sexta-feira, 9 de julho de 2021

Ricardo José de Azevedo Marinho* - Falência do Velho e a Luta pelo Novo

 

Para minha filha Gabriela Góes Magalhães Marinho Walker.

Vivemos em uma época de “teorias” da conspiração e #fake news. Elas parecem estar por toda parte. Mal ocorre algum evento importante, então os “teóricos” da conspiração começam a trabalhar. O recente mal súbito que acometeu o jogador de futebol da seleção dinamarquesa Christian Eriksen foi envolvido numa #fake news segundo a qual ele teria tomado vacina da Pfizer semanas antes do jogo do dia 12 de junho de 2021 do Campeonato Europeu de Futebol (Eurocopa), contra a Finlândia.

“Teorias” de conspiração como esta são muito difundidas e mais difundidas do que nunca. E uma coisa elas promovem, que é aprofundar a suspeita contra as vacinas e a vacinação. Para os “teóricos” da conspiração, as vacinas e as vacinações dadas aos nossos filhos para a proteção contra doenças perigosas causam autismo, esterilização, alteração de gênero (uma versão própria de uma ideologia que supostamente combateriam) e sexualidade (vista numa ótica de uma prisão biológica), um fato que eles alegam estar sendo encoberto e arquitetado entre os governos, as mídias e os cientistas.

O advento do sistema global das redes de computadores interligados (Internet), é amplamente argumentado, é a principal força por trás da disseminação de tais “teorias”, e elas estão minando a confiança nos sistemas políticos, até mesmo fazendo com que as pessoas questionem cada vez mais os fundamentos da democracia. No Brasil, por exemplo, a confiança no presidente eleito, Jair Bolsonaro, é minada pelo próprio ao disseminar a ideia de que o sistema eleitoral eletrônico, ofertado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conspira para encobrir o fato de que as urnas não dispõem da redundância da impressão do voto e, portanto, não são confiáveis.

Consequentemente o sistema eletrônico de votação é um disfarce para a criação de uma Nova Ordem Mundial, na qual a democracia estaria sendo substituída por uma modalidade de ditadura supostamente diferente daquela adorada e idolatrada pelo próprio Jair Bolsonaro, a de 1964. O Presidente do TSE faz parte da trama, conectado às forças sinistras por trás dele. O STF e todos os opositores, assim como as elites governantes do mundo são, na verdade, jacarés verdes carnívoros conspirando para dominar o planeta, ocultando sua verdadeira identidade e disfarçando-se de seres humanos.

Estas são apenas algumas das “teorias” da conspiração que estão circulando, propagadas através de artigos, redes sociais e #fake news, e incessantemente discutidos em vários lugares de todo o mundo.

Agora vamos tentar entender essa triste toada a partir de cinco crenças amplamente difundidas sobre as “teorias” da conspiração e #fake news: 1º) que são fenômenos novos; 2º) que são produtos da Internet e das redes sociais digitais, ou do relativismo pós-moderno, ou da incerteza sobre a verdade em face da sobrecarga de conhecimento a que todos somos sucessivamente apresentados, ou uma tentativa de reduzir as explicações complexas a algumas fórmulas simples; 3º) que pertencem ao reino da fantasia e são sempre produto de uma imaginação paranoica; 4º) que são particularmente prevalentes nas democracias; e 5º) que todas elas seguem fundamentalmente os mesmos padrões e estruturas de pensamento.

Está claro que as “teorias” da conspiração não são um fenômeno novo, espalhado pela Internet. O assassinato do presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy (1917-1963), em novembro de 1963, tornou-se imediatamente objeto de enorme número de “teorias” da conspiração e #fake news, por exemplo, muito antes de a Internet entrar em nossas vidas. Já poucos meses depois do assassinato, quase metade de todos os americanos entrevistados pensavam que Lee Harvey Oswald (1939-1963) não agira sozinho; em 1983, vinte anos após o assassinato, essa proporção subiu acentuadamente. O advento da Internet realmente reduziu a prevalência das “teorias” da conspiração e #fake news sobre a morte do presidente, que no final de 2013, cinquenta anos depois, havia diminuído entre os norte-americanos.

Mas “teorias” da conspiração e #fake news têm uma história muito mais longa do que esta. A grande Revolução Francesa de 1789-1794, por exemplo, foi permeada por eles, a partir das acusações de Robespierre (1758-1794) de que seus inimigos, como Danton (1759-1794), tinham conspirado com os britânicos para derrubar a Revolução, ou o chamado Grande Medo, quando os camponeses foram instados a se levantar e atacar os proprietários de terras e seus castelos na crença de que eles estavam envolvidos em uma trama aristocrática macabra para assassiná-los. Mesmo antes, a vida política sob o Antigo Regime era repleta de rumores sobre tramas políticas e maquinações nos bastidores. Mesmo sistemas políticos aparentemente estáveis são propensos a tais crenças.

