% no primeiro trimestre, já descontada a inflação, em relação ao mesmo período de 2020.

Com o avanço da vacinação, apesar de toda a incompetência do governo, há possibilidade de que as atividades ainda deprimidas tenham melhor desempenho na segunda metade do ano.

Como a base do ano passado é débil, apenas a manutenção do nível de atividade do fim de 2020 já garantiria expansão do PIB de 3,6%. Os dados recentes sugerem a possibilidade de um número maior.

O risco de uma terceira onda de contágio existe, ainda mais pela abertura talvez prematura nas últimas semanas, mas o padrão observado até aqui sugere que a economia pode continuar crescendo.

Nem tudo são notícias alvissareiras, contudo. O padrão da retomada é problemático, porque não abarca os empregos informais. Permanece a perspectiva de que a melhora não levará a uma queda célere do desemprego e será insuficiente para reverter a tendência de aumento da desigualdade. A pobreza permanecerá em pauta.

Ciência ainda não foi convocada para CPI da Covid

O Globo

Desde que começaram os depoimentos na CPI da Covid, a cloroquina tem assumido papel de destaque. A ponto de a senadora Simone Tebet (MDB-MS) perguntar se aquela era a “CPI da Cloroquina”. Ao longo da semana, em que estiveram presentes os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e o atual, Marcelo Queiroga, praticamente não se falou de outra coisa. Só no Brasil se perde tanto tempo discutindo o tema.

Em artigo publicado no GLOBO em 18 de abril, a microbióloga Natália Pasternak e o infectologista Mauro Schechter encerram a questão: “Quando todos os 35 estudos prospectivos existentes na literatura são considerados, não só a cloroquina foi ineficaz, como seu uso se associou com maior risco de óbito”. Se, no início da pandemia, ainda podia haver dúvidas sobre a eficácia, elas não existem mais. Em março deste ano, a OMS fez “forte recomendação” contra o uso de cloroquina no tratamento do novo coronavírus.

No Brasil, o assunto só ganhou destaque porque o uso da cloroquina virou uma obsessão do presidente Jair Bolsonaro, que se transformou em garoto-propaganda do medicamento. Mal assessorado, viu nele e noutra invenção sem respaldo científico batizada “tratamento precoce” uma espécie de poção mágica para a retomada rápida das atividades econômicas. Pura ilusão. Chegou a protagonizar uma cena patética em que mostrava caixas de cloroquina às emas do Alvorada.

Claro que o tema tem relevância para a CPI, já que a sandice foi transformada em política pública. O laboratório do Exército passou a produzir toneladas de cloroquina, torrando dinheiro público com um medicamento sabidamente ineficaz. Enquanto Manaus em colapso demandava oxigênio em meio a estoques críticos, o Ministério da Saúde oferecia cloroquina. Pelos depoimentos tomados até agora, fica claro que havia como que um ministério paralelo, que mandava produzir cloroquina e forjava protocolos para tratar pacientes à revelia do ministério oficial. Mandetta, Teich e Queiroga disseram não ter conhecimento da produção de cloroquina pelo governo. Trata-se da questão mais próxima do presidente a que a CPI conseguiu chegar.

Ao mesmo tempo, há um despreparo evidente dos senadores para tratar a ciência. Diante de questionamentos estapafúrdios de Luis Carlos Heinze (PP-RS), Eduardo Girão (Podemos-CE) e outros integrantes da “bancada da cloroquina”, Mandetta fez uma explicação sumária de como funciona um teste clínico. Teich ensaiou uma miniaula de método científico. Ambos deixaram a desejar. O método científico, responsável por todo o avanço na medicina e na tecnologia que beneficia cada um daqueles senadores e cada um de nós, deveria ficar claro para todos. Não se trata de questão de opinião. Fatos ficam comprovados com o grau de probabilidade que a ciência permite dar (jamais absoluta). O resto é superstição, curandeirice e ignorância.

