O Globo
O governo de Boris Johnson anunciou o “Dia
da Liberdade”, 19 de julho, quando caem as restrições sanitárias internas. O
Reino Unido tem elevadas taxas de óbitos acumulados (188 por 100 mil
habitantes) e de imunização completa (superior a 50%). Simultaneamente, a
Austrália estendeu mais um lockdown na Grande Sydney, e a Nova Zelândia
suspendeu a bolha de viagens que conecta os dois países. As duas nações da
Oceania têm baixas taxas de óbitos acumulados (menos de 4 por 100 mil) e de
imunização (inferiores a 11%). “Conviver com o vírus”, como escolheram os
britânicos, ou “Covid Zero”, como pregam australianos e kiwis?
“Países diferentes fazem escolhas diferentes”, declarou a primeira-ministra neozelandesa, Jacinda Ardern. Seu compatriota, o epidemiologista Michael Baker, falou em outro tom: “Sempre temos de ser céticos sobre aprender lições de países que fracassaram rotundamente”. Segundo os arautos da estratégia “Covid Zero”, os países da Europa “fracassaram rotundamente”, pois não evitaram a disseminação do coronavírus. O julgamento, porém, é menos óbvio do que sugerem as taxas de óbitos.
O lockdown inicial da Itália foi declarado
em 9 de março de 2020, semanas antes dos lockdowns da Austrália e da Nova Zelândia.
As duas nações insulares cortaram a circulação do coronavírus, o que não
ocorreu na Itália. O “fracasso” europeu decorreu de circunstâncias
incontroláveis: no começo de 2020, etapa de circulação oculta do vírus, as
nações europeias foram atingidas muito mais intensamente que as da Oceania. Na
prática, a Europa jamais teve a oportunidade de escolher a estratégia “Covid
Zero”.
Os europeus aplicaram sucessivos lockdowns
para preservar seus sistemas de saúde e engajaram-se em rápidas campanhas de
vacinação. O Reino Unido imunizou mais velozmente que a União Europeia — e,
finalmente, decidiu abrir. Johnson avisou que o número de casos crescerá
exponencialmente e que o país experimentará algum incremento de mortes, mas
aposta que a imunização quebrou o vínculo entre contágios, de um lado, e
hospitalizações e óbitos, de outro. As vacinas não evitam contágios e,
portanto, o vírus seguirá circulando. Se não abrir agora, quando?
Australianos e kiwis também fizeram
lockdowns, mas para suprimir discretos surtos de contágios. Fecharam
hermeticamente suas fronteiras, a tal ponto que cidadãos australianos
residentes no exterior foram impedidos de retornar à pátria. Sob uma ilusória
sensação de segurança, começaram a vacinar tardia e lentamente. Agora, são
reféns da doutrina “Covid Zero”: só podem reabrir se aderirem à estratégia de
conviver com o vírus.
Johnson faz aposta de risco, especialmente
porque seu país não atingiu 70% de imunizados. O perigo intrínseco foi agravado
pela deliberação controversa de cancelar a regra do uso de máscaras, até mesmo
para lugares fechados com aglomerações. Mas o governo britânico cumpre a
promessa associada à campanha de imunização, de plena restauração das
liberdades públicas. A União Europeia logo deverá seguir pelo mesmo caminho, já
trilhado pelos EUA.
Baker, o epidemiologista neozelandês,
avalia que seu país se encontra em “posição privilegiada” diante da pandemia.
Não é bem assim: os dois estilhaços do Império Britânico na Oceania
aproximam-se do ponto de esgotamento da estratégia de supressão do coronavírus.
Seus governos precisam insistir em lockdowns e no isolamento externo enquanto
não avançarem na imunização vacinal. Contudo, mesmo depois, como reabrir sem
aceitar a circulação comunitária do vírus?
“Conviver com o vírus” parece ser a
estratégia inevitável para todas as nações, até que apareçam vacinas capazes de
evitar contágio. Scott Morrison, primeiro-ministro da Austrália, começa a
curvar-se à realidade. Ele delineou um “mapa de reabertura” em quatro fases,
explicando que, na penúltima, a Covid-19 será tratada “como qualquer outra
doença transmissível”.
A Nova Zelândia, por seu lado, ainda não
renunciou à utopia de “Covid Zero”, que se tornou fonte de orgulho nacional.
Segundo os cínicos, os kiwis se arriscam a converter-se numa segunda Coreia do
Norte.
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