Com
todas as letras
O
Estado de S. Paulo
Jair
Bolsonaro diz que não haverá eleição sem votos impressos e chamou País de
“republiqueta”. Difícil imaginá-lo passando a faixa presidencial a quem quer
que seja
O presidente Jair Bolsonaro classificou o Brasil como “republiqueta”. É espantoso que o político a quem foi conferida pelos eleitores a nobre tarefa de governar o Brasil tenha uma opinião tão desairosa sobre o País. A República brasileira tem muitos problemas – e em vários momentos, graças, sobretudo, a Bolsonaro, de fato se parece muito com uma republiqueta –, mas aqui ainda há uma Constituição, há instituições democráticas e há liberdade. E é justamente por ter esse sólido arcabouço democrático que os reptos autoritários de Bolsonaro, por mais tumulto que causem, serão, como têm sido, serenamente repelidos.
Isso
não significa que o presidente se sinta dissuadido e afinal pare de desafiar a
ordem constitucional que jurou respeitar ao tomar posse. Na mesma ocasião em
que demonstrou seu desprezo pela República, Bolsonaro avisou que, se não for
aprovado o “voto impresso” em lugar da urna eletrônica, “não vai ter eleição”
no ano que vem.
“Ninguém mais aceita esse voto que está aí. Como é que vai falar que esse voto é preciso, legal, justo e não fraudado? A única republiqueta do mundo é a nossa, que aceita essa porcaria de voto eletrônico. Tem que ser mudado. E digo mais: se o Parlamento aprovar e promulgar, vai ter voto impresso em 2022, e ponto final. Não vou nem falar mais nada. Vai ter voto impresso. Se não tiver voto impresso, é sinal de que não vai ter eleição. Acho que o recado está dado”, disse Bolsonaro.
Não
é a primeira vez que Bolsonaro lança dúvidas sobre a lisura das eleições com
urnas eletrônicas. Frequentemente declara ter certeza de que a eleição
presidencial de 2018 foi fraudada para impedir que ele vencesse já no primeiro
turno. Em março de 2020, chegou a dizer que tinha “provas” dessa fraude e que
as apresentaria “brevemente”. Mais de um ano se passou e as “provas”,
obviamente inexistentes, não foram mostradas.
Bolsonaro
segue incansável em sua campanha contra as urnas eletrônicas, a despeito dos
inúmeros atestados de que o sistema é confiável, mas agora foi bem mais longe.
Com todas as letras, ameaçou tumultuar a própria realização das eleições.
O
presidente e seus fanáticos camisas pardas acalentam essa ideia há muito tempo,
mas o projeto liberticida ganhou força com a tentativa de golpe liderada por
Donald Trump, ídolo de Bolsonaro, nos Estados Unidos. Na campanha pela
reeleição, o então presidente Trump disse diversas vezes que só perderia se
houvesse fraude. Uma vez que as urnas indicaram sua derrota, Trump incitou seus
seguidores a contestar a votação e a invadir o Capitólio, sede do Congresso
norte-americano, para impedir a consagração do resultado.
É
sintomático que Bolsonaro tenha sido um dos últimos chefes de Estado a
reconhecer a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos e um dos únicos a
alinhar-se a Trump na contestação do resultado. Com isso, o presidente
brasileiro manteve coesa e excitada sua base radical, maravilhada com sua
ousadia de questionar a eleição de Biden, colocando sua agenda lunática acima
do bom senso, da etiqueta diplomática e do interesse público.
Esse
gesto temerário do presidente serviu para antecipar a estratégia bolsonarista
para a eleição de 2022. Na hipótese de derrota, está claro que Bolsonaro não
aceitará o desfecho – mesmo se houver o tal “voto impresso”. Na insanidade de
seus fanáticos seguidores, Bolsonaro encarna o povo, razão pela qual é simplesmente
impossível que esse povo escolha outro candidato.
Trata-se
de uma crise contratada desde que se elegeu presidente um homem que jamais
respeitou o Exército quando militar nem respeitou as instituições democráticas
quando parlamentar.
É
preciso uma grande dose de otimismo para imaginar Bolsonaro, veteraníssimo
provocador dos limites da democracia, passando a faixa presidencial a quem quer
que seja – especialmente se o vencedor da eleição for um dos muitos políticos
que ele trata como inimigos mortais. Sua escalada retórica praticamente impede
um recuo. “O recado está dado”, advertiu Bolsonaro. Seria imprudente ignorá-lo.
