terça-feira, 11 de maio de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

Regime de liberdade

O Estado de S. Paulo

Decisão do TSE lembra que a necessária e constitucional liberdade de expressão não significa autorização para cometer crimes

Por um placar de 4 a 3, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condenou recentemente um contador do Maranhão por propaganda eleitoral antecipada de cunho negativo contra o governador Flávio Dino (PCdoB). Em 2018, o sr. Everildo Bastos Gomes publicou, em sua conta no Instagram, um vídeo no qual Flávio Dino era chamado de ladrão e caracterizado como nazista.

A decisão do TSE é controvertida, especialmente pelo enquadramento jurídico dado ao caso. Como advertiu o presidente da Corte eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto vencido, tratar como propaganda antecipada negativa “qualquer manifestação prejudicial a possível pré-candidato por cidadãos comuns transformaria a Justiça Eleitoral na moderadora permanente das críticas políticas na internet”.

De toda forma, a decisão do TSE lembra um aspecto importante – e muito esquecido nos tempos atuais – sobre as liberdades fundamentais. A necessária e constitucional liberdade de expressão não significa autorização para cometer crimes.

São realidades diferentes, com consequências jurídicas inteiramente distintas. Uma coisa é o direito constitucionalmente protegido de expressar opinião, por mais crítica que seja; outra bem diferente é agredir ou ameaçar, seja por meio de palavras, mensagens ou vídeos.

Em último termo, compete ao Judiciário reconhecer essa diferença, tanto para proteger a liberdade de expressão e de opinião como para punir as condutas criminosas. Mas a distinção dessas duas realidades não é apenas tarefa da Justiça. O exercício da cidadania envolve diferenciar criteriosamente o que é liberdade de expressão e o que constitui crime.

Fazer essa diferenciação é especialmente relevante nos tempos atuais, em que todos os dias se recebem inúmeras mensagens, publicações e vídeos. Há liberdade de expressão, mas nem tudo o que se recebe no celular e em outros meios pode ou deve ser compartilhado. Por exemplo, no caso julgado pelo TSE, o sr. Everildo Bastos Gomes não foi o autor do material ofensivo. Segundo relatou ao Estado, ele recebeu o vídeo num grupo de WhatsApp e depois o publicou em sua conta no Instagram – e foi precisamente esse compartilhamento que motivou a condenação.

A Constituição de 1988 é pródiga na proteção das liberdades de expressão e de opinião. O art. 5.º assegura que “é livre a manifestação do pensamento”, assim como “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Esse último dispositivo serviu de base, por exemplo, para a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a impossibilidade de censura prévia sobre biografias. “Cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição”, disse a ministra Cármen Lúcia no julgamento. 

É livre a manifestação do pensamento, mas – e aqui está o cerne da questão – não cabe cometer um crime contra a honra de terceiro (calúnia, injúria ou difamação) e alegar que estava apenas “manifestando o pensamento”. Também não cabe cometer um crime contra a liberdade individual (ameaçar, por exemplo) e justificar-se dizendo que estava apenas exercendo sua liberdade política.

Num regime de liberdade, tal como vigora no Brasil após a Constituição de 1988, não existe crime de opinião. Cada um pode ter suas ideias e convicções, por mais estranhas que pareçam aos olhos dos outros, e tem o direito de defendê-las e difundi-las. No entanto, isso não autoriza, por exemplo, agredir quem quer que seja ou impedir o livre funcionamento das instituições democráticas.

Nessa tarefa de distinguir o que é liberdade de expressão e o que é atividade criminosa, o Estado deve ser liberal, sem interpretações restritivas de direitos. Mas também não pode ser ingênuo, o que colocaria em risco a liberdade de todos. Vale lembrar que, num utópico sistema de liberdade absoluta, simplesmente não haveria liberdade. O regime de liberdade é precisamente aquele que, com base em critérios e limites definidos em lei, diferencia o que é exercício da liberdade e o que é agressão, ameaça ou ofensa.

