sexta-feira, 25 de junho de 2021

Fernando Abrucio* - Democracia é maior que o presidente

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O que está em jogo em 2022 não é apenas quem ocupará o Planalto; é preciso prestar atenção às outras arenas do poder

O cargo de presidente da República é a peça-chave do sistema político brasileiro. É por esta razão que no centro do debate atual está a eleição presidencial de 2022. Porém, há outras arenas políticas que serão decisivas para o futuro do país e da democracia brasileira e não podem ser esquecidas. Uma análise multidimensional é fundamental para escapar de uma visão simplista sobre a governabilidade no Brasil e perceber como o bolsonarismo quer ir além da conquista do Palácio do Planalto. E só uma estratégia política ampla poderá combater o avanço do populismo de extrema direita.

Antes de analisar a multiplicidade de arenas decisivas do sistema político brasileiro é preciso esmiuçar um pouco mais a natureza do poder presidencial. Sua força tem três raízes. A primeira é institucional, derivada dos poderes que a Constituição dá ao ocupante desse posto. O presidente tem um grande poder de nomeação (algo em torno de 20 mil cargos comissionados, além das indicações para os tribunais superiores), de iniciar e influenciar os processos legislativos, de controlar discricionariamente boa parte do fluxo de despesas. A caneta é forte, como gosta de lembrar o próprio presidente Jair Bolsonaro.

O poder presidencial também se alimenta, em segundo lugar, da legitimidade popular majoritária. Ao início do mandato, há até uma lua de mel inicial com os outros atores do sistema político. Passado um período governamental, que varia segundo a capacidade política de cada presidente, os atores começam a olhar a popularidade presidencial como medidor de sua força política. No momento, por exemplo, Bolsonaro não tem suporte social suficiente para evitar uma CPI importante como a da covd-19, que já está arranhando sua imagem, mas tem por ora o percentual de apoio popular necessário para que o presidente da Câmara tema colocar a votação de impeachment na pauta.

O terceiro e último elemento do poder presidencial é sua dimensão simbólica. Desde Vargas houve uma mudança não só institucional na Presidência da República. Todas as falas do presidente são tomadas como referência para a nação. Como Bolsonaro tem um apoio mínimo que varia de 15% a 25%, é de se esperar que essa parcela da sociedade acredite no que ele fale e o siga. É isso que tem acontecido na pandemia. Ao não usar máscara e incentivar aglomerações, Bolsonaro conseguiu influenciar uma quantidade suficiente de pessoas para inviabilizar o isolamento social, o que já lhe imputa uma responsabilidade política direta pela morte de milhares de brasileiros.

Só que o presidente não pode tudo no sistema político brasileiro erigido pela redemocratização. A Constituição de 1988 lhe impõe limites legais e estabelece uma série de controles. Além disso, a independência dos outros Poderes e uma estrutura federativa com Estados e municípios autônomos geram uma governança mais complexa e democrática do país. A conquista da democracia, ademais, não se esgota nas instituições estatais. Há todo um conjunto de organizações da sociedade que são fundamentais para definir os parâmetros das decisões políticas. Parafraseando a famosa frase de Rousseau, no regime democrático o povo não é livre apenas no dia das eleições, pois ele pode, a qualquer momento durante o mandato, manifestar-se e exigir mudanças das políticas públicas.

Bolsonaro sonha em ter um poder imperial. Por isso, seus elogios à ditadura militar e suas críticas a toda limitação democrática de poder que lhe foi imposta durante seu governo. Quando fala do “povo”, está falando de seus apoiadores mais fiéis - o restante é tratado como minorias que devem obedecer à maioria. A maneira agressiva como trata a imprensa revela bem o quanto o bolsonarismo preza a democracia.

Entre o sonho e a realidade, Bolsonaro percebeu que precisa ter mais poder sobre quem lhe impõe limites democráticos. Seu objetivo é controlar melhor, numa possível reeleição, o Congresso Nacional, os órgãos de controle institucional, especialmente o STF, reduzir ao máximo o número de governadorias independentes do governismo e diminuir a importância da sociedade civil ou mesmo deslegitimá-la em suas formas de ação política. Essa estratégia de atuação do bolsonarismo já foi iniciada, enquanto a heterogênea oposição concentra muito sua discussão no pleito presidencial, brigando mais do que atuando conjuntamente.

O que está em jogo em 2022 não é apenas quem será o próximo presidente da República. É um ponto importante, obviamente, mas há muito mais em disputa, porque a questão estratégica é sobre como o país será conduzido e como isso afetará o desenvolvimento e a democracia brasileira. Daí que é preciso prestar mais atenção nas outras arenas de poder, a começar da eleição congressual.