O
Estado de S. Paulo
Ação
obstinada de um cidadão legou à cidade de São Paulo o seu primeiro parque
linear
A obstinação e o espírito público de um cidadão legaram à cidade de São Paulo o seu primeiro parque linear. Em 2003, Hélio da Silva, um gerente comercial de 70 anos, natural de Procissão, no interior do Estado, começou a plantar mudas de árvores nas margens do Rio Tiquatira, na Penha, bairro da zona leste da capital paulista. Dezoito anos depois, o que parecia ser apenas uma despretensiosa ação isolada de um morador incomodado com o abandono da área deu origem ao Parque Linear Tiquatira, uma floresta com mais de 33 mil árvores de 160 espécies, que se espalham por quase quatro quilômetros de extensão ao longo das duas margens do rio.
“O
que fiz foi trazê-las (as árvores) de volta para cá. Podem não acreditar, mas,
quando as trouxe, o solo as reconheceu e tudo se transformou. É lúdico
(acompanhar) o negócio. Aqui era terra de ninguém e agora é isso aí”, disse seu
Hélio, como é conhecido no bairro, ao Estado.
As
árvores são quase todas nativas da Mata Atlântica. “Tem ingá, quaresmeira,
babosa, jequitibá, aroeira, salsa, pau-d’alho”, disse. Sem conhecimento técnico
formal, seu Hélio aplicou na plantação e conservação do parque que criou os
conhecimentos que adquiriu em pesquisas na internet e em conversas com outras
pessoas. “A cada 12 mudas plantadas, obrigatoriamente, uma tem de ser
frutífera”, explica. O objetivo é atrair os pássaros.
E,
de fato, eles vieram. De acordo com a Secretaria Municipal do Verde e do Meio
Ambiente, no local já foram observadas 45 espécies de aves, incluindo três
espécies endêmicas da Mata Atlântica, periquito-rico, teque-teque e
tiê-preto.
Hoje
o Parque Linear Tiquatira – Engenheiro Werner Zulauf está consolidado, criado
como tal por um decreto do ex-prefeito Gilberto Kassab, de 13 de agosto de
2008. Mas não foram poucas as dificuldades que seu Hélio teve de superar para
ver suas árvores crescerem frondosas. Houve desde sabotagem de pessoas que
arrancavam as primeiras mudas até ameaças de comerciantes que temiam que as
copas das árvores ofuscassem seus estabelecimentos ou se aborreciam com a perda
de uma área usada como estacionamento irregular. No entanto, nada foi capaz de
deter o espírito de um cidadão que acreditava no bem maior que fazia a si mesmo
e à sua comunidade.
O
desprendimento e a obstinação de seu Hélio por plantar cada vez mais árvores
podem ser medidos pela quantia de dinheiro do próprio bolso que investiu em
terra, adubo, ferramentas e mudas. “Em um ano, foram R$ 29 mil. Em outro, R$ 32
mil. No início, era menos. Mas é melhor não calcular essas coisas”, disse o
plantador de árvores.
A
ação de um único cidadão contribuiu para mudar completamente a realidade do
bairro onde mora. O crescimento do parque linear da Penha, segundo seu Hélio,
levou à valorização dos imóveis na região, além de tornar a temperatura local
um pouco mais amena. Seus vizinhos de bairro passaram a frequentar um local
antes degradado para a prática de atividades físicas. De acordo com a
organização do parque, cerca de 700 pessoas frequentam o local diariamente.
“Nada
mais fiz do que retribuir o que a cidade de São Paulo, onde vivo há mais de 60
anos, me deu”, disse seu Hélio. Para além do impacto positivo local, sua ação
serve como bom exemplo de cidadania e cuidado com o meio ambiente, em sentido
amplo, para todos os paulistanos. Esse cuidado com a cidade não é uma
prerrogativa exclusiva do poder público. Muito ao contrário, é uma
responsabilidade de cada munícipe, no limite de suas possibilidades.