Lições da tragédia do Jacarezinho

O Estado de S. Paulo

Tragédia deixou claro que a estratégia de ‘guerra ao tráfico’ é errada

Entre as lições a serem extraídas da desastrosa operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro realizada quinta-feira passada na favela do Jacarezinho, na zona norte da cidade, e que culminou com 29 mortos contabilizados até agora, duas merecem destaque. 

A primeira lição decorre do julgamento prévio que as autoridades policiais e dirigentes governamentais fizeram, justificando o banho de sangue pelo fato de as vítimas serem pessoas já condenadas pela Justiça. “Tudo bandido”, disse o vice-presidente Hamilton Mourão no dia seguinte ao da tragédia, sem dispor de qualquer prova que fundamentasse essa afirmação. Também classificou a operação como “normal” e afirmou que “as quadrilhas do narcotráfico são verdadeiras narcoguerrilhas”. 

A exemplo do que disse o vice-presidente da República, as autoridades policiais do governo do Rio de Janeiro também afirmaram que as vítimas da operação, a mais letal já realizada na cidade, eram pessoas violentas. Com isso, tentaram se eximir da acusação de que teriam exorbitado de suas prerrogativas. Contudo, as investigações posteriores à tragédia promovidas pelo próprio governo estadual revelaram o oposto. Dos 29 mortos, pelo menos 13 não tinham passagem pela polícia e, muito menos, qualquer relação com a investigação que vinha sendo feita pela Polícia Civil fluminense. Em outras palavras, eram pessoas inocentes que foram condenadas à morte apenas por serem pobres, negras e faveladas. Por causa do julgamento precipitado tanto de Mourão quanto das autoridades policiais fluminenses, defensores públicos e entidades da sociedade civil já anunciaram que levarão o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em Genebra, o Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas também já pediu uma investigação independente, após classificar como “brutal”, “desproporcional” e “desnecessário” o uso da força na operação da favela do Jacarezinho. 

A outra lição decorre do fato de que a tragédia do Jacarezinho foi provocada pela estratégia de confronto indiscriminado que é adotada há muito tempo pelas Polícias Civil e Militar de todo o País, em matéria de repressão ao tráfico. Por ser ineficiente, levar a abusos e banalizar a violência, essa estratégia sempre foi criticada por especialistas em segurança pública. Coordenado pela socióloga Julita Lemgruber, que já dirigiu o Departamento do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, o estudo mais recente sobre essa ineficiência foi divulgado há cinco semanas. Publicado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), o documento chega à conclusão de que o combate ao narcotráfico no Rio de Janeiro vem sendo realizado sem levar em conta a correlação entre custo financeiro, segurança da população e obtenção de resultados. 

A pesquisa foi feita com base numa metodologia desenvolvida há alguns anos pela Universidade Harvard, com o objetivo de escrutinar o gasto de US$ 41,2 bilhões do governo americano com medidas antidrogas. O estudo do CESeC constatou que, apesar de o governo fluminense ter gastado R$ 1 bilhão em ações contra traficantes em 2017, os resultados ficaram muito aquém do esperado. Entre outros motivos, porque os órgãos policiais se limitaram a reprimir o varejo nas favelas, em vez de tentar chegar ao sistema financeiro das grandes quadrilhas. O levantamento também mostrou que os órgãos policiais do Rio costumam ocultar dados relativos à segurança pública. 

“Pouco se discute a ineficiência policial e o custo financeiro à sociedade. Não quero dizer que a preocupação com a dor e o sofrimento gerados não sejam grandes. Mas, em um momento de crise financeira e sanitária, é mais importante do que nunca saber como o orçamento público é drenado para áreas que, em vez de salvar vidas, provocam mais perdas”, concluiu Lemgruber.

A operação policial realizada quinta-feira passada na favela do Jacarezinho comprovou tragicamente, como se viu, que a advertência dos pesquisadores do CESeC sobre a ineficiência da política de “guerra ao tráfico” no Rio de Janeiro era não só procedente e oportuna, mas necessária. 

