quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Conrado Hübner Mendes* - Bolsonaro inelegível

Folha de S. Paulo

Que o TSE seja coerente com a fala de Barroso e não dance a valsa inocente de Fux

Bolsonaro moderado é um unicórnio flamejante que muitos juram ter visto em algum momento dos últimos 30 anos. As aparições desse chupa-cabra laranja fosforescente nas madrugadas frias e escuras do cerrado durante esses dois anos enriqueceram o bestiário brasiliense. Bastou uma noite de sono sem ronco, um “bom dia” ou um “obrigado” para observadores concluírem que a besta-fera aceita chamados à razão e à civilidade.

A expectativa de que um ator político possa ser convencido a fazer o que nunca fez em sua vida adulta, e que possa mudar justamente os modos exitosos que o catapultaram à cúpula do poder, é uma forma de negacionismo psíquico e ético. Mas mesmo que não fosse, e que as disposições de caráter de Bolsonaro fossem maleáveis, a moderação também deixou de fazer qualquer sentido político. Tornou-se uma impossibilidade lógica na estratégia eleitoral.

Por meio de agressões verbais e ameaças a toda instituição que hoje o expõe e o desagrada (sobraram a CPI do Senado, o STF e o TSE), Bolsonaro optou pelo tudo ou nada e cruzou linha irreversível. Sabe que qualquer passo para trás trairá seus devotos. A essa altura, com o ciclo eleitoral já iniciado, a moderação não trará nenhum ganho para 2022. No máximo, talvez, um silêncio momentâneo para seduzir bobos da corte.

A hipótese de eleições regulares com Bolsonaro na disputa, quando o acirramento extremista resta como única chance de sobrevivência, já não existe mais. Mesmo que se cale a partir de hoje, tudo que fez para implodir a legitimidade e confiança das eleições basta para viciar o processo. Não só politicamente, mas, juízes nos ouçam, juridicamente também.

Na abertura do semestre judicial, Luiz Fux embarcou naquela valsa cor-de-rosa. Seu discurso cometeu o pecado de supor ser Bolsonaro espécime invertebrado do centrão. “Nunca é tarde para o diálogo e para a razão. Sempre há tempo para o aprendizado mútuo, para o debate público compromissado com o desenvolvimento do país... Palavras voam; ações fortificam.” Palavras voaram mesmo, aguardamos as ações.

Fux, ao estilo de seu antecessor, pela enésima vez, convida Bolsonaro para uma confraternização de Poderes onde se possa fazer negociação de constitucionalidade. Isso não tem nada a ver com controle de constitucionalidade numa separação de Poderes, defendida nas cartilhas de direito constitucional moderno.

Luís Roberto Barroso, horas mais tarde, na fala judicial mais empolgante da história recente, abriu o semestre do Tribunal Superior Eleitoral sem cerimônias. “O discurso de que ‘se eu perder houve fraude’ não aceita a democracia. (...) Conspurcar o debate público com desinformação, mentiras, ódio e teorias conspiratórias é conduta antidemocrática.” Suas palavras rejeitaram o costumeiro autoelogio judicial e anunciaram medidas concretas.

Se Arthur Lira não vê materialidade de crime de responsabilidade (e, em contradição a esse juízo de mérito, deixa de cumprir o dever de ao menos indeferir 120 pedidos de impeachment); se Augusto Aras define a incontinência do presidente como liberdade de expressão e pensa não ter nada a fazer diante de evidências de crimes comuns; sobrou a Justiça Eleitoral para investigar infrações eleitorais e aplicar a sanção de inelegibilidade.

O futuro dirá se atuais ministros do TSE entenderam a gravidade das palavras de Barroso e terão coragem política e refinamento jurídico para levar isso adiante. Ou se preferem bailar com Fux, na melhor tradição constitucional brasileira.

Abrir inquérito para deixá-lo em banho-maria, num jogo de dissuasão, não vai adiantar. Não há mais tempo. Concluir o inquérito e julgar eventual ação judicial com a presteza que a Justiça tem quando quer será a única ação concreta à altura da ameaça presente. Não será pacífica e sem riscos, apenas menos violenta e com menos riscos do que a alternativa da leniência.

James Kwak (“The Second-Most Important Election of our Lifetimes”) alertou que a eleição de Biden foi a segunda mais importante da história de muitas gerações de norte-americanos. A mais importante teria sido a anterior. Naquela, Trump foi eleito, a democracia perdeu e os danos já são grandes demais. Resta reconstruir enquanto o próximo Trump não vem.

O alerta se aplica ao Brasil. Bolsonaro voltou ao grito do “parem o roubo” (“stop the steal”). Já havia começado em 2018.

 

 

 

*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

 

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