Evidentemente,
são pouquíssimos os cidadãos que têm recursos financeiros para investir ao
longo de anos em projetos como o de seu Hélio. Mas há uma infinidade de ações
que independem de dinheiro para gerar efeitos positivos para a coletividade, a
começar pela própria conservação de parques como o idealizado por ele. Rios
urbanos, como o Tiquatira, sofrem com o descarte irregular de lixo, entulho e
esgoto. Ademais, no curso de uma pandemia, o mero uso correto de máscara que se
exige no parque já é sinal de civilidade e cuidado com o próximo que não custa
mais do que a boa vontade de cada um.
Deixando os dólares fugir
O
Estado de S. Paulo
Além
de assustar os investidores, o País tem sido incapaz de reter os dólares
O mercado mundial vai muito bem para o Brasil, com as grandes economias em recuperação e a China comprando volumes crescentes de alimentos e de minérios. Além disso, há muito dinheiro em circulação e investidores dispostos a buscar oportunidades no mundo emergente. Mas o País tem sido incapaz de reter boa parte dos dólares faturados com exportações e de atrair investimentos para acelerar sua expansão. O Brasil deve receber US$ 55 bilhões de investimentos diretos, neste ano, segundo estimativa do mercado captada em pesquisa do Banco Central (BC). Mas até essa estimativa, embora modesta quando comparada com resultados de uma década, parece otimista diante dos pífios valores acumulados nos últimos meses.
Com
baixo crescimento, mesmo depois de ultrapassada a recessão de 2015-2016, o País
ainda conservou algum atrativo para o investidor estrangeiro até o último ano
antes da pandemia. Mas esse atrativo tem declinado, por causa das indefinições
da política econômica, das incertezas quanto à evolução das contas oficiais e
da dívida pública e, de modo especial, de atitudes e orientações do presidente
Jair Bolsonaro. Sua política ambiental, tolerante e até favorável à devastação
de florestas e de outros ativos naturais, tem desencorajado a aplicação de
recursos no mercado brasileiro. Além disso, tem estimulado a fuga de capitais.
Tudo isso se reflete, por exemplo, na desvalorização excessiva do real.
O
Brasil contabilizou US$ 39,26 bilhões de investimentos diretos nos 12 meses até
março. Esse dinheiro foi mais que suficiente para cobrir o buraco das
transações correntes, no valor de US$ 17,83 bilhões no mesmo período. As
transações correntes são o resumo principal das transações externas (comércio
de bens, conta de serviços e movimento de rendas). Investimentos diretos são a
melhor forma de investimento estrangeiro, porque se destinam à atividade
empresarial e são menos voláteis que as aplicações no mercado de papéis, isto é,
de ações e títulos de dívida.
Esses
investimentos vêm declinando há mais de dois anos. Atingiram US$ 78,16 bilhões
em 2018, diminuíram para US$ 69,17 bilhões em 2019 e encolheram para US$ 34,17
bilhões em 2020, quando a pandemia afetou duramente a economia global e os
fluxos de capitais. Apesar de alguma recuperação, ainda se mantiveram, nos 12
meses terminados em março, bem abaixo dos volumes observados na fase anterior à
covid-19.
Também
o ingresso de recursos no mercado de papéis tem sido afetado. O volume oscila,
mas a insegurança dos investidores – nacionais e estrangeiros – é constante. As
incertezas tornam-se visíveis no mercado de ações, na determinação dos juros
futuros e, é claro, nas oscilações cambiais. Pelas condições do comércio
externo e pelo volume de reservas, o câmbio brasileiro poderia estar na
vizinhança de R$ 4,50 por dólar, dizem especialistas, mas dificilmente a moeda
americana é negociada abaixo de R$ 5,40.
O
Brasil poderia beneficiar-se muito mais do ciclo de alta dos produtos básicos.
A economia continua emperrada, os investimentos são insuficientes para
dinamizar o crescimento e o ganho das vendas externas escorre para fora. O País
tem feito muito menos que o necessário para reter os dólares e para atrair mais
investimentos, segundo declaração atribuída pelo site especializado
Investing.com a Drauzio Giacomelli, estrategista-chefe para mercados emergentes
do Deutsche Bank.
Entrevistado
pelo Estado, o estrategista-chefe da XP, Fernando Ferreira, apontou a
perda de importância do País para o investidor estrangeiro. Tendo reduzido sua
exposição, esse investidor hoje pode, se quiser, “ignorar o Brasil”. Para mudar
esse quadro, será preciso dar previsibilidade às condições econômicas e
financeiras.
