sábado, 5 de junho de 2021

Entrevista | José Murilo de Carvalho, historiador: 'Há perigo de politização das Forças Armadas com risco à democracia’

Autor do livro ‘Forças Armadas e Política no Brasil’, ele diz que a transformação do Exército em instrumento da política de Bolsonaro afetará as eleições de 2022

Sérgio Roxo / O Globo

SÃO PAULO — Historiador que estuda a participação dos militares na política brasileira, José Murilo de Carvalho avalia que a decisão do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello por participar de ato político com o presidente Jair Bolsonaro representa uma capitulação desmoralizante para o comando da instituição e pode ter “sérias consequências para o funcionamento da democracia brasileira”. Autor, entre outros, do livro “Forças Armadas e Política no Brasil”, Carvalho acredita que o episódio pode levar “à politização da Força”.

A ausência de punição ao general Eduardo Pazuello pode levar a uma anarquia nas Forças Armadas?

Trata-se do episódio mais grave no que se refere à relação entre o Exército e o atual presidente. A justificativa de que o general envolvido não participara de ato político é ridícula e ele próprio o reconhecera logo depois do evento, quando pediu desculpas. Até mesmo o general Mourão, vice-presidente, duas vezes punido por fazer declarações políticas, defendeu a necessidade da punição para preservar a disciplina. O comandante da Força e o Alto Comando que o assessora tornaram-se responsáveis pela quebra de um dos esteios da corporação (o outro é a hierarquia). Tornou-se clara a consequência política negativa da alta presença de militares no governo.

O senhor acredita que exista hoje uma divisão dentro do Exército sobre a postura que deve ser adotada em relação ao presidente Jair Bolsonaro?

Se não havia, haverá agora. Será inevitável que a não punição de Pazuello gere um grande debate dentro do Exército e também da Marinha e da Aeronáutica. O argumento frequentemente usado pelas Forças Armadas de serem instituições de Estado e não de governo perde credibilidade.

Em março, os comandantes das Forças deixaram seus postos por aparentemente não se submeterem ao presidente. Agora, houve uma capitulação?

Houve uma capitulação desairosa e desmoralizante para o comandante e perigosa por poder levar à politização da Força, com sérias consequências para o funcionamento da democracia.

Como essa decisão pode ser avaliada dentro de todo o contexto de envolvimento político das Forças Armadas nos últimos anos, que inclui o tuíte do então comandante do Exército, Eduardo Villas Boas, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula pelo STF?

O tuíte do general Villas Boas desmentiu a aparente renúncia pelas Forças Armadas, pelo Exército em particular, de outro papel, exercido na prática, o de tutoras da República. Uma eventual divisão interna do Exército dificultará o exercício desse papel, mas, ao mesmo tempo, poderá aumentar o grau de instabilidade política, chegando, no limite, à volta aos turbulentos anos de 1950/1960. Será mais um desafio a ser enfrentado por nossa frágil democracia.

Qual o impacto político que pode resultar dessa decisão de não punir o general?

A transformação do Exército em instrumento da política do presidente vai afetar as eleições de 2022. A libertação de Lula e a possibilidade de que ele se candidate e, mais ainda, vença as eleições, trazem de volta o fantasma de sua eleição que o general Villas Boas tentou com êxito exorcizar em 2018. A dificuldade que têm os partidos de centro em montar uma terceira via eleitoral vai contribuir para esse cenário polarizado. As Forças Armadas terão que decidir se vão adotar a linha de Villas Boas, configurando nova intervenção política ou se vão reafirmar o papel que se atribuem de instituição do Estado.

Numa dimensão histórica, qual o significado dessa decisão do Exército?

Que me lembre, o único caso que tem alguma semelhança com o atual foi o de 11 de novembro de 1955. JK (Juscelino Kubitschek) ganhara as eleições, mas golpistas militares queriam evitar sua posse. O coronel Bizarria Mamede fez um discurso golpista. O ministro da Guerra, general Lott, quis puni-lo, mas o presidente em exercício, Carlos Luz, não concordou. Lott pediu demissão, mas um grupo de generais, liderados por Odílio Denys, o convenceram a reagir. Carlos Luz e Café Filho foram depostos e Nereu Ramos, presidente do Senado, assumiu a presidência. Em janeiro de 1956, JK tomou posse. Foi uma espécie de golpe preventivo, a favor da lei, causado pela não punição de um oficial golpista.

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