Conclui-se que “teorias” da conspiração e #fake news não parecem ter se tornado mais prevalentes com a invenção e disseminação da Internet; desde a chegada da imprensa na era de Gutenberg (1400-1468), as “teorias” da conspiração foram espalhadas em livros e panfletos, mas podiam igualmente ser espalhadas boca a boca; durante a devastadora Peste Negra em 1349, rumores de que fora causada por uma conspiração judaica para envenenar o abastecimento de água dos cristãos levaram a pogroms em toda a Europa Central, que se espalharam de cidade em cidade, especialmente ao longo do Rio Reno; e no Grande Medo de 1789 a ideia de que a aristocracia estava conspirando para se livrar do campesinato na França foi espalhada de aldeia em aldeia, de boca em boca, como o grande historiador francês Georges Lefebvre (1874-1959) mostrou em seu estudo clássico.

Sempre houve conspirações. Desde que a sociedade humana surgiu, alguns de seus membros reuniram-se em segredo por algum propósito ilícito que desejavam ocultar da sociedade como um todo. Sigilo é um elemento essencial: não só ninguém deve saber o propósito da conspiração ou a identidade de seus membros, como também nem saber que existem.

Desta forma, “teorias” da conspiração e #fake news não são tout court produto da incerteza pós-moderna e/ou do relativismo sobre a verdade. Na verdade, os “teóricos” da conspiração insistem firmemente em que não há nada incerto e/ou relativista sobre a verdade, e você nunca os encontra citando os filósofos Michel Foucault (1926-1984) e/ou Jacques Derrida (1930-2004). O fundamental, para todo gênero de “teorias” da conspiração e #fake news, são as distinções nítidas (ou não) e intransigentes entre verdade e falsidade. Supostamente toda linha oficial é descartada e tida como falsa, enquanto as crenças dos “teóricos” da conspiração são apresentadas com todas as aparências de sinceridade e como verdades nuas e cruas. Muitas vezes, enormes edifícios de detalhes empíricos são construídos para apoiar determinada afirmação; se você acha que as “teorias” da conspiração são uma forma de reduzir a complexidade do mundo moderno e a sobrecarga de informações numa fórmula simples, você só precisa olhar para as compilações meticulosas de evidências reunidas pelos defensores de quase todas as “teorias” da conspiração para perceber que está errado.

Mas as “teorias” da conspiração nem sempre ou necessariamente estão erradas. Muitas delas são meras fantasias, mas tinham, e às vezes ainda têm, uma base na verdade. Em nossa própria época, algumas conspirações sobre eventos relevantes realmente se revelaram verdadeiras: a destruição das torres gêmeas de Nova York em 2001 foi o resultado de uma conspiração arquitetada dentro da Al-Qaeda. Alguns eventos importantes são de fato produto de pequenos grupos de pessoas que se encontram em segredo para planejá-los. Maquiavel (1469-1527) estava tão convencido da realidade das conspirações como instrumento padrão da política dos principados na Renascença na península itálica, que dedicou uma seção inteira de seus Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio para discuti-las. Então, as “teorias” da conspiração não necessariamente pertencem ao reino da fantasia; se as investigarmos cuidadosamente, algumas acabam por ser fatos plausíveis, não aleatórios e bem fundamentados. Por isso, contam com forte apoio na opinião pública.

“Teorias” da conspiração e #fake news, então, são produtos inevitáveis das democracias, nas quais todos são livres para apresentar suas próprias explanações dos principais eventos. Na verdade, sabemos que “teorias” da conspiração e #fake news também têm sido generalizadas em ditaduras e regimes autoritários. Governos sentem-se inseguros e, embora alguns de seus medos sejam genuínos, também as usam como técnica de repressão.

Uma ditadura como a de Hitler (1889-1945) baniu todas as organizações políticas, exceto o Partido Nazista, e forçou todas as instituições, incluindo a imprensa e os meios de comunicação, a fecharem ou serem transformadas em organizações nazistas. Críticos e oponentes foram obrigados a se esconder e trabalhar de forma conspiratória, mesmo que fosse apenas para produzir folhetos e panfletos para distribuição secreta durante a noite ou, simplesmente, para manter a chama da liberdade queimando até que tempos melhores chegassem. Onde a discordância aberta e a crítica são impossíveis, a única maneira de se opor ao governo é formando uma sociedade secreta ou uma conspiração.