Com
a insegurança, perdem-se investimentos e dinheiro já conquistado é mantido lá
fora. Exportadores, segundo se estima, deixam no exterior mais de US$ 40
bilhões. Quando se considera todo o dinheiro mantido em contas estrangeiras,
fala-se em cerca de meio trilhão de dólares. Isso é parte do custo da
incerteza.
Passando a limpo
Folha
de S. Paulo
Revogação
da LSN representa avanço, mas texto da Câmara ainda gera insegurança
Deve
ser reconhecido como um avanço o projeto da Câmara dos Deputados que revoga a
Lei de Segurança Nacional, aprovado a toque de caixa na última terça (4) e
agora submetido à análise do Senado.
Em
substituição à lei anacrônica editada nos estertores da ditadura militar e até
hoje vigente, o texto abre no Código Penal um novo capítulo para proteger as
instituições democráticas e a soberania do país contra ações criminosas.
Os
novos tipos penais são definidos com precisão que os distancia das normas
herdadas do período autoritário, reduzindo a margem para abusos como os que têm
ocorrido na aplicação da lei contra jornalistas e opositores políticos.
O
projeto pune atos violentos praticados com o objetivo de abolir o Estado de
Direito ou depor governos legalmente constituídos, mas busca evitar que
críticas legítimas e atos sem maiores consequências sejam tratados como graves
ameaças contra as instituições.
Enquadram-se
como atentados à soberania do país somente atos extremos, como negociações com
governos hostis, o uso de violência para desmembrar o território nacional ou a
entrega de documentos oficiais secretos a estrangeiros.
Punições
previstas para ofensas à honra do presidente da República e dos chefes dos
outros Poderes continuariam agravadas, mas deixariam de ser tratadas pela
legislação como se colocassem em xeque a estabilidade institucional do país.
Apesar
do pouco tempo de debate, que se encerrou após um mês e meio, houve um esforço
para acolher contribuições da sociedade e contemplar suas preocupações.
Causa
desconforto, entretanto, a inclusão no texto de uma seção específica para
tratar de crimes contra o processo eleitoral. Ela pode se tornar fonte de
grande insegurança jurídica se não houver correções e deveria ser objeto de
maior reflexão no Senado.
Com
linguagem genérica que dá margem a todo tipo de interpretação, um dos seus
dispositivos prevê até cinco anos de prisão para quem usar robôs e outros
artifícios para difundir “fatos que sabe inverídicos”, capazes de “comprometer
o processo eleitoral”.
Parece
grande o risco de o dispositivo ser usado para restringir a liberdade de
expressão e silenciar adversários em campanhas eleitorais. A proposta permite,
inclusive, que partidos políticos acionem a Justiça se o Ministério Público não
agir nesses casos.
Na
reta final dos debates, incluiu-se no projeto um artigo para esclarecer que os
novos tipos penais não se aplicam à atividade jornalística, a manifestações
críticas às instituições e outros atos protegidos pela Constituição. Que seja
necessário reafirmar o óbvio não deixa de ser um sinal dos tempos.
Retomada desigual
Folha
de S. Paulo
Dados
mostram dano econômico abaixo do esperado, mas alívio não chega a emprego
Com
os resultados da indústria e do varejo relativos a março, vai se revelando um
impacto menor que o esperado do agravamento da pandemia na atividade econômica.
Tal como na Europa, a segunda onda de contágio no Brasil, trágica em casos e
mortes, afetou menos a dinâmica de produção e consumo.
A
expectativa de queda acentuada do Produto Interno Bruto no primeiro trimestre
já se converte na possibilidade de modesto crescimento. A julgar pelos índices
de mobilidade ao longo de abril, o restante do primeiro semestre também pode
ser de retomada.
As
razões passam por um certo aprendizado na manutenção de atividades durante as
medidas de distanciamento. Como houve pouca recuperação dos setores mais
afetados, como turismo e serviços, há pouco a retroceder agora.
Outro
fenômeno importante é a mudança no padrão de demanda em favor de
matérias-primas e bens, o que sustenta o agronegócio, a indústria e serviços
associados. Mesmo com a queda de 2,4% em março, ante o mês anterior, o nível da
produção se manteve 10,5% acima de março do ano passado.
