Regime
de liberdade
O
Estado de S. Paulo
Decisão
do TSE lembra que a necessária e constitucional liberdade de expressão não
significa autorização para cometer crimes
Por um placar de 4 a 3, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condenou recentemente um contador do Maranhão por propaganda eleitoral antecipada de cunho negativo contra o governador Flávio Dino (PCdoB). Em 2018, o sr. Everildo Bastos Gomes publicou, em sua conta no Instagram, um vídeo no qual Flávio Dino era chamado de ladrão e caracterizado como nazista.
A decisão do TSE é controvertida, especialmente pelo enquadramento jurídico dado ao caso. Como advertiu o presidente da Corte eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto vencido, tratar como propaganda antecipada negativa “qualquer manifestação prejudicial a possível pré-candidato por cidadãos comuns transformaria a Justiça Eleitoral na moderadora permanente das críticas políticas na internet”.
De
toda forma, a decisão do TSE lembra um aspecto importante – e muito esquecido
nos tempos atuais – sobre as liberdades fundamentais. A necessária e
constitucional liberdade de expressão não significa autorização para cometer
crimes.
São
realidades diferentes, com consequências jurídicas inteiramente distintas. Uma
coisa é o direito constitucionalmente protegido de expressar opinião, por mais
crítica que seja; outra bem diferente é agredir ou ameaçar, seja por meio de
palavras, mensagens ou vídeos.
Em
último termo, compete ao Judiciário reconhecer essa diferença, tanto para
proteger a liberdade de expressão e de opinião como para punir as condutas
criminosas. Mas a distinção dessas duas realidades não é apenas tarefa da
Justiça. O exercício da cidadania envolve diferenciar criteriosamente o que é
liberdade de expressão e o que constitui crime.
Fazer
essa diferenciação é especialmente relevante nos tempos atuais, em que todos os
dias se recebem inúmeras mensagens, publicações e vídeos. Há liberdade de
expressão, mas nem tudo o que se recebe no celular e em outros meios pode ou
deve ser compartilhado. Por exemplo, no caso julgado pelo TSE, o sr. Everildo
Bastos Gomes não foi o autor do material ofensivo. Segundo relatou ao Estado,
ele recebeu o vídeo num grupo de WhatsApp e depois o publicou em sua conta no
Instagram – e foi precisamente esse compartilhamento que motivou a condenação.
A
Constituição de 1988 é pródiga na proteção das liberdades de expressão e de
opinião. O art. 5.º assegura que “é livre a manifestação do pensamento”, assim
como “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de
comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Esse
último dispositivo serviu de base, por exemplo, para a decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) que reconheceu a impossibilidade de censura prévia sobre
biografias. “Cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituição”, disse a
ministra Cármen Lúcia no julgamento.
É
livre a manifestação do pensamento, mas – e aqui está o cerne da questão – não
cabe cometer um crime contra a honra de terceiro (calúnia, injúria ou
difamação) e alegar que estava apenas “manifestando o pensamento”. Também não
cabe cometer um crime contra a liberdade individual (ameaçar, por exemplo) e
justificar-se dizendo que estava apenas exercendo sua liberdade política.
Num
regime de liberdade, tal como vigora no Brasil após a Constituição de 1988, não
existe crime de opinião. Cada um pode ter suas ideias e convicções, por mais
estranhas que pareçam aos olhos dos outros, e tem o direito de defendê-las e
difundi-las. No entanto, isso não autoriza, por exemplo, agredir quem quer que
seja ou impedir o livre funcionamento das instituições democráticas.
Nessa
tarefa de distinguir o que é liberdade de expressão e o que é atividade
criminosa, o Estado deve ser liberal, sem interpretações restritivas de
direitos. Mas também não pode ser ingênuo, o que colocaria em risco a liberdade
de todos. Vale lembrar que, num utópico sistema de liberdade absoluta,
simplesmente não haveria liberdade. O regime de liberdade é precisamente aquele
que, com base em critérios e limites definidos em lei, diferencia o que é
exercício da liberdade e o que é agressão, ameaça ou ofensa.
