segunda-feira, 5 de julho de 2021

Denis Lerrer Rosenfield* - O significado do não

O Estado de S. Paulo

Não deixa de ser algo indesejado que o não a Bolsonaro volte a ser um sim ao petismo

A sociedade brasileira tem oscilado de um não a outro, sem saber precisamente o que quer. Disse não ao petismo, sem saber exatamente em quem ou em que votava. Pesquisas de opinião mostram atualmente outro não, o não ao atual presidente e ao bolsonarismo, passando, na falta de opção, a uma escolha por Lula, farta do atual governo e dos seus descalabros mórbidos. Saímos do antipetismo, para o antibolsonarismo, sem que se desenhe, por enquanto, o sim a outros valores e princípios. A sociedade sabe o que não quer, mas não o que quer.

Caberia à classe política descortinar esse novo horizonte, apresentando novas ideias, fazendo com que o não se torne um sim que ultrapasse esses dois tipos de negação, que estão levando o Brasil a um impasse e a um futuro sombrio. Contudo o navegar nestes mares revoltos está exibindo, até agora, a ausência de um condutor, de um partido que consiga indicar um rumo, embora aqui e ali se consigam ouvir algumas vozes alternativas se desenhando. Mas o que impera é a polarização entre Bolsonaro e Lula numa rixa que parece não ter fim.

O antipetismo na eleição do presidente Bolsonaro teve a sua razão de ser. Os 13 anos do reinado petista terminaram no desalinhamento total do País, deixando-o com divisões profundas. A corrupção foi o sinal mais visível, dando força à emergência da Operação Lava Jato, prometendo uma limpeza das instituições.

O PT afundou no lamaçal sem saber o que dizer, até ser resgatado pelo Supremo Tribunal Federal, que, em seu afã de lutar contra excessos dessa operação, terminou dando carta de cidadania para que Lula surgisse novamente. O partido, que não tinha mais nem narrativa, ganhou uma, a de que Lula seria “inocente”, quando as provas contra os governos petistas foram e são abundantes. O ex-presidente foi literalmente ressuscitado. Diria que foi um “milagre” jurídico.

Bolsonaro foi astuto. Soube arvorar a bandeira contra a corrupção, alçou o seu símbolo, o juiz Sergio Moro, a ministro da Justiça, colocando-se como seu mais digno representante. Seria um justo a redimir o País. Mas a realidade, vemos agora, é bem outra. O ex-juiz foi defenestrado, a Lava Jato foi enterrada com o apoio do presidente e a sua preocupação central tornou-se defender seus filhos de qualquer acusação. Tanto defender significa que há algo a esconder.

Lula pretende, por sua vez, se apresentar como alternativa, procurando fazer tábula rasa de seus malfeitos. Se é bem verdade que seu primeiro governo foi muito bom, graças a uma dupla liberal, Antônio Palocci e Henrique Meirelles, nada mais fazendo do que seguir a herança bendita do governo Fernando Henrique Cardoso, apesar de o petista esbravejar esquizofrenicamente contra ela.

O Lula que o próprio personagem procura resgatar é o de seu primeiro mandato nas esferas econômica e social, embora lá o esgoto moral já se fizesse presente. O verdadeiro Lula é o da segunda metade do segundo mandato e o seu resultado no governo Dilma. O Brasil mergulhou na crise econômica, fiscal, ética e social, profundamente fraturado e desesperançado, com as conquistas sociais do primeiro mandato relegadas às traças. Apesar de não querer dizê-lo, Lula é Dilma.

Bolsonaro, após receber um governo arrumado do ex-presidente Temer, pronto para deslanchar, saiu à procura de inimigos imaginários, procurando encontrar comunistas até debaixo da cama. Em vez de aproveitar a oportunidade que a sociedade lhe ofereceu, partiu para o aprofundamento das divisões políticas. O liberalismo anunciando foi morto de morte morrida. Nem se fala mais de redução dos gastos estatais, de controle do desperdício, da luta contra a corrupção. Em seu lugar só se fala em aumento de impostos, com os rigores do disfarce de que não haverá aumento nenhum.

O tratamento dado à pandemia é macabro. Recusa de vacinas, tergiversações, apropriação de vacinas de iniciativa alheia (caso da Coronavac, tomada do governador João Doria), negacionismo, troças contra o uso de máscaras e, com o seu exemplo, pondo o povo cada vez mais em risco. Não bastava a pandemia, temos agora o demônio a incentivá-la. Valores religiosos e morais foram estilhaçados, com o abandono do (e o ódio ao) próximo. Não é demais lembrar que, até hoje, o presidente não visitou nenhum hospital, nenhum lar de idosos, nenhum orfanato. Ausência completa de compaixão! Para fechar a cena atual, temos as “negociações” da vacina indiana Covaxin, com a corrupção batendo à porta do Palácio do Planalto.

Não deixa, porém, de ser algo indesejado que o não ao projeto de Bolsonaro volte a ser um sim ao petismo, também rechaçado. Se Lula tem alto índice de intenção de votos, é por ausência de opção. Os seus potenciais eleitores não são petistas e lulistas, mas tão somente antibolsonaristas, da mesma forma que nas últimas eleições foram antipetistas, e não pró-Bolsonaro. Falta um nome e um conjunto de ideias, valores e princípios que sejam um sim que diga não à polarização atual.

*Professor de filosofia na UFGRS.

Nenhum comentário:

Postar um comentário