É
notável a retomada de setores mais formalizados, como mostra a criação de 837
mil vagas com carteira no primeiro trimestre.
A
arrecadação de impostos, muito ancorada nestes segmentos, também apresenta
dinâmica surpreendente —a coleta de tributos subiu 5,6% no primeiro trimestre,
já descontada a inflação, em relação ao mesmo período de 2020.
Com
o avanço da vacinação, apesar de toda a incompetência do governo, há
possibilidade de que as atividades ainda deprimidas tenham melhor desempenho na
segunda metade do ano.
Como
a base do ano passado é débil, apenas a manutenção do nível de atividade do fim
de 2020 já garantiria expansão do PIB de 3,6%. Os dados recentes sugerem a
possibilidade de um número maior.
O
risco de uma terceira onda de contágio existe, ainda mais pela abertura talvez
prematura nas últimas semanas, mas o padrão observado até aqui sugere que a
economia pode continuar crescendo.
Nem
tudo são notícias alvissareiras, contudo. O padrão da retomada é problemático,
porque não abarca os empregos informais. Permanece a perspectiva de que a
melhora não levará a uma queda célere do desemprego e será insuficiente para
reverter a tendência de aumento da desigualdade. A pobreza permanecerá em
pauta.
Ciência ainda não foi convocada para CPI da Covid
O
Globo
Desde que começaram os depoimentos na CPI da Covid, a cloroquina tem assumido papel de destaque. A ponto de a senadora Simone Tebet (MDB-MS) perguntar se aquela era a “CPI da Cloroquina”. Ao longo da semana, em que estiveram presentes os ex-ministros Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e o atual, Marcelo Queiroga, praticamente não se falou de outra coisa. Só no Brasil se perde tanto tempo discutindo o tema.
Em
artigo publicado no GLOBO em 18 de abril, a microbióloga Natália Pasternak e o
infectologista Mauro Schechter encerram a questão: “Quando todos os 35 estudos
prospectivos existentes na literatura são considerados, não só a cloroquina foi
ineficaz, como seu uso se associou com maior risco de óbito”. Se, no início da
pandemia, ainda podia haver dúvidas sobre a eficácia, elas não existem mais. Em
março deste ano, a OMS fez “forte recomendação” contra o uso de cloroquina no
tratamento do novo coronavírus.
No
Brasil, o assunto só ganhou destaque porque o uso da cloroquina virou uma
obsessão do presidente Jair Bolsonaro, que se transformou em garoto-propaganda
do medicamento. Mal assessorado, viu nele e noutra invenção sem respaldo
científico batizada “tratamento precoce” uma espécie de poção mágica para a
retomada rápida das atividades econômicas. Pura ilusão. Chegou a protagonizar
uma cena patética em que mostrava caixas de cloroquina às emas do Alvorada.
Claro
que o tema tem relevância para a CPI, já que a sandice foi transformada em
política pública. O laboratório do Exército passou a produzir toneladas de
cloroquina, torrando dinheiro público com um medicamento sabidamente ineficaz.
Enquanto Manaus em colapso demandava oxigênio em meio a estoques críticos, o
Ministério da Saúde oferecia cloroquina. Pelos depoimentos tomados até agora,
fica claro que havia como que um ministério paralelo, que mandava produzir
cloroquina e forjava protocolos para tratar pacientes à revelia do ministério
oficial. Mandetta, Teich e Queiroga disseram não ter conhecimento da produção
de cloroquina pelo governo. Trata-se da questão mais próxima do presidente a
que a CPI conseguiu chegar.
Ao
mesmo tempo, há um despreparo evidente dos senadores para tratar a ciência.
Diante de questionamentos estapafúrdios de Luis Carlos Heinze (PP-RS), Eduardo
Girão (Podemos-CE) e outros integrantes da “bancada da cloroquina”, Mandetta
fez uma explicação sumária de como funciona um teste clínico. Teich ensaiou uma
miniaula de método científico. Ambos deixaram a desejar. O método científico,
responsável por todo o avanço na medicina e na tecnologia que beneficia cada um
daqueles senadores e cada um de nós, deveria ficar claro para todos. Não se
trata de questão de opinião. Fatos ficam comprovados com o grau de
probabilidade que a ciência permite dar (jamais absoluta). O resto é
superstição, curandeirice e ignorância.