União contra um problema global

O Estado de S. Paulo

Suspensão das patentes é bem-vinda para aumentar a oferta de vacinas

O presidente Joe Biden está determinado a reposicionar os Estados Unidos como país líder de iniciativas de cooperação internacional para o enfrentamento de problemas globais, papel perdido durante a administração isolacionista de seu antecessor. Há poucas semanas, Biden reuniu os líderes de 40 países para discutir planos de contenção das mudanças climáticas. Agora, diante da outra grande ameaça global, a pandemia de covid-19, o presidente americano promoveu uma inflexão histórica no posicionamento dos EUA sobre patentes farmacêuticas, o que pode levar à mudança de posição de outras nações.

No dia 5 passado, a representante comercial dos EUA, a embaixadora Katherine Tai, anunciou a decisão do governo americano de apoiar a suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas contra a covid-19, pleito capitaneado pela Índia e pela África do Sul no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) e apoiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O objetivo é facilitar a transferência de tecnologia e aumentar a disponibilidade de vacinas contra o coronavírus nos países pobres e em desenvolvimento.

A mudança de posição do governo americano é histórica porque, tradicionalmente, os EUA nem sequer admitiam discutir quebra de patentes, haja vista que as maiores empresas farmacêuticas e de tecnologia do mundo são americanas. Não foi surpresa, portanto, a reação negativa da chamada Big Pharma à mudança de tom da Casa Branca.

“Esta é uma crise de saúde global e as circunstâncias extraordinárias da pandemia de covid-19 exigem medidas extraordinárias. O governo (Biden) acredita fortemente nas proteções da propriedade intelectual, mas, em um esforço para acabar com esta pandemia, apoia a suspensão dessas proteções em relação às vacinas”, disse Tai. A embaixadora afirmou ainda que seu país vai “participar ativamente” das negociações na OMC para permitir que os objetivos almejados com a suspensão das patentes sobre vacinas sejam alcançados.

A União Europeia (UE), onde também estão grandes empresas farmacêuticas e, por esta razão, também sempre manifestou posição contrária à quebra de patentes, parece inclinada a seguir a nova direção de Washington. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que a suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre vacinas “pode ser uma das soluções pragmáticas e eficazes” para aumentar a taxa de imunização contra o coronavírus em todo o mundo.

O Brasil, que vinha mantendo posição contrária à quebra de patentes das vacinas, “recebeu com satisfação a disposição dos EUA para negociar, no âmbito da OMC, solução multilateral que contribua para o combate à covid-19”. Após se reunir com a embaixadora Tai, no dia 7 passado, o chanceler Carlos França afirmou que o governo brasileiro “discutirá, em maior profundidade, com os EUA sua nova posição e suas implicações práticas para facilitar amplo e urgente acesso a vacinas e medicamentos no combate à covid-19”.

Há dúvidas razoáveis sobre o efeito prático da suspensão das patentes das vacinas. As nações em desenvolvimento terão condições de produzir com rapidez imunizantes tecnicamente complexos como os da Pfizer e da Moderna, por exemplo, que têm como base tecnológica o RNA mensageiro do coronavírus? Hoje, o Brasil tem capacidade para produzir duas vacinas, a Coronavac (Instituto Butantan) e a Covishield (Fiocruz), ambas de tecnologia menos complexa. Ainda assim, há dificuldades de produção local, causadas, em boa medida, pelos conflitos que o presidente Jair Bolsonaro estimula contra a China, grande fornecedor dos insumos para a produção desses imunizantes.

Não obstante essas dificuldades práticas, a suspensão das patentes é uma iniciativa muito bem-vinda. Como disse o senador José Serra (PSDB-SP), com a autoridade de quem atuou, como ministro da Saúde, para eliminar patentes de antivirais que fizeram do Brasil referência no tratamento da aids, “vivemos um momento atípico e lucros exacerbados não podem estar acima da vida”.

 Além da Covid

Folha de S. Paulo

Desastre educacional na pandemia exige planos para a recuperação do aprendizado

O fechamento prolongado das escolas prejudicou de modo grave o aprendizado, elevou o risco de abandono dos estudos e aumentou a desigualdade educacional.

