quinta-feira, 24 de junho de 2021

Cristiano Romero - Por que paramos de distribuir renda?

Valor Econômico

No Brasil, elites recebem mais do Estado do que os pobres

O país a que chamamos de Brasil convive com níveis extremos de desigualdade desde o início da colonização europeia. A escravidão, usada como fator de acumulação de capital por quase 400 anos, nunca nos deixou, o que explica o estranhamento das elites diante da maioria da população e seu desdém com a educação do povo, característica ausente na maioria das nações.

A história, estudada com profundidade, explica o caminho tomado por cada sociedade. Nenhum povo está fadado ao fracasso por razões culturais ou origem étnica. Onde há nação, isto é, nos países onde a maioria dos habitantes se reconhece no outro, na acepção mais ampla do que chamamos de cultura, é raro ver grupos minoritários se apropriando da maior parte das riquezas e impedindo o desenvolvimento humano das concidadãos.

O desafio maior das nações está nas Américas, onde o processo de colonização europeia se deu de forma violenta, por meio inclusive do extermínio dos antigos donos dos territórios. Acrescente-se a isso o modelo econômico baseado na acumulação de capital por meio da escravização de povos de um terceiro continente, a África.

É importante lembrar que os africanos escravizados foram sequestrados de suas nações. Eram pessoas que pertenciam a um universo cultural próprio, com suas línguas e costumes específicos, transformadas, da noite para o dia, em mão de obra gratuita, primeiro, das lavouras de cana de açúcar no Nordeste, depois, da atividade pecuária e do garimpo em Minas Gerais e, por fim, das plantações de café no Sudeste. Serviram também, claro, ao trabalho serviçal doméstico de famílias abastadas e à atividade, nunca remunerada, no comércio.

Essa ignomínia durou até 1988. O seu fim, como sabemos, não foi aceito pelas oligarquias rurais, que, após a abolição, tudo fizeram para dificultar a vida dos ex-escravos, a começar pela pressão sobre os primeiros governos da República para facilitar a imigração de europeus, com o objetivo desavergonhado de “embranquecer” a população. Ora, sem a reparação desses males fundadores da sociedade brasileira, não chegaremos nunca a lugar algum.

De toda forma, desistir da Ilha de Vera Cruz seria um equívoco para quem não se considera parte da elite minoritária, que se considera dona do poder e da abundante riqueza do país. A Constituição de 1988, mesmo com seus equívocos, representa um marco na busca por uma sociedade menos desigual. Evidentemente, ao promover avanços civilizadores (na educação e na saúde públicas e nos direitos individuais e coletivos), provocou reações no sentido contrário.

“A partir da década de 1990, a distribuição de renda começou a melhorar, especialmente a partir de 2001. Os mais pobres se beneficiaram da queda na inflação e das políticas sociais de Fernando Henrique Cardoso, turbinadas por Luiz Inácio Lula da Silva. No entanto, o crescimento [econômico] foi modesto e, recentemente, a economia colapsou”, diz Arminio Fraga no estudo “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”.

Armínio, ex-presidente do Banco Central, está entre os brasileiros da elite econômica que não desistem do país. Rico, poderia mudar-se para os Estados Unidos, onde já viveu, ou a Europa. Tem ambições políticas, no sentido de disputar eleições? Até agora, não, embora essa decisão, apesar de improvável, seja legítima. Armínio quer contribuir com ideias, muitas ideias. Como sabe que elas esbarram justamente nos interesses das elites mencionadas aqui, uma de suas missões é mostrar por que estamos presos de forma injustificável numa espécie de atoleiro.

“Comparando-se o Brasil com os países da OCDE (que inclui Chile, México, Turquia e os principais avançados), nota-se que somos o mais desigual”, observa Arminio. Por quê? Quando se atenta para programas sociais de transferência de renda, conclui-se que:

1. Como proporção da renda, o Brasil é o país que menos transfere para quem ganha menos e dos que mais transferem para quem ganha mais (isso mesmo, menos-menos, mais-mais);

2. Em termos absolutos, as transferências para os 20% mais ricos representam quase a metade do total, com destaque para aposentadorias e pensões. No Brasil, o Estado age como um Robin Hood às avessas.

O ex-presidente do BC chama atenção para um fato inconveniente, revelado por pesquisas econômicas. “A partir de 2006, a distribuição de renda parou de melhorar e há quatro anos passou a piorar, uma tragédia. Há que se ter em mente também a relevante e persistente falta de mobilidade social, ou seja, é baixa a chance de uma pessoa criada em família pobre sair da pobreza. Há, portanto, muito espaço para melhorar, tanto aperfeiçoando os mecanismos de proteção social quanto por meio de investimentos sociais, que nos aproximariam do ideal da igualdade de oportunidades.”

O quadro se agrava, revela o economista, quando muitos enriquecem se aproveitando de seu poder político e econômico para obter benesses do Estado. “Nesse ambiente, predominam a frustração, o desalento e a descrença geral no sistema político”, afirma. “Florescem também populismos e demagogias de todos os matizes que, com suas propostas simplistas e enganosas de que tudo é possível sem custos, impedem uma discussão desapaixonada sobre as grandes questões que importam para o bom futuro do país.”

Não se tenha dúvida: foi nesse que a maioria dos eleitores brasileiros, historicamente avessos a votar em extremistas à direita e à esquerda do espectro político, elegeu Jair Bolsonaro, um presidente que, cotidianamente, desafia, com sua incontinência mental e verbal, os avanços mais civilizadores de nossa jovem democracia.

Por outro lado, quando critica “propostas simplista e enganosas de que tudo é possível sem custos”, Arminio está se referindo aos partidos de esquerda. Esta, com exceção do virtuoso primeiro mandato de Lula (2003-2006) ainda não fez as pazes com a aritmética das contas públicas, com a necessidade de se ter um orçamento público sempre equilibrado, do contrário, os efeitos colaterais do desequilíbrio pesarão mais sempre sobre os ombros da camada mais pobre da população, justamente a que mais necessita do apoio do Estado.

Na próxima semana, esta coluna abordará os aspectos que tornam o Estado brasileiro um elemento concentrador de renda, distorcendo sua missão precípua, dada pela Constituição, de promover a igualdade.

 

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