É
ridículo que boa parte do tempo da CPI tenha sido gasto nessas discussões
inócuas e constrangedoras. Se a comissão se transformar num embate de vozes
contra ou a favor da cloroquina, prestará um enorme desserviço à sociedade — já
basta o causado pelo presidente. Se conseguir trazer um pouco de luz aos
brasileiros sobre o que é e como funciona a ciência, ainda que não se demonstre
responsabilidade direta de Bolsonaro ou Pazuello, já terá ao menos servido para
alguma coisa.
Governos
deveriam ampliar apoio a comércio e serviços atingidos pela crise
O
Globo
A crise nos setores de comércio e serviços, atingido em cheio pelos efeitos da pandemia, tem levado governos a anunciar diversos programas de ajuda. A última iniciativa no Brasil, promulgada com uma série de vetos pelo presidente Jair Bolsonaro, se destinou a dar alívio ao setor de eventos. No caso específico do comércio, atingido por um movimento de abre e fecha imprevisível, as medidas do governo se mostram insuficientes, por isso os empresários continuam a se queixar.
Não
é sensata, em plena pandemia, a reivindicação para que as lojas possam voltar a
operar plenamente sem nenhum tipo de cuidado. Enquanto os patamares de mortos e
infectados continuarem elevados, não será possível relaxar. Em algumas cidades,
lockdowns ainda podem ser necessários para evitar que os hospitais cheguem a
uma situação crítica. A população precisa continuar a tomar todos os cuidados
preventivos, como uso de máscaras, higiene nas mãos e evitar as aglomerações,
frequentes em centros comerciais e outros estabelecimentos.
Por
isso mesmo, o governo não deve deixar de tomar novas medidas que ajudem esses
empresários, muitos de pequeno porte e com dificuldades de acesso à rede
bancária. É evidente que as empresas têm razão em se queixar da falta de apoio.
Quase 60 entidades representando bares, restaurantes, hotéis, entre outros
segmentos do setor de serviços, acabam de publicar um comunicado que deixa claros
os motivos.
Mesmo
tendo adotado protocolos e ações para evitar aglomerações, seus
estabelecimentos foram proibidos de abrir por seis meses ao todo. Reclamam da
falta de critérios transparentes na aplicação dos lockdowns, que as leva a
operar com menos de 50% da capacidade na maioria das cidades. Com razão,
afirmam que, se o governo tivesse comprado vacinas no ano passado, a situação
estaria “caminhando para a normalidade”. É fato, tanto que existe uma CPI para
investigar essa e outras falhas e omissões do governo.
Donos
de botequins, uma das tradições cariocas, já não conseguem voltar aos bancos
porque estão inadimplentes. Os que não fecharam se endividam como pessoas
físicas. De acordo com a Associação de Bares e Restaurantes (Abrasel) de São
Paulo, na cidade foram fechados 12 mil estabelecimentos, enquanto no Rio 3 mil
pontos estão de portas cerradas. No país, foi demitido algo como 1 milhão de
pessoas no setor.
É
necessário que o poder público amplie o leque de ações para conter essa
quebradeira — e com rapidez. A nova versão do Pronampe, programa de auxílio a
pequenas e microempresas, só agora foi aprovada na Câmara e ainda precisa ir ao
Senado. Isenção ou corte de impostos é outro apoio a considerar, bem como
programas de renegociação de dívidas com o Fisco (Refis).
Compreende-se
a situação fiscal crítica de estados e municípios. Mas governadores e prefeitos
também precisam ter consciência de que, sem ajuda tributária, setores que
outrora foram importantes fontes de arrecadação sairão tão avariados da crise
que poderão deixar de contribuir como antes.
Venda da Eletrobras será grande teste para Bolsonaro
Valor
Econômico
As
principais medidas para a educação apresentadas até agora pelo governo não
parecem ter o poder de mudar o quadro ruim
O
Brasil foi o país que mais vendeu empresas estatais nas últimas três décadas.
