segunda-feira, 12 de julho de 2021

Demétrio Magnoli - Duas estratégias diante do vírus

O Globo

O governo de Boris Johnson anunciou o “Dia da Liberdade”, 19 de julho, quando caem as restrições sanitárias internas. O Reino Unido tem elevadas taxas de óbitos acumulados (188 por 100 mil habitantes) e de imunização completa (superior a 50%). Simultaneamente, a Austrália estendeu mais um lockdown na Grande Sydney, e a Nova Zelândia suspendeu a bolha de viagens que conecta os dois países. As duas nações da Oceania têm baixas taxas de óbitos acumulados (menos de 4 por 100 mil) e de imunização (inferiores a 11%). “Conviver com o vírus”, como escolheram os britânicos, ou “Covid Zero”, como pregam australianos e kiwis?

“Países diferentes fazem escolhas diferentes”, declarou a primeira-ministra neozelandesa, Jacinda Ardern. Seu compatriota, o epidemiologista Michael Baker, falou em outro tom: “Sempre temos de ser céticos sobre aprender lições de países que fracassaram rotundamente”. Segundo os arautos da estratégia “Covid Zero”, os países da Europa “fracassaram rotundamente”, pois não evitaram a disseminação do coronavírus. O julgamento, porém, é menos óbvio do que sugerem as taxas de óbitos.

O lockdown inicial da Itália foi declarado em 9 de março de 2020, semanas antes dos lockdowns da Austrália e da Nova Zelândia. As duas nações insulares cortaram a circulação do coronavírus, o que não ocorreu na Itália. O “fracasso” europeu decorreu de circunstâncias incontroláveis: no começo de 2020, etapa de circulação oculta do vírus, as nações europeias foram atingidas muito mais intensamente que as da Oceania. Na prática, a Europa jamais teve a oportunidade de escolher a estratégia “Covid Zero”.

Os europeus aplicaram sucessivos lockdowns para preservar seus sistemas de saúde e engajaram-se em rápidas campanhas de vacinação. O Reino Unido imunizou mais velozmente que a União Europeia — e, finalmente, decidiu abrir. Johnson avisou que o número de casos crescerá exponencialmente e que o país experimentará algum incremento de mortes, mas aposta que a imunização quebrou o vínculo entre contágios, de um lado, e hospitalizações e óbitos, de outro. As vacinas não evitam contágios e, portanto, o vírus seguirá circulando. Se não abrir agora, quando?

Australianos e kiwis também fizeram lockdowns, mas para suprimir discretos surtos de contágios. Fecharam hermeticamente suas fronteiras, a tal ponto que cidadãos australianos residentes no exterior foram impedidos de retornar à pátria. Sob uma ilusória sensação de segurança, começaram a vacinar tardia e lentamente. Agora, são reféns da doutrina “Covid Zero”: só podem reabrir se aderirem à estratégia de conviver com o vírus.

Johnson faz aposta de risco, especialmente porque seu país não atingiu 70% de imunizados. O perigo intrínseco foi agravado pela deliberação controversa de cancelar a regra do uso de máscaras, até mesmo para lugares fechados com aglomerações. Mas o governo britânico cumpre a promessa associada à campanha de imunização, de plena restauração das liberdades públicas. A União Europeia logo deverá seguir pelo mesmo caminho, já trilhado pelos EUA.

Baker, o epidemiologista neozelandês, avalia que seu país se encontra em “posição privilegiada” diante da pandemia. Não é bem assim: os dois estilhaços do Império Britânico na Oceania aproximam-se do ponto de esgotamento da estratégia de supressão do coronavírus. Seus governos precisam insistir em lockdowns e no isolamento externo enquanto não avançarem na imunização vacinal. Contudo, mesmo depois, como reabrir sem aceitar a circulação comunitária do vírus?

“Conviver com o vírus” parece ser a estratégia inevitável para todas as nações, até que apareçam vacinas capazes de evitar contágio. Scott Morrison, primeiro-ministro da Austrália, começa a curvar-se à realidade. Ele delineou um “mapa de reabertura” em quatro fases, explicando que, na penúltima, a Covid-19 será tratada “como qualquer outra doença transmissível”.

A Nova Zelândia, por seu lado, ainda não renunciou à utopia de “Covid Zero”, que se tornou fonte de orgulho nacional. Segundo os cínicos, os kiwis se arriscam a converter-se numa segunda Coreia do Norte.

 

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