Lições
da tragédia do Jacarezinho
O
Estado de S. Paulo
Tragédia
deixou claro que a estratégia de ‘guerra ao tráfico’ é errada
Entre as lições a serem extraídas da desastrosa operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro realizada quinta-feira passada na favela do Jacarezinho, na zona norte da cidade, e que culminou com 29 mortos contabilizados até agora, duas merecem destaque.
A
primeira lição decorre do julgamento prévio que as autoridades policiais e dirigentes
governamentais fizeram, justificando o banho de sangue pelo fato de as vítimas
serem pessoas já condenadas pela Justiça. “Tudo bandido”, disse o
vice-presidente Hamilton Mourão no dia seguinte ao da tragédia, sem dispor de
qualquer prova que fundamentasse essa afirmação. Também classificou a operação
como “normal” e afirmou que “as quadrilhas do narcotráfico são verdadeiras
narcoguerrilhas”.
A
exemplo do que disse o vice-presidente da República, as autoridades policiais
do governo do Rio de Janeiro também afirmaram que as vítimas da operação, a
mais letal já realizada na cidade, eram pessoas violentas. Com isso, tentaram
se eximir da acusação de que teriam exorbitado de suas prerrogativas. Contudo,
as investigações posteriores à tragédia promovidas pelo próprio governo
estadual revelaram o oposto. Dos 29 mortos, pelo menos 13 não tinham passagem
pela polícia e, muito menos, qualquer relação com a investigação que vinha
sendo feita pela Polícia Civil fluminense. Em outras palavras, eram pessoas inocentes
que foram condenadas à morte apenas por serem pobres, negras e faveladas. Por
causa do julgamento precipitado tanto de Mourão quanto das autoridades
policiais fluminenses, defensores públicos e entidades da sociedade civil já
anunciaram que levarão o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em
Genebra, o Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas também já pediu uma
investigação independente, após classificar como “brutal”, “desproporcional” e
“desnecessário” o uso da força na operação da favela do Jacarezinho.
A
outra lição decorre do fato de que a tragédia do Jacarezinho foi provocada pela
estratégia de confronto indiscriminado que é adotada há muito tempo pelas
Polícias Civil e Militar de todo o País, em matéria de repressão ao tráfico.
Por ser ineficiente, levar a abusos e banalizar a violência, essa estratégia
sempre foi criticada por especialistas em segurança pública. Coordenado pela
socióloga Julita Lemgruber, que já dirigiu o Departamento do Sistema
Penitenciário do Rio de Janeiro, o estudo mais recente sobre essa ineficiência
foi divulgado há cinco semanas. Publicado pelo Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania (CESeC), o documento chega à conclusão de que o combate ao
narcotráfico no Rio de Janeiro vem sendo realizado sem levar em conta a
correlação entre custo financeiro, segurança da população e obtenção de
resultados.
A
pesquisa foi feita com base numa metodologia desenvolvida há alguns anos pela
Universidade Harvard, com o objetivo de escrutinar o gasto de US$ 41,2 bilhões
do governo americano com medidas antidrogas. O estudo do CESeC constatou que,
apesar de o governo fluminense ter gastado R$ 1 bilhão em ações contra
traficantes em 2017, os resultados ficaram muito aquém do esperado. Entre
outros motivos, porque os órgãos policiais se limitaram a reprimir o varejo nas
favelas, em vez de tentar chegar ao sistema financeiro das grandes quadrilhas.
O levantamento também mostrou que os órgãos policiais do Rio costumam ocultar
dados relativos à segurança pública.
“Pouco
se discute a ineficiência policial e o custo financeiro à sociedade. Não quero
dizer que a preocupação com a dor e o sofrimento gerados não sejam grandes.
Mas, em um momento de crise financeira e sanitária, é mais importante do que
nunca saber como o orçamento público é drenado para áreas que, em vez de salvar
vidas, provocam mais perdas”, concluiu Lemgruber.
A
operação policial realizada quinta-feira passada na favela do Jacarezinho
comprovou tragicamente, como se viu, que a advertência dos pesquisadores do
CESeC sobre a ineficiência da política de “guerra ao tráfico” no Rio de Janeiro
era não só procedente e oportuna, mas necessária.
