sexta-feira, 25 de junho de 2021

José Eli da Veiga*- Outra mente brilhante

Valor Econômico

A um mês de seu centenário, Edgar Morin esbanja incomparável agilidade cognitiva

Se um inverno nuclear, ou cibernético, puder ser evitado, demorará bem menos do que se imagina para que boa parte dos humanos possa comemorar suas 120 ou 130 primaveras. Já se considera certeza que metade das atuais crianças americanas chegue aos 104 e metade das japonesas, aos 115.

A dúvida é quantas permanecerão lúcidas. Continua a ser raríssimo que alguém se aproxime dos 100 em razoável gozo de suas qualidades mentais. Motivo para que seja tão admirável a longa entrevista concedida por Edgar Morin ao melhor programa da televisão francesa - “La Grande Librairie” -, no último dia 9.

A um mês de seu centenário, no dia 8 de julho, ele esbanjou incomparável agilidade cognitiva ao discorrer sobre o mais recente de seus setenta livros: “Lições de um século de vida”, já lançado pela editora Denoël. Uma poderosa síntese de seu percurso intelectual, exemplarmente transdisciplinar.

Muita hesitação precedeu a redação desta coluna, que só pode ser de agradecimento, além de homenagem. Pois é impossível dar conta, neste espaço do Valor, da importância de suas contribuições científicas, filosóficas, antropológicas, sociológicas, pedagógicas, mas, sobretudo, epistemológicas.

Claro, o ideal seria conseguir atrair mais candidatos à leitura dos seis volumes de “O Método”, que tratam, respectivamente, da natureza, da vida, do conhecimento, das ideias, da humanidade e da ética. Publicados entre 1977 e 2004, estão todos traduzidos e organizados, em coleção, pela Editora Sulina.

Porém, quantos mortais viriam a encarar tão difíceis 2.500 páginas? Quantos já o teriam feito? Simples busca virtual por teses e dissertações indica que foram raríssimos os pesquisadores a se aventurarem pelo cerne teórico do imenso feixe de análises oferecido por Morin.

Então, melhor é indicar algo bem mais acessível, capaz de encorajar mergulhos mais profundos. Por tal critério, a recomendação só pode ser o livro “Meu Caminho”, traduzido por Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco (Bertrand Brasil, 2010).

Não há melhor introdução à monumental obra de Morin do que estas treze entrevistas, concedidas, em 2008, à jornalista Djénane Tager. Em linguagem coloquial, estão realçadas suas contribuições sociológicas, os estudos de física e biologia que o levaram à teoria da complexidade, a justificativa da escolha do termo “método”, sua maneira de analisar o estado do mundo, sua visão da educação do futuro. Tudo em meio a reflexões sobre a vida e a morte.

No epílogo, diz que sua existência parece ter se desenrolado em ciclos de dez anos. A começar por 1931, quando a morte da mãe o alçou a outra vida, e, em 1941, quando, aos vinte, preferiu arriscar-se à morte como resistente antinazista, em vez de mera e medíocre sobrevivência.

Em 1951, aos 30, rompeu definitivamente com o comunismo, depois de seis anos de traumática convivência com companheiros de guerra que haviam se tornado estalinistas. Aliás, sua Autocrítica, que só conseguiu redigir em 1958, continua a ser o melhor imunizante a quem se deixar empolgar pelo lado utópico de Marx, em vez de estudar suas contribuições científicas.

Em 1961, descobre a América Latina e, logo depois, de passagem por Nova York, se vê à beira da morte, em leito do hospital Monte Sinai. Ao sair do coma, literalmente “renasce”.

Em 1971, na Califórnia, emerge o projeto de “O Método”, ao concluir pesquisa no Instituto Salk de Biologia. Só que, aí, seu relato dá um salto para 1991, quando a implosão da União Soviética e novo surto da globalização o levam a publicar “Terra-Pátria” (Sulina, 1995) e “Rumo ao abismo?” (Bertrand, 2011).

Pode-se acrescentar, porém, que, em 1981, recebeu a mais elevada distinção honorífica francesa, a “Légion d’honneur” e, em 2001, a Medalha Aristóteles, da Unesco. E que, em 2011, publicou seu livro mais estratégico: “A Via para o Futuro da Humanidade” (Bertrand Brasil).

Não há como deixar de torcer, portanto, para que a safra de 2021 também dê início a outro ciclo decenal. Ao menos é este o espírito de inúmeras iniciativas de comemoração do centenário. Principalmente, nas dezenas de países com universidades que lhe concederam títulos honoris-causa.

Por aqui, estão indo para as livrarias duas coletâneas, precedidas por grande evento virtual, articulado pela instituição que mais se dedica à divulgação dos pensamentos de Edgar Morin, o Sesc-SP. Nesta segunda 28 de junho, Danilo Santos de Miranda o acolherá na abertura de duas jornadas voltadas à profusão “de suas interpretações e inspirações, para as incertezas do futuro e o futuro das incertezas no mundo contemporâneo”.

Também, pela editora do Sesc-SP, sairá a coletânea “Edgar Morin: homem de muitos séculos - Um olhar latino-americano”, organizada por Elimar Pinheiro do Nascimento, Maurício Amazonas e Alfredo Pena-Vega, docentes do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB). Lançamento posterior a uma perspectiva exclusivamente brasileira, editada pelo professor Edgard de Assis Carvalho (PUC-SP): “Complexidade no Século XXI” (Sulina).

*José Eli da Veiga é professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP

 

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