É ridículo que boa parte do tempo da CPI tenha sido gasto nessas discussões inócuas e constrangedoras. Se a comissão se transformar num embate de vozes contra ou a favor da cloroquina, prestará um enorme desserviço à sociedade — já basta o causado pelo presidente. Se conseguir trazer um pouco de luz aos brasileiros sobre o que é e como funciona a ciência, ainda que não se demonstre responsabilidade direta de Bolsonaro ou Pazuello, já terá ao menos servido para alguma coisa.

Governos deveriam ampliar apoio a comércio e serviços atingidos pela crise

O Globo

A crise nos setores de comércio e serviços, atingido em cheio pelos efeitos da pandemia, tem levado governos a anunciar diversos programas de ajuda. A última iniciativa no Brasil, promulgada com uma série de vetos pelo presidente Jair Bolsonaro, se destinou a dar alívio ao setor de eventos. No caso específico do comércio, atingido por um movimento de abre e fecha imprevisível, as medidas do governo se mostram insuficientes, por isso os empresários continuam a se queixar.

Não é sensata, em plena pandemia, a reivindicação para que as lojas possam voltar a operar plenamente sem nenhum tipo de cuidado. Enquanto os patamares de mortos e infectados continuarem elevados, não será possível relaxar. Em algumas cidades, lockdowns ainda podem ser necessários para evitar que os hospitais cheguem a uma situação crítica. A população precisa continuar a tomar todos os cuidados preventivos, como uso de máscaras, higiene nas mãos e evitar as aglomerações, frequentes em centros comerciais e outros estabelecimentos.

Por isso mesmo, o governo não deve deixar de tomar novas medidas que ajudem esses empresários, muitos de pequeno porte e com dificuldades de acesso à rede bancária. É evidente que as empresas têm razão em se queixar da falta de apoio. Quase 60 entidades representando bares, restaurantes, hotéis, entre outros segmentos do setor de serviços, acabam de publicar um comunicado que deixa claros os motivos.

Mesmo tendo adotado protocolos e ações para evitar aglomerações, seus estabelecimentos foram proibidos de abrir por seis meses ao todo. Reclamam da falta de critérios transparentes na aplicação dos lockdowns, que as leva a operar com menos de 50% da capacidade na maioria das cidades. Com razão, afirmam que, se o governo tivesse comprado vacinas no ano passado, a situação estaria “caminhando para a normalidade”. É fato, tanto que existe uma CPI para investigar essa e outras falhas e omissões do governo.

Donos de botequins, uma das tradições cariocas, já não conseguem voltar aos bancos porque estão inadimplentes. Os que não fecharam se endividam como pessoas físicas. De acordo com a Associação de Bares e Restaurantes (Abrasel) de São Paulo, na cidade foram fechados 12 mil estabelecimentos, enquanto no Rio 3 mil pontos estão de portas cerradas. No país, foi demitido algo como 1 milhão de pessoas no setor.

É necessário que o poder público amplie o leque de ações para conter essa quebradeira — e com rapidez. A nova versão do Pronampe, programa de auxílio a pequenas e microempresas, só agora foi aprovada na Câmara e ainda precisa ir ao Senado. Isenção ou corte de impostos é outro apoio a considerar, bem como programas de renegociação de dívidas com o Fisco (Refis).

Compreende-se a situação fiscal crítica de estados e municípios. Mas governadores e prefeitos também precisam ter consciência de que, sem ajuda tributária, setores que outrora foram importantes fontes de arrecadação sairão tão avariados da crise que poderão deixar de contribuir como antes.

Venda da Eletrobras será grande teste para Bolsonaro

Valor Econômico

As principais medidas para a educação apresentadas até agora pelo governo não parecem ter o poder de mudar o quadro ruim

O Brasil foi o país que mais vendeu empresas estatais nas últimas três décadas. Estima-se que, desde a primeira privatização - a da Usiminas, em 1991 -, o setor público como um todo tenha arrecadado o equivalente a US$ 150 bilhões (cerca de R$ 800 bilhões, de acordo com a taxa de câmbio de sexta-feira). O montante considera o que foi apurado na venda direta de companhias, bem como nos valores de outorga obtidos nas concessões de serviços públicos a empresas privadas.

