sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Claudia Safatle - A necessária reindustrialização da saúde

Valor Econômico

‘Saúde está para o Brasil o que foi o petróleo nos anos 50’

Há uma importante discussão no mundo pós- pandemia, que se refere a políticas públicas para o desenvolvimento da produção e inovação do complexo da saúde. No Brasil, infelizmente, o Estado está ausente do debate, envolvido em um emaranhado de problemas de curto prazo. Mas é certo que esta será uma pauta para o próximo governo, seja ele quem for.

“A saúde está para o Brasil o que foi o petróleo nos anos 1950”, diz Carlos Gadelha, coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. “A pandemia mostra a saúde como grande oportunidade para o desenvolvimento do Brasil, que dialoga com a demanda social e a demanda da tecnologia e da inovação”, enfatiza ele, que completa: “Ou o Brasil entra na quarta revolução tecnológica pela porta da saúde ou ficará de fora.”

Os Estados Unidos, a Rússia e a União Europeia perceberam que não podem ficar na dependência do mercado externo em uma questão tão delicada como a saúde e estão investindo pesado no setor. Boa parte do programa de US$ 2 trilhões de investimentos do governo americano é voltada à indústria e serviços ligados à saúde. “Uma coisa é depender da China para o 5G. Outra é depender da China ou de qualquer outro país para questões de saúde”, diz um pesquisador da área.

No Brasil, o processo de desindustrialização começou nos anos 1990. O programa Brasil Maior, do governo de Dilma Rousseff, com seus erros e acertos, acabou restabelecendo algumas plantas industriais mediante as parcerias de desenvolvimento produtivo (PDP), que permitiram à Fiocruz e ao Butantan a produção de vacinas de maneira rápida, em meio à pandemia da covid-19.

Agora, discute-se na academia e no meio dos especialistas do setor, a internalização da produção e da inovação; a necessidade, enfim, de se ter algum grau de industrialização.

Essa não é mais uma discussão nacional, mas global. O mercado de vacina dobrou de tamanho, saindo de US$ 40 bilhões para a faixa dos US$ 80 bilhões, tornando-se o segundo maior mercado do mundo na área de medicamentos. No Brasil, ele é hoje o maior mercado, deixando o de doenças oncológicas para trás.

A realidade está mostrando que não adianta vacinar só os ricos, porque a doença é mutante. Controlando, agora, a variante delta, virão outras. A única solução é uma vacinação global. Os países ricos, porém, concentraram as aquisições, e há países, a exemplo do Haiti, que até hoje não tiveram acesso a vacina. Atualmente 40% da produção global de vacinas para a covid-19 está sendo comprada por países desenvolvidos, que têm apenas 14% da população mundial.

O Brasil, com a falência da indústria, ficou totalmente desassistido, refém do mercado internacional, com poucos fornecedores e com os atravessadores, e teve grandes dificuldades para comprar respiradores e mesmo máscaras. Isso nos remete a questões que precisam ser enfrentadas sem preconceito. É preciso ter uma política industrial para o complexo da saúde? Se sim, que ela seja desenhada de maneira transparente e dotada das melhores práticas regulatórias. Vai precisar ter garantia de mercado? Então, que ela seja temporária e vinculada a ganhos de conhecimento e inovação, cita Gadelha.

Ter dependência de vacinas ou de insumos farmacêuticos ativos (IFA) deixou de ser apenas uma questão de balança comercial para ser um problema de saúde pública e de ciência e tecnologia.

Responsável por 9% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, a saúde mobiliza 9 milhões de empregos diretos e 20 milhões de empregos indiretos. É um segmento que gera renda, ciência, tecnologia e pode ser a alternativa para o país sair da crise. “É preciso mudar os óculos para enxergar essas possibilidades. Em vez de despesa, saúde e tecnologia são investimentos no futuro”, sugere Gadelha.

Essa é uma agenda diante da qual o Estado não pode estar omisso. Ele não está omisso no Reino Unido, nos EUA, na União Europeia, na Índia, na China. “Acho que a saúde está apresentando algumas pistas para uma agenda de um novo padrão de políticas públicas que parte do social e do incentivo tecnológico e ambiental”, indica ele.

A pandemia da covid-19, que já acabou com 4,4 milhões de vidas no planeta e mais de 570 mil vidas no Brasil, traz consigo a emergência para repensar o papel do Estado e a forma de atuação na política de desenvolvimento. Para Gadelha, “vacinas, ventiladores, anestésicos, atenção básica, máscaras, UTIs, luvas, hospitais e ciência quando são articulados com uma visão política e sistêmica salvam vidas e a economia. Quando são fragmentos de ações de Estados capturados por interesses particulares, geram mortes, tristeza, exclusão e declínio econômico, social e da própria cultura de ação coletiva e solidária”.

A agenda do desenvolvimento precisa sair da esfera restrita dos economistas e conversar com as necessidades e os desafios do país.

Virar as políticas de desenvolvimento de cabeça para baixo é uma necessidade premente revelada pela pandemia. Novos critérios e orientações para a política de desenvolvimento têm que ser pensados, deixando de lado o que ele chama de “binarismo pueril” entre as soluções de mercado e o papel do Estado.

 

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