sexta-feira, 25 de junho de 2021

Flávia Oliveira - Tragédia evitável

O Globo

Enquanto avança numa inesperada linha de investigação de favorecimento a agente privado — quiçá corrupção — na compra da vacina indiana Covaxin, a CPI da Covid deu importante contribuição à sociedade brasileira em esmiuçar a dimensão da crise que já ceifou a vida de mais de meio milhão de habitantes. Na sessão de ontem, Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional Brasil e representante do Grupo Alerta, e Pedro Hallal, epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, deixaram claro que o país não precisava ser campo de doença e morte. Havia conhecimento, alternativa e gente capaz de nos desviar da tragédia. O governo de Jair Messias Bolsonaro nos guiou para o abismo.

O estudo sobre mortes evitáveis, produzido por pesquisadores de UFRJ, Uerj e USP para as organizações sociais que formam o Alerta, mostrou que medidas de distanciamento social e controle — incluindo testagem e rastreamento nunca implementados — reduziriam em 40% o potencial de transmissão da doença. Mesmo sem vacina ou medicação específica, 120 mil brasileiros teriam sobrevivido ao primeiro ano da pandemia, houvesse uma adequada política de enfrentamento, informou Jurema.

Pedro Hallal lembrou que o Brasil abriga 2,7% da população global, mas até aqui contabilizou 12,9% dos óbitos por Covid-19. Se acompanhássemos a média mundial de mortes pela doença, quatro de cinco vítimas teriam se salvado. A demora na compra e aplicação de vacinas, CoronaVac e Pfizer em particular, levou entre 95 mil e 145 mil brasileiros a óbito, continuou. Março e abril de 2021 foram os meses mais letais da pandemia. Hoje o país não chegou a 12% de adultos imunizados com duas doses e acomodou-se num patamar superior a 2 mil mortes por dia.

Não há quem no Brasil tenha passado ileso pela crise sanitária. Todo mundo integra ou conhece uma família enlutada pela pandemia. Em 2020, só 49 municípios brasileiros tinham mais de 500 mil habitantes, total de mortes que a Covid-19 alcançou no último sábado — e que só mereceu lamento protocolar do presidente da República, dois dias depois. No domingo, numa rede social, o deputado Osmar Terra, apontado pela CPI como líder do grupo que orientou a política pública de imunidade coletiva por contágio, se referiu à tragédia como “fragilidade diante das forças da natureza”. Não foi.

Os resultados nefastos da pandemia são decorrentes de o governo “não cumprir as políticas de saúde”, resumiu a médica e ativista Jurema. Numa sociedade desigual como a brasileira, doença e morte se abateram mais gravemente sobre os grupos mais vulneráveis: negros, indígenas, pessoas de baixa renda e escolaridade. Hallal revelou à CPI que um gráfico com informações étnico-raciais foi censurado em apresentação no Palácio do Planalto no ano passado: “(O slide) mostrou que as populações indígenas tinham cinco vezes, em média, maior risco de contaminação do que as populações brancas. Que as populações negras, sejam pretas ou pardas, tinham o dobro do risco de infecção”.

Na quarta-feira, o IBGE tornou público um conjunto de indicadores de moradia pré-pandemia. Quase quatro em dez domicílios não tinham rede geral ou abastecimento regular de água quando a Covid-19 começou a se espalhar no Brasil; 9,8% da população vivia com seis ou mais moradores na mesma residência; 8% dos pobres não tinham banheiro em casa. São situações que dificultam, mas não impedem, o combate a um mal que depende de mãos higienizadas, ambientes arejados e isolamento residencial.

No Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, o programa Conexão Saúde — parceria entre Fiocruz, Redes da Maré e outras organizações — conseguiu mapear casos, impor isolamento e quarentena e, assim, reduzir óbitos por Covid-19. Em 15 semanas, o total de notificações da doença (testagem) saltou 140% (de 1.150 para 2.764), e o de mortes caiu 61% (de 192 para 74). Pacientes e familiares receberam assistência médica e psicológica, orientações sobre isolamento, kits de alimentação, higiene e limpeza para 14 dias de distanciamento.

São medidas que os níveis de governo, desarticulados, não foram capazes de pôr de pé em quase um ano e meio de pandemia. Mas ainda podem, porque a tragédia não chegou ao fim. Pedro Hallal apelou aos senadores pela necessidade de o Brasil vacinar em média 1,5 milhão de pessoas por dia e, para derrubar curvas de incidência e óbitos, impor três semanas de rigoroso isolamento social. Jurema levou à CPI uma lista de recomendações, incluindo a criação de um memorial pelas vidas perdidas; plano de responsabilização e reparação às famílias e à sociedade; formação de uma Frente Ampla de Enfrentamento à Covid-19; aplicação de medidas para reduzir a transmissão; e investimentos no Sistema Único de Saúde. Há tempo. Tem de haver.

 

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