sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Fernando Abrucio* - Senado será decisivo para Bolsonaro

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Várias questões legislativas essenciais ao projeto de reeleição do presidente Bolsonaro passarão pelo Senado

futuro político do governo Bolsonaro está muito vinculado ao comportamento do Senado nos próximos meses. Aquela Casa legislativa tomará decisões centrais que impactarão fortemente a popularidade presidencial e o projeto de reeleição. Mais do que isso: está em jogo o equilíbrio democrático do país, uma vez que a Câmara federal e o Ministério Público Federal pendem mais para o lado do presidente da República, ao passo que o STF e a Federação são hoje contrapesos ao bolsonarismo. Do ponto de vista institucional, o desempate caberá aos senadores.

Dois fatores explicam esse lugar de árbitro do Senado. Um é estrutural, com caraterísticas que são intrínsecas à Casa. O outro é mais conjuntural e diz respeito à forma como Bolsonaro lidou com os senadores e a maneira como eles vislumbram seu futuro político imediato, especialmente com o olhar nas eleições de 2022.

Embora o bicameralismo tenha peculiaridades nos vários países que o adotam, a opção institucional por duas Casas legislativas geralmente transforma uma delas em espaço de uma elite política mais experiente. O Senado brasileiro cabe bem nesta definição. Normalmente atua como instituição revisora e moderadora de atos da Câmara federal e é composta majoritariamente por políticos com grande influência regional, sendo que uma parte deles foi inclusive governador - atualmente, cerca de 20% deles exerceram essa função. Outro elemento dá maior independência aos senadores: o tempo de mandato de oito anos, o que lhes dá mais autonomia na luta política imediata.

A este aspecto mais estrutural soma-se um cenário conjuntural que incentiva a maior independência do Senado em relação ao governo Bolsonaro. Apesar de muitos dos novos eleitos em 2018 terem vindo na onda da nova política que foi fundamental para o bolsonarismo, a maioria dos senadores não é completamente governista. Menos da metade se enquadraria nesta categoria e, quando o assunto é muito polêmico, o Executivo conta fielmente com cerca de 30 dos 81 membros desta Casa.

O que levou a este cenário mais desfavorável neste quadriênio? Primeiro, o pacto de troca de cargos e, sobretudo, recursos é bem mais azeitado com os deputados, que abocanharam a maior parte do chamado Orçamento secreto. Não por acaso Arthur Lira tem uma ligação mais orgânica e colaboracionista com o presidente da República, embora só será fiel enquanto isso for proveitoso eleitoralmente. Como se diz em Brasília, ninguém compra integralmente o Centrão, apenas aluga. Já no Senado há um sentimento muito forte de ser o “patinho feio” nesta barganha entre os Poderes.

Houve ainda brigas políticas do governo com lideranças estratégicas do Senado. Antes muito ligado ao bolsonarismo, especialmente na campanha eleitoral das eleições municipais de 2020, o senador Davi Alcolumbre, antigo presidente da Casa, hoje está magoado com o Planalto e colocando dificuldades no comando da Comissão de Constituição e Justiça. Renan Calheiros, o maior conhecedor dos meandros políticos da Casa senatorial, é oposição direta a Bolsonaro. O desenrolar da CPI da Covid-19 aumentou a quantidade de atritos e atiçou um espírito mais oposicionista, tanto por causa das loucuras e falcatruas descobertas pela investigação, como também em razão da frágil atuação da bancada governista. E outras mágoas mais poderiam ser listadas aqui, o que demonstra a inabilidade do Palácio do Planalto em lidar com caciques regionais mais experientes.

O próprio presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, mesmo tendo sido eleito com o apoio presidencial, tem obtido cada vez mais autonomia em suas ações. Ele tem aspirações políticas maiores e por isso leva em conta a perda de popularidade de Bolsonaro e, sobretudo, a visão negativa que setores relevantes da sociedade têm hoje do governo. Além disso, ao ser colocado no rol dos presidenciáveis por Gilberto Kassab (presidente do PSD), a manutenção de uma imagem independente, como caberia a uma das possíveis candidaturas de terceira via, tem sido alimentada.

O cenário de maior independência do Senado ganha uma enorme relevância por causa de quatro motivos: primeiro, a tentativa de diferenciar-se da Câmara federal; segundo, o fato de que muitos senadores poderão ser candidatos à reeleição ou a governos estaduais em lugares em que popularidade presidencial não vai bem ou onde candidatos vinculados ao bolsonarismo serão seus adversários; terceiro, as reiteradas críticas à democracia feitas por Bolsonaro colocaram o Senado numa posição de defensor político do regime democrático; e, quarto, várias questões legislativas essenciais ao projeto de reeleição do presidente da República passarão no segunda semestre por aquela Casa.