Conspirações, bem como suas “teorias” e #fake news podem ser produtos tanto de ditaduras quanto de democracias. A história está repleta de tramas secretas para derrubar os sistemas políticos democráticos, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, como os golpes de Estado que estabeleceram regimes militares em muitos países sul-americanos, notadamente no Brasil e Chile, bem como na Grécia. Mas a existência de uma ditadura ou de um regime autoritário atua como incentivo para que seus inimigos se unam por trás da cena para derrubá-los.

Esses eventos frequentemente parecem inspirar “teorias” da conspiração. Verdadeiras ou não, “teorias” da conspiração e #fake news costumam seguir mais ou menos o mesmo padrão. Assim, por exemplo, muitas vezes se agrupam em torno de grandes eventos políticos ou crimes, que frequentemente são interpretados como o resultado de uma conspiração, intenção ou objetivo perseguido em segredo por um pequeno número de conspiradores. Apesar disso, quando olhamos para os numerosos exemplos históricos de assassinatos de importantes figuras políticas e chefes de Estado, descobrimos que a maioria deles envolveu indivíduos sozinhos, ao invés de grupos de conspiradores, mesmo que tenham agido em nome de alguma ideologia mais ampla. Muitas vezes parece impossível para muitas pessoas acreditar neste fato; daí as “teorias” da conspiração e #fake news.

Para caracterizar “teorias” da conspiração e #fake news, muitas vezes começamos por identificar os difusores de um evento e/ou fenômeno, bem como as pessoas que se beneficiam dessa divulgação. Mas é difícil aceitar que grandes consequências podem advir de ações individuais ou que a criação de uma ditadura foi baseada na exploração de um evento não intencional e imprevisto.

O que isso aponta é que “teorias” da conspiração e #fake news podem assumir uma variedade de formas e estruturas. A fim de manter objetivos, propósitos, métodos de uma conspiração, seus membros precisam mantê-la em segredo e é importante que um mínimo possível de pessoas esteja envolvido; frequentemente, de fato, conspirações restringiram o fluxo de informações aos seus próprios membros, ocultando a identidade de alguns deles de outras pessoas.

No início da Europa moderna, e bem no século XIX, as conspirações cimentaram a lealdade de seus membros por meio de juramentos sagrados e cerimônias de iniciação; na verdade, a expressão “conspiração” tem a ver com um juramento coletivo, tal como a conjuração francesa e/ou a mineira. As conspirações modernas se desenvolveram a partir deste modus operandi.

Ainda há muito a ser feito na pesquisa da história, estrutura e dinâmica das “teorias” da conspiração e das #fake news, suas relações com as conspirações reais e as mudanças pelas quais passaram ao longo do tempo. É fácil ser alarmista e sugerir que são uma ameaça à democracia e à confiança nos sistemas políticos democráticos, mas houve relativamente poucas vezes em países democráticos em que foram realmente concretas. Numa delas, o senador norte-americano Joseph McCarthy (1908-1957) explorou o anticomunismo em um período na história da América do pós-guerra, o que provavelmente reduziu a possibilidade de dissidência democrática e restringiu o alcance de opiniões políticas que eram legítimas. Mas a mera proliferação de tais “teorias” e #fake news certamente não é uma ameaça em si. Algumas pessoas não acreditam que pousamos na Lua, mas isso, só por si, não vai prejudicar o sistema político.

Muitos, especialmente no Oriente Médio, pensam que o 11 de setembro de 2001 foi uma conspiração norte-americana ou israelense, mas, novamente, isso não causa o ódio em si pela América, antes o expressa. Mais uma vez, essas ideias não são produto de dúvidas pós-modernas e da incerteza, mas de preconceitos políticos e ideológicos tão profundamente arraigados e apaixonadamente defendidos que é difícil refutá-los.

Obviamente, mais trabalho de pesquisa histórica precisa ser feito. Podemos intuir que “teorias” da conspiração e #fake news causam ansiedade e depressão entre as pessoas comuns e minam a confiança em nossas instituições políticas e nos que as dirigem, mas existem muitas outras razões para esta falta de confiança além de “teorias” da conspiração e #fake news. Também podemos intuir que, afinal, poucos acreditam que somos governados por lagartos verdes alienígenas disfarçados. “Teorias” da conspiração e #fake news aqui jogam apenas um papel secundário; a maior parte das energias dos negadores, de um lado, e da comunidade científica, de outro, é direcionada a reunir evidências para apoiar seu lado da história. O debate segue seu curso, mas não são “teorias” da conspiração e #fake news que ameaçam a democracia e a república. Por si mesmas, tais “teorias” e #fake news podem reforçar a suspeita política e o preconceito, mas não são as suas origens. A luta em prol da república e da democracia se encontra nas profundezas da educação da nossa cultura cívica.

*Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi.

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