segunda-feira, 19 de julho de 2021

Jairo Saddi - Ainda sobre a reforma tributária

Valor Econômico

A tributação sobre o lucro deveria ser a primeira opção. É melhor porque previne atalhos indesejáveis

Hesitei em tratar da reforma tributária aqui neste espaço por duas razões. A primeira, e mais óbvia, é que não sou tributarista, e muitos outros, melhor e de forma mais especializada, trataram do tema. A segunda é um certo enfado: mais uma vez, vê-se desperdiçada a oportunidade de uma reforma séria e duradoura. Mas me rendo ao tema e ao debate pela atualidade e importância do momento. Preferi, no entanto, optar por uma análise mais principiológica, tomando emprestado aquilo que já um dia estudei, ou seja, a escola do Law & Economics, entre nós conhecida como a Análise Econômica do Direito.

A visão da Análise Econômica do Direito sobre o sistema tributário é cruelmente simplista e direta: impostos devem existir apenas para que o serviço público se pague. A discussão a respeito da influência do sistema tributário na alocação ou na distribuição de recursos só é considerada como meio para que cada indivíduo se aproprie do seu quinhão no sistema, já que os bens públicos, oferecidos pelo Estado, são, por definição, indivisíveis. Por exemplo, para Richard Posner, ex-juiz e jurista e um dos principais expoentes do movimento, o sistema tributário ideal seria aquele em que o usuário do serviço público apenas arcasse com o custo de oportunidade do seu uso. Por esse viés, o serviço público estaria sendo tratado como se fosse um bem privado, o que, reconhece Posner, por si só é impossível. Assim, não cabe a um indivíduo se recusar a pagar pela segurança nacional, porque dela não faz uso ou, posto de outra forma, querer pagar somente pela segurança do bairro onde mora. No entanto, os impostos devem remunerar a estrutura estatal e também servir como forma de incentivo a determinados comportamentos humanos que geram e fazem gerar consequências econômicas.

À luz daquela escola, o sistema tributário ideal comporta quatro grandes premissas gerais: a- uma grande base de contribuintes, que não só facilite a arrecadação de grandes quantidades de recursos, como também garanta a manutenção do Estado moderno, servindo ainda de estímulo aos contribuintes, a fim de que efetuem o pagamento pontual dos impostos; b- a incidência de impostos que possam recair sobre uma atividade cuja demanda é altamente inelástica, ou seja, cuja função de aumento de preço não varie, com o risco de os efeitos de substituição de produtos serem mínimos; c- o não aumento pelo sistema tributário da desigualdade social e a não ofensa à equidade; d- a administração não dispendiosa do sistema tributário. Num resumo de princípios, poder-se-ia afirmar que o sistema tributário deve ser universal e justo, eficiente e compatível com a capacidade contributiva de cada um, simples e efetivo na arrecadação e que possa gerar corretamente os incentivos a todo o sistema econômico.

Tratar desigualmente os iguais e igualmente os desiguais sempre foi um desafio para a humanidade. Há muito que debatemos liberdade de mercado, custos de entrada e observância, equidade, tratamento isonômico e concorrência - ainda que sejam conceitos distintos e inconfundíveis. Pelo critério de igualdade, as regras tributárias não podem ofender a isonomia legal e deveriam ser harmonizáveis como princípios de garantia individual e como mecanismo para tolher favoritismos.

Pois bem, o atual projeto de reforma tributária (PL 2.337) comete alguns sérios equívocos nos seus mais básicos princípios e aqui faço coro às generalizadas críticas de que é de fato um retrocesso. E pior, um retrocesso no pior dos cenários, no qual empresas ainda enfrentam uma recuperação econômica miserável e incerta. E acrescentar insulto à injúria: não há, mais uma vez, qualquer proposta de redução de despesas, salvo um esboço de tímida reforma administrativa cuja chance de ser aprovada é pequena.

Há três formas de extração de impostos: exclusivamente sobre a renda das pessoas físicas ou jurídicas, sobre o consumo de produtos, bens e serviços e, em ambas as hipóteses, que é o caso brasileiro, o consumo e a renda são tributados. Como corretamente afirmou o prof. Heleno Torres durante sua live (05/jul) neste Valor, é preciso cuidar da reforma de tais sistemas conjuntamente e avaliar a carga tributária como um todo e não apenas de forma isolada e particular.

A opção pelos meios ou instrumentos específicos deveria decorrer com base em uma escolha mais técnica, mais precisa e menos preconceituosa e ideológica. Por exemplo, a opção de acabar com os juros sobre capital próprio, a isenção de certos produtos de fundos com lastro imobiliário ou ainda reformar o regime de distribuição de dividendos mediante a pretensa redução do imposto sobre a pessoa jurídica, visa tão-somente um evidente caráter arrecadatório, ignorando qualquer princípio básico do sistema tributário, e tem o condão de empurrar os agentes econômicos para um maior contencioso tributário, redomiciliar empresas ao redor do globo e tornar o investimento por aqui ainda mais incerto.

A tributação sobre o lucro sempre e se possível, deveria ser a primeira opção. É melhor por várias razões, tanto porque previne atalhos indesejáveis por ser exclusiva na fonte. Tributar dividendos, por exemplo, incentiva a distribuição disfarçada de lucros, modalidade de sonegação de difícil enfrentamento como lembrou o ex-Secretário Everardo Maciel sem contar com o estímulo a sofisticados planejamentos tributários.

Tributar só o lucro respeita todos os princípios de Law & Economics, uma vez que não restringe a liberdade do investidor, que pode optar por investir ou reinvestir nessa ou naquela empresa ou até mesmo consumir. Simples e objetivo, como deve ser. Mas não é essa nossa escolha. Definitivamente, estamos perdendo a chance, mais uma vez, de avançar e ter um regime tributário melhor.

 

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