União contra um problema global
O
Estado de S. Paulo
Suspensão
das patentes é bem-vinda para aumentar a oferta de vacinas
O presidente Joe Biden está determinado a reposicionar os Estados Unidos como país líder de iniciativas de cooperação internacional para o enfrentamento de problemas globais, papel perdido durante a administração isolacionista de seu antecessor. Há poucas semanas, Biden reuniu os líderes de 40 países para discutir planos de contenção das mudanças climáticas. Agora, diante da outra grande ameaça global, a pandemia de covid-19, o presidente americano promoveu uma inflexão histórica no posicionamento dos EUA sobre patentes farmacêuticas, o que pode levar à mudança de posição de outras nações.
No
dia 5 passado, a representante comercial dos EUA, a embaixadora Katherine Tai,
anunciou a decisão do governo americano de apoiar a suspensão dos direitos de
propriedade intelectual sobre as vacinas contra a covid-19, pleito capitaneado
pela Índia e pela África do Sul no âmbito da Organização Mundial do Comércio
(OMC) e apoiado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O objetivo é facilitar
a transferência de tecnologia e aumentar a disponibilidade de vacinas contra o
coronavírus nos países pobres e em desenvolvimento.
A
mudança de posição do governo americano é histórica porque, tradicionalmente,
os EUA nem sequer admitiam discutir quebra de patentes, haja vista que as
maiores empresas farmacêuticas e de tecnologia do mundo são americanas. Não foi
surpresa, portanto, a reação negativa da chamada Big Pharma à mudança de tom da
Casa Branca.
“Esta
é uma crise de saúde global e as circunstâncias extraordinárias da pandemia de
covid-19 exigem medidas extraordinárias. O governo (Biden) acredita fortemente
nas proteções da propriedade intelectual, mas, em um esforço para acabar com
esta pandemia, apoia a suspensão dessas proteções em relação às vacinas”, disse
Tai. A embaixadora afirmou ainda que seu país vai “participar ativamente” das
negociações na OMC para permitir que os objetivos almejados com a suspensão das
patentes sobre vacinas sejam alcançados.
A
União Europeia (UE), onde também estão grandes empresas farmacêuticas e, por
esta razão, também sempre manifestou posição contrária à quebra de patentes,
parece inclinada a seguir a nova direção de Washington. A presidente da
Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou que a suspensão dos direitos
de propriedade intelectual sobre vacinas “pode ser uma das soluções pragmáticas
e eficazes” para aumentar a taxa de imunização contra o coronavírus em todo o
mundo.
O
Brasil, que vinha mantendo posição contrária à quebra de patentes das vacinas,
“recebeu com satisfação a disposição dos EUA para negociar, no âmbito da OMC,
solução multilateral que contribua para o combate à covid-19”. Após se reunir
com a embaixadora Tai, no dia 7 passado, o chanceler Carlos França afirmou que
o governo brasileiro “discutirá, em maior profundidade, com os EUA sua nova
posição e suas implicações práticas para facilitar amplo e urgente acesso a
vacinas e medicamentos no combate à covid-19”.
Há
dúvidas razoáveis sobre o efeito prático da suspensão das patentes das vacinas.
As nações em desenvolvimento terão condições de produzir com rapidez
imunizantes tecnicamente complexos como os da Pfizer e da Moderna, por exemplo,
que têm como base tecnológica o RNA mensageiro do coronavírus? Hoje, o Brasil
tem capacidade para produzir duas vacinas, a Coronavac (Instituto Butantan) e a
Covishield (Fiocruz), ambas de tecnologia menos complexa. Ainda assim, há
dificuldades de produção local, causadas, em boa medida, pelos conflitos que o
presidente Jair Bolsonaro estimula contra a China, grande fornecedor dos
insumos para a produção desses imunizantes.