É possível dividir as privatizações no país em três fases. A primeira, entre 1990 e 1994, se deu durante os governos Fernando Collor de Melo (1990-1992) e Itamar Franco (1992-1994), quando foi lançado o Programa Nacional de Desestatização (PND). Naquela época, para colocar uma estatal na lista de privatização, bastava ao presidente da República assinar decreto para incluir a empresa no PND, ressalvados os casos em que a Constituição ou outras leis vetem a venda de ativos específicos.

A segunda fase das desastatizações foi iniciada durante o governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, em especial com a regulamentação do Artigo 175 da Constituição. Este dispositivo permitiu que as privatizações alcançassem os setores de serviços e infraestrutura - até então, o governo vinha alienando empresas que produziam matérias-primas e bens intermediários, por exemplo, nos setores petroquímico e siderúrgico.

A terceira etapa das privatizações foi de 2003 a 2015, durante os governos Lula e Dilma. Foi o período de menor atividade nessa área, quando houve menos pragmatismo e um viés mais ideológico. Naquele período, o papel do Estado como provedor de bens voltou a ser considerado. Nos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), privatizou-se menos ainda do que nos cinco anos e cinco meses de sua sucessora, Dilma Rousseff (2011-2014 e 2015-2016).

É verdade, como diz Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho em capítulo do livro “A Reforma do Estado Brasileiro” (Atlas, 2020), organizado pelo economista Fabio Giambiagi, que, apesar da opção mais intervencionista, foi em 2004, durante a gestão Lula, que se aprovou a lei das Parcerias Público Privadas (PPPs), o que muitos consideraram um novo modelo de relacionamento do Estado com os investimentos privados. Dilma Rousseff, por sua vez, começou a privatizar aeroportos federais, iniciativa rejeitada por Lula em seu segundo mandato.

Entre 1990 e 2015, o resultado das privatizações atingiu US$ 106 bilhões, incluindo os âmbitos federal e estadual - e não apenas com as receitas advindas da venda dos ativos, mas também com as dívidas transferidas aos compradores. Foram alienadas 72 participações entre empresas controladas (32), participações minoritárias (26), concessões (7) e arrendamentos (7), sem contar toda a venda do Sistema Telebrás, as outorgas de concessões de aproveitamentos hidroelétricos, linhas de transmissão, rodovias federais e aeroportos.

O presidente Jair Bolsonaro chegou a Brasília com o discurso de que seu governo seria o mais liberal já visto na história do país. Em dois anos e quase quatro meses de gestão, porém, o que se viu foi a venda de apenas três estatais - a TAG (por R$ 33,5 bilhões), a BR Distribuidora (R$ 9,6 bilhões) e a Refinaria Landulpho Alves (R$ 8,8 bilhões). As três operações, todavia, faziam parte da política de desinvestimento que a Petrobras começou a colocar em prática no início de 2015, ainda na gestão Dilma, e que depois tomou corpo durante o governo Michel Temer (2016-2018).

O grande teste de Bolsonaro será a venda da Eletrobras, holding que detém o controle acionário das estatais federais de energia elétrica. Na semana passada, técnicos do governo calcularam que todo o processo de venda da empresa - outorga, fatia da União no capital da companhia e venda subsequente de ações no mercado secundário - pode gerar R$ 100 bilhões. A privatização da estatal ainda precisa ser aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, em votação de medida provisória enviada pelo governo no fim de fevereiro.

As privatizações se justificam por pelo menos duas razões. A primeira é que, passando a atuar num ambiente privado, as empresas têm incentivo para se tornarem muito mais eficientes do que são hoje. Isso aumenta o faturamento e o lucro e, portanto, a arrecadação de tributos. Além disso, mais eficientes, as ex-estatais ajudam a aumentar a produtividade da economia e, assim, a capacidade do país de crescer a taxas mais altas sem provocar inflação.

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