É o que mostra amplo estudo de pesquisadores da Universidade de Zurique e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, em parceria com a Secretaria de Educação paulista. A escola fechada também piora as perspectivas de futuro dos estudantes e problemas como fome e violência contra crianças.

A educação a distância, embora útil em determinadas situações, não pode ser uma solução num país em que milhões de estudantes não têm acesso ao menos a equipamentos e serviços de internet.
Pode ser um instrumento auxiliar, mas depende do ensino presencial. Mesmo o acesso às aulas remotas aumentou quando foram reabertas as escolas físicas.

O estudo paulista mostrou que o fechamento provocou a regressão até de anos de aprendizado. Buscar tais crianças e jovens e recuperar o tempo perdido não costuma ser tarefa fácil. Menos ainda será em um país empobrecido pela pandemia, mas terá de ser feito.

Quais os planos para atenuar o problema? Que apoio, ao menos institucional, o governo federal pretende oferecer? Obviamente trata-se de pergunta retórica, pois o Ministério da Educação vem sendo destruído pelo governo de Jair Bolsonaro. De qualquer modo, ainda não há debate nacional.

O desastre no aprendizado não é, além do mais, o único dos danos colaterais causados pelo coronavírus e pela incúria das autoridades. Ante uma administração que ainda hoje sabota as medidas sanitárias, parece inútil lembrar que cuidar dos vivos quer dizer também dar atenção aos alquebrados pela Covid-19 e pela crise social.

Milhões de pessoas devem sofrer em algum grau da chamada “Covid longa”, sequelas ou persistências da doença. Milhões também tiveram sua saúde prejudicada de outro modo por causa da lotação dos serviços médicos, dedicados à emergência epidêmica.

O risco de surtos da doença permanecerá mesmo depois de contida sua disseminação. O risco de outras epidemias também —recorde-se que este é um país de dengue, febre amarela, malária, zika e chikungunya. O espalhamento de agentes patogênicos é favorecido por más condições sanitárias, de habitação e de transporte público.

Ficou evidente que agentes de saúde familiar podem antecipar crises, rastrear doentes e disseminar informação. Mas é necessário um planejamento que contemple a nova realidade —ou as consequências da negligência nacional serão ainda mais calamitosas.

Diplomacia da cloroquina

Folha de S. Paulo

Mobilização do Itamaraty em busca de remédio ineficaz deve ser alvo da CPI

Avolumam-se as provas dos desmandos do governo federal na gestão da pandemia. Os esforços para obter, produzir e distribuir cloroquina e sua variante hidroxicloroquina vão se configurando no caso mais evidente em que a administração Jair Bolsonaro foi além da incompetência e até da negligência.

Documentos obtidos pela Folha acrescentam elementos a esse enredo aterrador, um dos alvos da CPI do Senado. Uma série de telegramas expedidos em 2020 pelo Ministério das Relações Exteriores, então sob Ernesto Araújo, mostra que a pasta mobilizou o aparato diplomático para garantir o fornecimento das substâncias ao país.

A saga teve início em 26 de março, quando o Itamaraty determinou que diplomatas buscassem sensibilizar o governo da Índia, que então restringia a exportação dessas drogas, “para a urgência da liberação (...) dos bens encomendados” por empresas nacionais.

O telegrama foi enviado na mesma data em que Bolsonaro declarou, numa reunião do G20, que haveria “testes bem-sucedidos, em hospitais brasileiros, com a utilização de hidroxicloroquina”.

Ocorre que não apenas inexistiam os tais bons resultados como nada justificava a urgência do pedido.

Àquela altura, a hidroxicloroquina poderia ser classificada, no máximo, como promissora, status compartilhado por outras tantas drogas em fase de testes.

Nos meses seguintes, a ineficácia da substância tornou-se cada vez mais patente. Diversas associações médicas passaram a desaconselhar seu uso, e a OMS acabou suspendendo os testes.
Mesmo assim, até junho, inúmeras mensagens de teor semelhante continuaram a ser enviadas aos diplomatas no exterior.