Não
obstante essas dificuldades práticas, a suspensão das patentes é uma iniciativa
muito bem-vinda. Como disse o senador José Serra (PSDB-SP), com a autoridade de
quem atuou, como ministro da Saúde, para eliminar patentes de antivirais que
fizeram do Brasil referência no tratamento da aids, “vivemos um momento atípico
e lucros exacerbados não podem estar acima da vida”.
Folha
de S. Paulo
Desastre
educacional na pandemia exige planos para a recuperação do aprendizado
O
fechamento prolongado das escolas prejudicou de modo grave o aprendizado,
elevou o risco de abandono dos estudos e aumentou a desigualdade educacional.
É o que
mostra amplo estudo de pesquisadores da Universidade de Zurique e do Banco
Interamericano de Desenvolvimento, em parceria com a Secretaria de Educação
paulista. A escola fechada também piora as perspectivas de futuro
dos estudantes e problemas como fome e violência contra crianças.
O
estudo paulista mostrou que o fechamento provocou a regressão até de anos de
aprendizado. Buscar tais crianças e jovens e recuperar o tempo perdido não
costuma ser tarefa fácil. Menos ainda será em um país empobrecido pela
pandemia, mas terá de ser feito.
Quais
os planos para atenuar o problema? Que apoio, ao menos institucional, o governo
federal pretende oferecer? Obviamente trata-se de pergunta retórica, pois o
Ministério da Educação vem sendo destruído pelo governo de Jair Bolsonaro. De
qualquer modo, ainda não há debate nacional.
O
desastre no aprendizado não é, além do mais, o único dos danos colaterais
causados pelo coronavírus e pela incúria das autoridades. Ante uma administração
que ainda hoje sabota as medidas sanitárias, parece inútil lembrar que cuidar
dos vivos quer dizer também dar atenção aos alquebrados pela Covid-19 e pela
crise social.
Milhões
de pessoas devem sofrer em algum grau da chamada “Covid longa”, sequelas ou
persistências da doença. Milhões também tiveram sua saúde prejudicada de outro
modo por causa da lotação dos serviços médicos, dedicados à emergência
epidêmica.
O
risco de surtos da doença permanecerá mesmo depois de contida sua disseminação.
O risco de outras epidemias também —recorde-se que este é um país de dengue,
febre amarela, malária, zika e chikungunya. O espalhamento de agentes
patogênicos é favorecido por más condições sanitárias, de habitação e de
transporte público.
Ficou
evidente que agentes de saúde familiar podem antecipar crises, rastrear doentes
e disseminar informação. Mas é necessário um planejamento que contemple a nova
realidade —ou as consequências da negligência nacional serão ainda mais
calamitosas.
Diplomacia da cloroquina
Folha
de S. Paulo
Mobilização do Itamaraty em busca de remédio ineficaz deve ser alvo da CPI
Avolumam-se
as provas dos desmandos do governo federal na gestão da pandemia. Os esforços
para obter, produzir e distribuir cloroquina e sua variante hidroxicloroquina
vão se configurando no caso mais evidente em que a administração Jair Bolsonaro
foi além da incompetência e até da negligência.
Documentos
obtidos pela Folha acrescentam elementos a esse enredo
aterrador, um dos alvos da CPI do Senado. Uma série de telegramas expedidos em
2020 pelo Ministério das Relações Exteriores, então sob Ernesto Araújo, mostra
que a pasta mobilizou o aparato diplomático para garantir o fornecimento das
substâncias ao país.
A
saga teve início em 26 de março, quando o Itamaraty determinou que diplomatas
buscassem sensibilizar o governo da Índia, que então restringia a exportação
dessas drogas, “para a urgência da liberação (...) dos bens encomendados” por
empresas nacionais.
O telegrama foi enviado na mesma data em que Bolsonaro declarou, numa reunião do G20, que haveria “testes bem-sucedidos, em hospitais brasileiros, com a utilização de hidroxicloroquina”.
Ocorre que não apenas inexistiam os tais bons resultados como nada justificava
a urgência do pedido.
Àquela
altura, a hidroxicloroquina poderia ser classificada, no máximo, como
promissora, status compartilhado por outras tantas drogas em fase de testes.