Regularmente se diz no Brasil que só uma coisa é certa após a eleição presidencial: todos os presidentes têm de governar com o Centrão. Assim ocorreu desde Sarney e os governantes do PSDB e do PT não escaparam dessa sina. Bolsonaro até disse na campanha que os membros do Centrão eram ladrões, mas, quando temeu o impeachment, fez um acordo com eles e entregou muito mais poder a esse grupo do que qualquer outro presidente já fizera.

Mas a diferença entre os governos não está apenas na quantidade de poder que repassaram ao Centrão. Há outra distinção ainda mais importante: a capacidade de o Executivo conduzir essa aliança, estabelecendo uma agenda modernizadora que é negociada com os setores representantes do atraso. E vale aqui dizer que o projeto modernizador vai além das chamadas reformas econômicas, pois presidentes como FHC e Lula tiveram um reformismo voltado também ao combate da desigualdade social, à proteção ambiental, à garantia dos direitos humanos e ao reforço das instituições democráticas.

Para que dê certo qualquer projeto modernizador é preciso ter uma parcela dos parlamentares com uma visão modernizante e que dialogue com o Centrão da ocasião. O fato é que o bolsonarismo vai procurar eleger pessoas com um perfil oposto ao que o país necessita para se modernizar e defender a democracia. As oposições devem falar disso ao longo da campanha e procurar mostrar à sociedade que é necessário termos deputados e senadores capazes de evitar a continuidade do quadro atual, em que há cada vez mais pobres negros mortos na periferia, destruição da educação, desalento completo dos jovens sem emprego, florestas destruídas, imagem internacional completamente negativa e a construção de um novo condomínio de interesses patrimonialistas e autoritários para dominar o Estado brasileiro.

Destaque especial deve ser dado aqui ao Senado. Trata-se da casa legislativa que muitas vezes equilibra o jogo com o Centrão. Um terço das cadeiras será renovado em 2022. Essa nova composição de senadores poderá definir se teremos controle democrático sobre o próximo presidente ou não.

O bolsonarismo também atua na arena do funcionalismo público para implantar sua agenda. Carreiras civis estão sendo enfraquecidas e a proposta de reforma administrativa que está em debate poderá dar um poder ainda maior de nomeação ao presidente da República, favorecendo uma politização patrimonialista que nenhum governante teve a seu dispor. Imagine que um maior poder discricionário poderá multiplicar gestões desastrosas como a da pandemia, em que amadores cuidaram da saúde pública. Desse modo, aqui está uma arena fundamental para a modernização do país e é preciso criar remédios ante os Weintraubs, os Salles, os Pazuellos e afins - com este tipo de gestor, a decadência do Brasil é certa.

Uma das principais barreiras ao autoritarismo está no Supremo Tribunal Federal. No próximo quadriênio, dois de seus ministros se aposentarão. Se Bolsonaro for reeleito, escolherá então quatro entre os onze membros do STF. Desse modo, essa trincheira ao arbítrio continuará do lado da democracia. Mas para que isso seja garantido, as oposições precisam ter uma visão mais estratégica e ao longo da campanha mostrar a importância dessa Corte para o país. Os contrários ao bolsonarismo que sejam petistas e antipetistas podem listar diversas decisões judiciais das quais discordam, mas é bom lembrar que sem um Supremo forte ambos os grupos podem perder, porque há o risco de quebra democrática.

As eleições a governador constituem outra arena fundamental para evitar o retrocesso do país. Os governos estaduais foram o principal contrapeso à postura negacionista do presidente Bolsonaro, responsável pelo altíssimo número de mortes no Brasil. Se o governador João Doria não tivesse atuado pela vacina, o governo federal não teria se mexido. No fundo, o federalismo não só evitou os desmandos autoritários da Presidência, como teve de lidar com a negligência da União em políticas públicas como saúde e educação.

A discussão sobre 2022 não pode esquecer que as eleições são fundamentais, mas que a manutenção de uma sociedade civil autônoma, forte e atuante é a maior fiadora da democracia. Os que se opõem ao bolsonarismo deveriam combinar o seguinte: os partidos podem ter seus candidatos próprios à Presidência, ao mesmo tempo que deveriam todos se juntar até o período eleitoral em torno de grandes manifestações de massa contra Bolsonaro. Sem isso, o risco é que no final se perca aquilo que garante a divergência dentro da sociedade e da oposição: a democracia.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

 

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