O próprio Bolsonaro, que num destampatório recente chamou de canalhas os que se opõem à prescrição da droga, envolveu-se na questão. Um telegrama de 4 de abril informa que ele fez um “apelo humanitário” ao primeiro-ministro indiano pela liberação de carregamentos de hidroxicloroquina.

Trata-se, a esta altura, de charlatanismo financiado com dinheiro público e apoio do aparato do Estado —e que põe em risco a saúde da população. A ofensiva contrasta com o pouco empenho na busca de mais vacinas. Até novembro, o ministério não havia enviado instruções nesse sentido.

O falastrão Araújo, dado a teorias conspiratórias, terá a tarefa inglória de justificar tais atos em depoimento à CPI. Bolsonaro, de fato, não precisa de adversários.

CPI deve investigar ação pró-cloroquina do Itamaraty

O Globo

Ficou claro em janeiro deste ano, por uma revelação da revista “Época”, o papel ativo do Itamaraty e da embaixada brasileira em Nova Délhi em negociações com a Índia para comprar insumos destinados à produção de cloroquina no Brasil. O próprio ex-chanceler Ernesto Araújo afirmara ano passado que sua pasta fazia esforços para ampliar a importação do remédio, que desde o primeiro semestre de 2020 se sabe ser ineficaz contra Covid-19.

Depois da publicação, pelo jornal “Folha de S.Paulo”, do conteúdo de telegramas comprovando a dedicação do Itamaraty à compra da droga inútil, o depoimento de Araújo marcado para quinta-feira deverá se transformar no novo foco da CPI da Covid, que também deverá investigar por que a droga passou a ser fabricada aos borbotões nos laboratórios do Exército.

A mobilização de Araújo, revelam os telegramas, foi intensa para comprar um medicamento não só ineficaz para combater o coronavírus, mas também capaz de provocar perigosos efeitos colaterais. Bolsonaro fez da cloroquina uma ideia fixa. Seu governo chegou ao ponto, como relatou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta na CPI, de pensar em forçar por decreto a inclusão da prescrição para Covid-19 na bula da cloroquina. O sucessor de Mandetta, Nelson Teich, que ficou menos de um mês na pasta, relatou à CPI que o motivo decisivo para seu pedido de demissão foi o desejo do governo de ampliar o uso do remédio.

Os telegramas do Itamaraty, que a CPI deverá requisitar, revelam detalhes dessa obsessão. Em 21 de março de2020, Bolsonaro postou nas redes sociais que profissionais do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, o haviam informado ter iniciado pesquisa sobre o uso de cloroquina contra a Covid-19. Cinco dias depois, em reunião do G-20, informou sobre “testes bem sucedidos, em hospitais brasileiros, com a utilização da hidroxicloroquina no tratamento de infectados pela Covid-19”. Acenou para a possível “cooperação sobre a experiência brasileira”.

Araújo seguia impávido em sua missão. Tão logo Bolsonaro comemorou o fantasioso sucesso nos testes, o Itamaraty determinou que diplomatas convencessem o governo indiano a liberar a exportação de cloroquina a laboratórios brasileiros. Em 4 de abril, Bolsonaro voltou a insistir na lorota sobre os testes em telefonema ao próprio primeiro-ministro Narendra Modi.

Na verdade, nenhuma pesquisa rigorosa trouxe resultados positivos sobre o uso da cloroquina contra Covid-19, tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) viria a contraindicá-la. Àquela altura, mesmo que as evidências contrárias não fossem definitivas, elas já se acumulavam. Em abril, testes em Manaus foram interrompidos em virtude de riscos cardíacos. Estudos começaram a sair nas maiores revistas médicas e, no início de junho, cloroquina era questão científica liquidada.