O
próprio Bolsonaro, que num destampatório recente chamou de canalhas os que se
opõem à prescrição da droga, envolveu-se na questão. Um telegrama de 4 de abril
informa que ele fez um “apelo humanitário” ao primeiro-ministro indiano pela
liberação de carregamentos de hidroxicloroquina.
Trata-se,
a esta altura, de charlatanismo financiado com dinheiro público e apoio do
aparato do Estado —e que põe em risco a saúde da população. A ofensiva
contrasta com o pouco empenho na busca de mais vacinas. Até novembro, o
ministério não havia enviado instruções nesse sentido.
O falastrão Araújo, dado a teorias conspiratórias, terá a tarefa inglória de justificar tais atos em depoimento à CPI. Bolsonaro, de fato, não precisa de adversários.
CPI
deve investigar ação pró-cloroquina do Itamaraty
O Globo
Ficou
claro em janeiro deste ano, por uma revelação da revista “Época”, o papel ativo
do Itamaraty e da embaixada brasileira em Nova Délhi em negociações com a Índia
para comprar insumos destinados à produção de cloroquina no Brasil. O próprio
ex-chanceler Ernesto Araújo afirmara ano passado que sua pasta fazia esforços
para ampliar a importação do remédio, que desde o primeiro semestre de 2020 se
sabe ser ineficaz contra Covid-19.
Depois
da publicação, pelo jornal “Folha de S.Paulo”, do conteúdo de telegramas
comprovando a dedicação do Itamaraty à compra da droga inútil, o depoimento de
Araújo marcado para quinta-feira deverá se transformar no novo foco da CPI da
Covid, que também deverá investigar por que a droga passou a ser fabricada aos
borbotões nos laboratórios do Exército.
A
mobilização de Araújo, revelam os telegramas, foi intensa para comprar um
medicamento não só ineficaz para combater o coronavírus, mas também capaz de
provocar perigosos efeitos colaterais. Bolsonaro fez da cloroquina uma ideia
fixa. Seu governo chegou ao ponto, como relatou o ex-ministro da Saúde Luiz
Henrique Mandetta na CPI, de pensar em forçar por decreto a inclusão da
prescrição para Covid-19 na bula da cloroquina. O sucessor de Mandetta, Nelson
Teich, que ficou menos de um mês na pasta, relatou à CPI que o motivo decisivo
para seu pedido de demissão foi o desejo do governo de ampliar o uso do
remédio.
Os
telegramas do Itamaraty, que a CPI deverá requisitar, revelam detalhes dessa
obsessão. Em 21 de março de2020, Bolsonaro postou nas redes sociais que
profissionais do Hospital Albert Einstein, de São Paulo, o haviam informado ter
iniciado pesquisa sobre o uso de cloroquina contra a Covid-19. Cinco dias
depois, em reunião do G-20, informou sobre “testes bem sucedidos, em hospitais
brasileiros, com a utilização da hidroxicloroquina no tratamento de infectados
pela Covid-19”. Acenou para a possível “cooperação sobre a experiência
brasileira”.
Araújo
seguia impávido em sua missão. Tão logo Bolsonaro comemorou o fantasioso
sucesso nos testes, o Itamaraty determinou que diplomatas convencessem o
governo indiano a liberar a exportação de cloroquina a laboratórios
brasileiros. Em 4 de abril, Bolsonaro voltou a insistir na lorota sobre os
testes em telefonema ao próprio primeiro-ministro Narendra Modi.
Na
verdade, nenhuma pesquisa rigorosa trouxe resultados positivos sobre o uso da
cloroquina contra Covid-19, tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS)
viria a contraindicá-la. Àquela altura, mesmo que as evidências contrárias não
fossem definitivas, elas já se acumulavam. Em abril, testes em Manaus foram
interrompidos em virtude de riscos cardíacos. Estudos começaram a sair nas
maiores revistas médicas e, no início de junho, cloroquina era questão
científica liquidada.