Diferenciar-se da Câmara hoje é, em poucas palavras, afastar-se do lado negativo da imagem do Centrão. É claro que há senadores que estariam próximos dos valores desse grupo, mas mesmo uma parte destes quer ter maior autonomia e não passar a imagem de serem meros colaboracionistas. Além disso, há pautas que estão sendo votadas ou já foram aprovadas pelos deputados que não agradam à maioria dos membros do Senado, como a volta das coligações em eleições proporcionais. O projeto desconjuntado de reforma tributária enviado por Paulo Guedes e transformado num Frankenstein pelo deputado Celso Sabino também terá muitas dificuldades para ser aprovado pelos senadores, seja pelos seus problemas intrínsecos, seja porque o Senado tinha um projeto mais estrutural de modificação dos tributos, gestado por vários anos e com apoio da maioria dos governadores, e que perdeu a primazia na agenda pública.

Muitos senadores são candidatos à reeleição ou a governadorias, e tal fato os coloca em diversos casos como potenciais adversários do presidente Bolsonaro. Na Região Nordeste, onde a popularidade do presidente é muito baixa, é muito complicado participar das eleições com apoio do Palácio do Planalto. Mesmo que novas políticas clientelistas sejam aprovadas para obter votos, a força de Lula e Ciro é bem grande e isso atrapalha estar ao lado do bolsonarismo. Nos Estados do Sudeste também não será fácil ter o presidente da República como cabo eleitoral, porque trata-se da região em que o oposicionismo ao governo federal, particularmente nas médias e grandes cidades, deverá ter um crescimento contínuo até outubro de 2022.

O bolsonarismo tem maior poderio eleitoral nas outras regiões, em especial no Sul e Centro-Oeste, bases agrícolas mais fortes do país. Exatamente por isso há uma grande possibilidade de haver uma inflação de candidatos buscando um rótulo bolsonarista nestes Estados, o que já incomoda uma parte dos senadores atuais que pretendem se reeleger ou concorrer aos governos estaduais. Assim, aumenta o número de membros do Senado que estão descontentes com o jogo radical do bolsonarismo.

Um terceiro motivo tem fortalecido a postura mais independente do Senado: a defesa política da democracia. A briga entre Bolsonaro e o STF/TSE é uma disputa de quem tem voto contra quem é togado. Isso deixa um vazio intrinsecamente político no contrapeso ao presidente da República, que poderia ser feito pela Câmara federal, mas que não ocorre pelo tipo de pacto político colaboracionista construído por Arthur Lira, sempre muito tímido nas críticas às falas e práticas autoritárias do bolsonarismo. Coube então a Rodrigo Pacheco, do ponto de vista institucional, o papel de baluarte do regime democrático com legitimidade eleitoral para realizar tal ação. Claro que ele cumpre esse papel de modo bem “mineiro”, pois essa não é só sua natureza, mas a forma de edificar uma imagem de terceira via no processo político.

A independência do Senado completa-se com seu papel na agenda legislativa. Caberá a ele, em primeiro lugar, definir o destino da CPI da Covid-19. O mais provável é que o relatório final seja muito duro e peça o indiciamento de figuras-chave do bolsonarismo, inclusive do presidente Bolsonaro. Isso terá, no mínimo, efeitos negativos na popularidade presidencial. Depois, os senadores terão que dizer se aceitam ou não a indicação de André Mendonça ao STF. Por ora, a estratégia é protelar, o que demonstra uma Casa que se posiciona como árbitro final do conflito político.

Mas esta configuração política terá como momento mais decisivo a votação dos projetos do Executivo criados para tentar viabilizar orçamentariamente a reeleição de Bolsonaro. É possível que os senadores coloquem dificuldades para aprovação da reforma tributária de Guedes e, principalmente, da PEC dos precatórios. Sem aprovar este último projeto, verdadeiro calote populista que destruirá as bases fiscais de longo prazo do país, o governo não garantirá o instrumento eleitoral para conquistar o voto dos mais pobres, seu calcanhar de aquiles. Desse modo, o Senado dará a palavra final sobre as chances eleitorais do bolsonarismo em 2022.

Muita água vai rolar em meio a essas decisões senatoriais, mas o governo deveria levar mais em conta a independência e os conflitos já existentes com o Senado para construir uma estratégia que ao menos minimize o impacto desse problema. A transformação dos ministros do STF em maiores inimigos é uma miopia de quem não está sabendo ler o jogo político atual e entender onde está o ponto nevrálgico para sua sobrevivência.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas

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