Estima-se que, desde a primeira privatização - a da Usiminas, em 1991 -, o
setor público como um todo tenha arrecadado o equivalente a US$ 150 bilhões
(cerca de R$ 800 bilhões, de acordo com a taxa de câmbio de sexta-feira). O
montante considera o que foi apurado na venda direta de companhias, bem como
nos valores de outorga obtidos nas concessões de serviços públicos a empresas
privadas.
É
possível dividir as privatizações no país em três fases. A primeira, entre 1990
e 1994, se deu durante os governos Fernando Collor de Melo (1990-1992) e Itamar
Franco (1992-1994), quando foi lançado o Programa Nacional de Desestatização
(PND). Naquela época, para colocar uma estatal na lista de privatização,
bastava ao presidente da República assinar decreto para incluir a empresa no
PND, ressalvados os casos em que a Constituição ou outras leis vetem a venda de
ativos específicos.
A
segunda fase das desastatizações foi iniciada durante o governo Fernando Henrique
Cardoso, em 1995, em especial com a regulamentação do Artigo 175 da
Constituição. Este dispositivo permitiu que as privatizações alcançassem os
setores de serviços e infraestrutura - até então, o governo vinha alienando
empresas que produziam matérias-primas e bens intermediários, por exemplo, nos
setores petroquímico e siderúrgico.
A
terceira etapa das privatizações foi de 2003 a 2015, durante os governos Lula e
Dilma. Foi o período de menor atividade nessa área, quando houve menos
pragmatismo e um viés mais ideológico. Naquele período, o papel do Estado como
provedor de bens voltou a ser considerado. Nos dois mandatos de Luiz Inácio
Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), privatizou-se menos ainda do que nos
cinco anos e cinco meses de sua sucessora, Dilma Rousseff (2011-2014 e
2015-2016).
É
verdade, como diz Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho em capítulo do livro “A
Reforma do Estado Brasileiro” (Atlas, 2020), organizado pelo economista Fabio
Giambiagi, que, apesar da opção mais intervencionista, foi em 2004, durante a
gestão Lula, que se aprovou a lei das Parcerias Público Privadas (PPPs), o que
muitos consideraram um novo modelo de relacionamento do Estado com os
investimentos privados. Dilma Rousseff, por sua vez, começou a privatizar
aeroportos federais, iniciativa rejeitada por Lula em seu segundo mandato.
Entre
1990 e 2015, o resultado das privatizações atingiu US$ 106 bilhões, incluindo
os âmbitos federal e estadual - e não apenas com as receitas advindas da venda
dos ativos, mas também com as dívidas transferidas aos compradores. Foram
alienadas 72 participações entre empresas controladas (32), participações
minoritárias (26), concessões (7) e arrendamentos (7), sem contar toda a venda
do Sistema Telebrás, as outorgas de concessões de aproveitamentos
hidroelétricos, linhas de transmissão, rodovias federais e aeroportos.
O
presidente Jair Bolsonaro chegou a Brasília com o discurso de que seu governo
seria o mais liberal já visto na história do país. Em dois anos e quase quatro
meses de gestão, porém, o que se viu foi a venda de apenas três estatais - a
TAG (por R$ 33,5 bilhões), a BR Distribuidora (R$ 9,6 bilhões) e a Refinaria
Landulpho Alves (R$ 8,8 bilhões). As três operações, todavia, faziam parte da
política de desinvestimento que a Petrobras começou a colocar em prática no
início de 2015, ainda na gestão Dilma, e que depois tomou corpo durante o
governo Michel Temer (2016-2018).
O
grande teste de Bolsonaro será a venda da Eletrobras, holding que detém o
controle acionário das estatais federais de energia elétrica. Na semana
passada, técnicos do governo calcularam que todo o processo de venda da empresa
- outorga, fatia da União no capital da companhia e venda subsequente de ações
no mercado secundário - pode gerar R$ 100 bilhões. A privatização da estatal
ainda precisa ser aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, em votação
de medida provisória enviada pelo governo no fim de fevereiro.
As privatizações se justificam por pelo menos duas razões. A primeira é que, passando a atuar num ambiente privado, as empresas têm incentivo para se tornarem muito mais eficientes do que são hoje. Isso aumenta o faturamento e o lucro e, portanto, a arrecadação de tributos. Além disso, mais eficientes, as ex-estatais ajudam a aumentar a produtividade da economia e, assim, a capacidade do país de crescer a taxas mais altas sem provocar inflação.
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