Ainda
assim, o governo Bolsonaro, com Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde, passou
a distribuí-la a estados e municípios, tal a ideia fixa de Bolsonaro. Pouco
depois, a farmacêutica Pfizer ofereceu ao Brasil aquela que seria a primeira
vacina bem-sucedida contra o vírus. A oferta foi desprezada. O ex-secretário da
Comunicação Fabio Wajngarten, que intermediava a negociação com a Pfizer,
também será ouvido esta semana. A CPI precisa esclarecer por que o Itamaraty de
Araújo se dedicou tanto à cloroquina e simplesmente ignorou a compra de
vacinas.
O
Globo
Desde o início da pandemia, sabe-se que o uso de máscaras, o distanciamento e a higienização — recomendações repetidas à exaustão por especialistas — são medidas essenciais para conter o contágio. Mas as autoridades, que deveriam dar o exemplo, são as primeiras a sabotar os protocolos — e o pior, sem nenhum pudor.
Na
manhã de domingo, o presidente Jair Bolsonaro fez um passeio de moto
acompanhado por outros motociclistas em Brasília, incentivando aglomeração pela
enésima vez. Ao retornar ao Palácio da Alvorada, sem máscara, cumprimentou
apoiadores com apertos de mão, atropelando os protocolos sanitários mais
básicos. Três dias antes, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, dizia, em
depoimento à CPI da Covid, que uso de máscaras, distanciamento e higienização
são as medidas disponíveis para combater a epidemia.
No
Rio, o prefeito Eduardo Paes, que testou positivo para Covid-19 em 15 de abril,
participou no sábado de uma roda de samba no bar Armazém do Senado, no Centro,
onde o risco para Covid-19 é “muito alto”. Fez tudo aquilo que seu secretário
de Saúde, Daniel Soranz, recomenda que a população não faça. Desprezou o uso da
máscara, aglomerou, cantou, como se não houvesse pandemia no Rio. Não se deve
esquecer que esses ambientes são propícios aos “superdifusores”, e que canto e
voz alta estão vinculados ao risco maior de contágio. Depois que o vídeo da
apresentação desastrada se espalhou, Paes pediu desculpas. Se o cidadão fizer o
mesmo — rodas de samba estão proibidas —, poderá ser multado.
Paes
não está sozinho. Em 30 de janeiro, o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, que
faz tratamento contra um câncer agressivo, foi criticado por ter ido com o
filho ao Maracanã assistir à final da Copa Libertadores. Além de amargar a
derrota do Santos para o Palmeiras por 1 a 0, foi chamado de hipócrita nas
redes sociais (em São Paulo, jogos são feitos com portões fechados), mas não
deu o braço a torcer. Disse que “a hipocrisia generalizada” o julgou como se
tivesse feito algo ilegal.
Em
28 de março, o governador do Rio, Cláudio Castro, fez uma festa de aniversário
em Itaipava, na Região Serrana, para comemorar seus 42 anos. A casa estava
cheia, e convidados não usavam máscaras. Dois dias antes, baixara decreto
proibindo esses eventos e apelara aos fluminenses: “Não é hora de fazermos
festa, tem muita gente morrendo, muita gente na fila de hospital. Este é um
momento para ficarmos em casa”. Depois, Castro também fez um vídeo para se
desculpar.
É
lamentável que as autoridades — a quem caberia dar exemplo à população — sejam
as primeiras a protagonizar o “faça o que eu digo, não faça o que eu faço”.
Desculpas não apagam a sensação de que nem elas próprias acreditam no que
pregam. Por que a população tem de cumprir normas que os gestores não cumprem?
Enquanto a vacinação contra a Covid-19 segue em ritmo de conta-gotas, é preciso
manter as medidas de prevenção. Autoridades deveriam contribuir para
incentivá-las, e não desprezá-las.
Investimentos das concessões animam, mas não bastam
Valor
Econômico
O
acúmulo de erros registrado até agora não favorece o ânimo do investidor
Os
leilões de concessões deslancharam finalmente em abril e vão injetar um pouco
de oxigênio na combalida infraestrutura nacional. Calcula-se que um país
precisa investir o equivalente a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) apenas para
manter a infraestrutura existente. Mas nem mesmo metade disso tem sido atingido
há vários anos no Brasil. As áreas mais críticas são saneamento, transportes e
logística, algumas das quais foram contempladas nos leilões.
