sexta-feira, 20 de agosto de 2021

José de Souza Martins* - Universidade para poucos

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Não é verdade que são os pais dos filhinhos de papai que pagam os impostos que asseguram a existência da universidade pública. Todo comprador de alguma mercadoria paga imposto

As ocorrências se deram na mesma semana. A Marinha mobilizou uma frota de tanques de guerra fumacentos para ir ao Palácio do Planalto levar ao presidente da República um convite para acompanhar manobras militares em Goiás. Por meio da demonstração militar, na verdade, o governo queria intimidar os que poderiam recusar a proposta de substituir o voto eletrônico pelo voto impresso, a expressão eleitoral moderna pela obsoleta e manipulável.

O ministro da Educação, por seu lado, fez um pronunciamento pela TV Brasil para dizer o que pensa sobre a universidade: deveria ser para poucos, para muitos os cursos técnicos dos institutos federais. Além disso, reitores não podem ser esquerdistas, menos ainda lulistas. Não precisam ser bolsonaristas. É que o são porque proibidos de não sê-lo.

Ao mencionar as cotas nas universidades federais, o ministro acha que foi a lei de cotas que fez com que a universidade pública deixasse de ser uma universidade de filhos de ricos. Oriundo de uma universidade confessional e privada, ele não tem a menor ideia do que é a universidade pública.

Criada em 1934, a Universidade de São Paulo, sob inspiração e ação de Júlio de Mesquita Filho (1892-1969), do setor culto e inteligente da elite, foi-o sob o princípio de que deveria ser “pública, laica e gratuita”. Não por acaso ela é a maior e a mais importante universidade brasileira e está entre as pouco mais do que uma centena de reputadas universidades do mundo. Não é só fazendo pesquisa sobre grafeno, em universidade privada, com dinheiro público, que se faz uma grande universidade.

O ministro foi longe na confissão autoritária: expôs seu espantoso ponto de vista sobre as diferenças sociais e sobre os direitos sociais dos jovens que aspiram a ingressar numa universidade pública:

“Pelo menos nas federais, 50% das vagas são direcionadas para cotas. Mas os outros 50% são de alunos preparados, que não trabalham durante o dia e podem fazer cursinho. Considero justo, porque são os pais dos ‘filhinhos de papai’ que pagam impostos e sustentam a universidade pública. Não podem ser penalizados.” No Brasil ideológico do ministro, os ricos é que são injustiçados.

A interpretação é capenga. Alunos que ingressam nas universidades públicas por meio de cotas não são despreparados. O objetivo das cotas é o de assegurar equidade no acesso à universidade. As categorias sociais em situação adversa, sem a correção das cotas, ficariam em desvantagem em relação a candidatos sobrescolarizados, não necessariamente mais capazes ou mais preparados. Há mais gente capaz de ingressar no curso superior do que vagas para acolhê-la.

Não é verdade que são os pais dos filhinhos de papai que pagam os impostos que asseguram a existência democrática da universidade pública. Se levarmos em conta os diferentes impostos, todo comprador de alguma mercadoria paga imposto. Se levarmos em conta que o capitalismo brasileiro é um capitalismo subdesenvolvido, baseado na sobre-exploração do trabalho humano, os que não são filhos de papai não o são porque seus pais são mal pagos, de uma economia que paga menos do que lhe vale o trabalho para que os pais dos bem-nascidos lucrem mais.

Num país de desigualdades sociais extremas e injustas, a adoção de regras de compensação social da injustiça do concentracionismo de renda tem por objetivo oferecer uma oportunidade à sociedade, não só aos que querem estudar. Em primeiro lugar, à própria universidade pública. A de recrutar os potencialmente capazes de colocar sua inteligência a serviço da sociedade e do país, independentemente da origem social. Isso é esforço de socialização democrática da distribuição do conhecimento.

Há sábios também entre os pobres, já o sugeriram o antropólogo português Adolfo Coelho (1847-1919) e o filósofo esquerdista italiano Antonio Gramsci (1891-1937), ambos influentes na inteligência brasileira.

Entre moradores de rua de nossas grandes cidades há milhares de crianças e jovens superinteligentes que sobrevivem porque o são. Trata-se de um desperdiçado capital social da nação. Os que tiveram a oportunidade e o apoio necessário, transformaram-se em cientistas competentes, professores, médicos, geólogos, sociólogos, antropólogos, engenheiros, físicos, químicos. Poderiam até ter sido militares de alto discernimento sobre as verdadeiras funções do soldado.

O ministro se baseia, em seu julgamento, numa concepção ideológica e extremista das diferenças sociais, anti-histórica, socialmente excludente e profundamente danosa ao país. O ministro interpreta a desigualdade social de um ponto de vista pré-moderno, estamental, feudal. Sua opção pela educação neoliberal divide o Brasil em duas pátrias, o que é próprio do bolsonarismo.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "No Limiar da Noite" (Ateliê, 2021).

 

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