terça-feira, 22 de junho de 2021

Joel Pinheiro da Fonseca - Vale dar palco a um negacionista na CPI?

Folha de S. Paulo

Osmar Terra pode responder questões sobre gabinete paralelo e cloroquina

Questiona-se se é uma boa ideia colocar o deputado Osmar Terra para depor na CPI. Afinal, o deputado, ao longo de 2020, defendeu o uso de cloroquina e, com mais insistência, a imunidade de rebanho.

Na previsão do deputado, o Brasil teria menos de 800 mortos no total (previsão repetida pelo presidente em live). E estávamos sempre às vésperas do fim da pandemia: maio, junho, setembro, dezembro; a imunidade de rebanho estava sempre ali do lado, já ia chegar. No mundo real, as mortes se acumulavam e não paravam de subir. Até hoje não se desculpou. Não duvido que já esteja prevendo imunidade de rebanho para julho.

O receio de quem critica sua ida à CPI é que, com isso, dar-se-á palco ao charlatanismo que ele vem defendendo. Esse receio faria sentido algumas décadas atrás. No passado, manter alguém fora dos meios institucionais da comunicação —as colunas de jornais, entrevista na TV, cadeiras universitárias ou mesmo um depoimento público numa CPI— era de fato limá-la do debate público. Suas visões jamais chegariam ao grande público.

Hoje isso acabou. Chega-se ao grande público diretamente pelas redes sociais e aplicativos de mensagens —como o WhatsApp ou Telegram. É possível ter milhões de seguidores fanáticos sem nunca ter aparecido na TV ou sido citado no jornal.

No caso da cloroquina, ela já está literalmente na boca do povo. É tarde para impedir isso. Ela teve, é claro, um importante impulsionamento institucional: o próprio presidente a promoveu em seus canais de comunicação (nas redes sociais).

Nesses meios, Osmar Terra é celebridade. Tê-lo na CPI não alterará o alcance da propaganda cloroquinesca. Pelo contrário: confrontá-lo na CPI é uma chance de apresentar à população que acompanha o deputado algum tipo de refutação ou discurso alternativo, que mostre o estado real da ciência.

Considero um erro transformar a CPI em palco de um debate científico, porque não é esse seu objetivo. A presença de cientistas sem ligação direta com o governo pouco adiciona às investigações.

Osmar Terra é um caso diferente. Ele foi diretamente relevante na condução da política do governo federal. Bolsonaro citava os números de Terra em suas lives e aderiu à sua crença na imunidade de rebanho natural. Ele era um dos possíveis integrantes do gabinete da Saúde paralelo formado pelo empresário Carlos Wizard.

Segundo o próprio Wizard disse em uma live, a missão do gabinete —promover o uso da cloroquina— lhe fora dada pelo ministro Pazuello.

Sim, a política de saúde pública brasileira durante a pandemia foi terceirizada a um gabinete paralelo integrado por charlatães vendedores de um remédio ineficaz, sem nenhum tipo de transparência ou possibilidade de prestação de contas. A CPI tenta sanar isso.

Muitas questões permanecem: com base no quê o presidente decidiu se tornar garoto-propaganda deste remédio? Quem o aconselhou, e se não era gente do Ministério da Saúde, de onde era? Houve tentativa de beneficiar empresas aliadas ao presidente? Quanto dinheiro público foi gasto para produzir, comprar e distribuir cloroquina e para fazer e lançar o aplicativo TrateCov? Quem ganhou esse dinheiro?

E, por fim: a promoção do remédio, aliada ao simultâneo combate ao isolamento social e à vacinação, tinha como finalidade acelerar a imunidade de rebanho entre a população? Manaus foi palco de teste dessa hipótese? Osmar Terra, caso seja obrigado a falar a verdade, pode nos ajudar a responder essas perguntas.

 

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