Ainda assim, o governo Bolsonaro, com Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, passou a distribuí-la a estados e municípios, tal a ideia fixa de Bolsonaro. Pouco depois, a farmacêutica Pfizer ofereceu ao Brasil aquela que seria a primeira vacina bem-sucedida contra o vírus. A oferta foi desprezada. O ex-secretário da Comunicação Fabio Wajngarten, que intermediava a negociação com a Pfizer, também será ouvido esta semana. A CPI precisa esclarecer por que o Itamaraty de Araújo se dedicou tanto à cloroquina e simplesmente ignorou a compra de vacinas.

 Ao sabotarem protocolos sanitários, autoridades dão péssimo exemplo

O Globo

Desde o início da pandemia, sabe-se que o uso de máscaras, o distanciamento e a higienização — recomendações repetidas à exaustão por especialistas — são medidas essenciais para conter o contágio. Mas as autoridades, que deveriam dar o exemplo, são as primeiras a sabotar os protocolos — e o pior, sem nenhum pudor.

Na manhã de domingo, o presidente Jair Bolsonaro fez um passeio de moto acompanhado por outros motociclistas em Brasília, incentivando aglomeração pela enésima vez. Ao retornar ao Palácio da Alvorada, sem máscara, cumprimentou apoiadores com apertos de mão, atropelando os protocolos sanitários mais básicos. Três dias antes, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, dizia, em depoimento à CPI da Covid, que uso de máscaras, distanciamento e higienização são as medidas disponíveis para combater a epidemia.

No Rio, o prefeito Eduardo Paes, que testou positivo para Covid-19 em 15 de abril, participou no sábado de uma roda de samba no bar Armazém do Senado, no Centro, onde o risco para Covid-19 é “muito alto”. Fez tudo aquilo que seu secretário de Saúde, Daniel Soranz, recomenda que a população não faça. Desprezou o uso da máscara, aglomerou, cantou, como se não houvesse pandemia no Rio. Não se deve esquecer que esses ambientes são propícios aos “superdifusores”, e que canto e voz alta estão vinculados ao risco maior de contágio. Depois que o vídeo da apresentação desastrada se espalhou, Paes pediu desculpas. Se o cidadão fizer o mesmo — rodas de samba estão proibidas —, poderá ser multado.

Paes não está sozinho. Em 30 de janeiro, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, que faz tratamento contra um câncer agressivo, foi criticado por ter ido com o filho ao Maracanã assistir à final da Copa Libertadores. Além de amargar a derrota do Santos para o Palmeiras por 1 a 0, foi chamado de hipócrita nas redes sociais (em São Paulo, jogos são feitos com portões fechados), mas não deu o braço a torcer. Disse que “a hipocrisia generalizada” o julgou como se tivesse feito algo ilegal.

Em 28 de março, o governador do Rio, Cláudio Castro, fez uma festa de aniversário em Itaipava, na Região Serrana, para comemorar seus 42 anos. A casa estava cheia, e convidados não usavam máscaras. Dois dias antes, baixara decreto proibindo esses eventos e apelara aos fluminenses: “Não é hora de fazermos festa, tem muita gente morrendo, muita gente na fila de hospital. Este é um momento para ficarmos em casa”. Depois, Castro também fez um vídeo para se desculpar.

É lamentável que as autoridades — a quem caberia dar exemplo à população — sejam as primeiras a protagonizar o “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. Desculpas não apagam a sensação de que nem elas próprias acreditam no que pregam. Por que a população tem de cumprir normas que os gestores não cumprem? Enquanto a vacinação contra a Covid-19 segue em ritmo de conta-gotas, é preciso manter as medidas de prevenção. Autoridades deveriam contribuir para incentivá-las, e não desprezá-las.

Investimentos das concessões animam, mas não bastam

Valor Econômico

O acúmulo de erros registrado até agora não favorece o ânimo do investidor

Os leilões de concessões deslancharam finalmente em abril e vão injetar um pouco de oxigênio na combalida infraestrutura nacional. Calcula-se que um país precisa investir o equivalente a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) apenas para manter a infraestrutura existente. Mas nem mesmo metade disso tem sido atingido há vários anos no Brasil. As áreas mais críticas são saneamento, transportes e logística, algumas das quais foram contempladas nos leilões.