Com
o Orçamento comprimido pelas despesas obrigatórias e pouca disposição para
reformas e cortes importantes, até mesmo obras de cunho social e importantes
para os planos políticos do governo de Jair Bolsonaro têm sido atingidas. O
Ministério de Desenvolvimento Regional (MDR) ficou sem recursos para o Fundo de
Arrecadação Residencial (FAR) e pode não conseguir dar continuidade à construção
de moradias para a população de menor renda. Sem recuperar cerca de R$ 1,5
bilhão para o orçamento do FAR, o Ministério de Desenvolvimento Regional não
terá dinheiro, a partir deste mês, para manter o Minha Casa Minha Vida. De
quebra, a interrupção das obras causaria a perda de 130 mil empregos, em
momento de elevado índice de desocupação.
A
realização dos leilões de infraestrutura não resolve esse problema,
naturalmente, mas contribui para a retomada de obras que estavam paradas ou a
modernização de operações existentes, além de criar empregos. Espera-se que os
leilões realizados em abril resultem em R$ 48 bilhões em novos investimentos
nos próximos 35 anos (Valor 3/5).
A conta inclui não apenas as concessões decididas na Infra Week, mas também a
da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). No total
foram 14 novos contratos de concessão fechados no mês.
O
maior volume de investimento foi comprometido com a operação da Cedae, dividida
em quatro blocos, três dos quais foram arrematados com o pagamento de R$ 22,7
bilhões em outorgas. Os investimentos empenhados somam R$ 27,1 bilhões, volume
que corresponde a mais da metade do total investido pelo setor privado em
saneamento até agora, de R$ 48 bilhões, que sobe para R$ 75 bilhões. Com isso,
aumentou em 32% a população atendida pelo setor privado em saneamento, ou 11
milhões de pessoas. O novo marco do saneamento contribuiu para incentivar o
interesse privado, como outras operações já haviam demonstrado.
A
Infra Week também surpreendeu positivamente pelo forte interesse pelos
aeroportos. Apesar de o serviço ter sido um dos mais prejudicados pela
pandemia, que resultou em severas restrições à mobilidade e fez despencar a
demanda pelo transporte aéreo, há uma aposta na recuperação futura, assim que a
covid-19 for domada. A concessão de aeroportos sempre foi muito cobiçada, mesmo
com alguns casos de insucesso. Desta vez, foram concedidos 22 aeroportos,
divididos em três blocos, espalhados por 12 Estados, que resultaram em R$ 3,3
bilhões em outorgas e R$ 6,1 bilhões em investimentos. O ministro da
Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, ficou tão feliz que chegou a quebrar o
martelo usado ao apregoar o lance final, contrariando previsões de colegas do
ministério que esperavam um fracasso. A Infra Week ainda leiloou um trecho de
ferrovia e terminais portuários.
O
governo tem planos mais ambiciosos de arrecadação e investimentos com concessão
de infraestrutura neste ano. Estão previstos mais 22 leilões e um total de R$
84 bilhões em novos aportes, contando com ofertas atraentes como a rodovia
Dutra e o projeto ferroviário Ferrogrão. A meta do governo é conseguir fazer,
até o fim de 2022, concessões que resultem em R$ 260 bilhões em investimentos,
valor muito aquém do necessário.
No entanto, por mais que um projeto de concessão de infraestrutura mire principalmente o longo prazo, não se pode descartar a influência de fatores de curto prazo como o enfrentamento da pandemia pelo governo. O acúmulo de erros registrado até agora não favorece o ânimo do investidor. Alguns sinais de alerta devem ser levados em conta como a concentração dos lances em alguns players, a presença reduzida do capital estrangeiro e a ausência de lances por um bloco da Cedae por motivos de segurança. Existem ainda as fraquezas jurídicas que afugentam, como a suscitada pela tentativa de encampação da Linha Amarela, da Invepar, e as já tradicionais liminares judiciais às vésperas dos leilões. A resistência do governo e do Legislativo em avançar as importantes reformas econômicas também jogam contra.
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