Com o Orçamento comprimido pelas despesas obrigatórias e pouca disposição para reformas e cortes importantes, até mesmo obras de cunho social e importantes para os planos políticos do governo de Jair Bolsonaro têm sido atingidas. O Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR) ficou sem recursos para o Fundo de Arrecadação Residencial (FAR) e pode não conseguir dar continuidade à construção de moradias para a população de menor renda. Sem recuperar cerca de R$ 1,5 bilhão para o orçamento do FAR, o Ministério de Desenvolvimento Regional não terá dinheiro, a partir deste mês, para manter o Minha Casa Minha Vida. De quebra, a interrupção das obras causaria a perda de 130 mil empregos, em momento de elevado índice de desocupação.

A realização dos leilões de infraestrutura não resolve esse problema, naturalmente, mas contribui para a retomada de obras que estavam paradas ou a modernização de operações existentes, além de criar empregos. Espera-se que os leilões realizados em abril resultem em R$ 48 bilhões em novos investimentos nos próximos 35 anos (Valor 3/5). A conta inclui não apenas as concessões decididas na Infra Week, mas também a da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). No total foram 14 novos contratos de concessão fechados no mês.

O maior volume de investimento foi comprometido com a operação da Cedae, dividida em quatro blocos, três dos quais foram arrematados com o pagamento de R$ 22,7 bilhões em outorgas. Os investimentos empenhados somam R$ 27,1 bilhões, volume que corresponde a mais da metade do total investido pelo setor privado em saneamento até agora, de R$ 48 bilhões, que sobe para R$ 75 bilhões. Com isso, aumentou em 32% a população atendida pelo setor privado em saneamento, ou 11 milhões de pessoas. O novo marco do saneamento contribuiu para incentivar o interesse privado, como outras operações já haviam demonstrado.

A Infra Week também surpreendeu positivamente pelo forte interesse pelos aeroportos. Apesar de o serviço ter sido um dos mais prejudicados pela pandemia, que resultou em severas restrições à mobilidade e fez despencar a demanda pelo transporte aéreo, há uma aposta na recuperação futura, assim que a covid-19 for domada. A concessão de aeroportos sempre foi muito cobiçada, mesmo com alguns casos de insucesso. Desta vez, foram concedidos 22 aeroportos, divididos em três blocos, espalhados por 12 Estados, que resultaram em R$ 3,3 bilhões em outorgas e R$ 6,1 bilhões em investimentos. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, ficou tão feliz que chegou a quebrar o martelo usado ao apregoar o lance final, contrariando previsões de colegas do ministério que esperavam um fracasso. A Infra Week ainda leiloou um trecho de ferrovia e terminais portuários.

O governo tem planos mais ambiciosos de arrecadação e investimentos com concessão de infraestrutura neste ano. Estão previstos mais 22 leilões e um total de R$ 84 bilhões em novos aportes, contando com ofertas atraentes como a rodovia Dutra e o projeto ferroviário Ferrogrão. A meta do governo é conseguir fazer, até o fim de 2022, concessões que resultem em R$ 260 bilhões em investimentos, valor muito aquém do necessário.

No entanto, por mais que um projeto de concessão de infraestrutura mire principalmente o longo prazo, não se pode descartar a influência de fatores de curto prazo como o enfrentamento da pandemia pelo governo. O acúmulo de erros registrado até agora não favorece o ânimo do investidor. Alguns sinais de alerta devem ser levados em conta como a concentração dos lances em alguns players, a presença reduzida do capital estrangeiro e a ausência de lances por um bloco da Cedae por motivos de segurança. Existem ainda as fraquezas jurídicas que afugentam, como a suscitada pela tentativa de encampação da Linha Amarela, da Invepar, e as já tradicionais liminares judiciais às vésperas dos leilões. A resistência do governo e do Legislativo em avançar as importantes reformas econômicas também jogam contra.

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