domingo, 1 de agosto de 2021

Fernando Henrique Cardoso - A morte é sempre desagradável

O Globo / O Estado de S. Paulo

Com o passar do tempo, tudo isso vira memória, e o que conta são os laços mais permanentes, que se formam quando se tem amizade

Sempre achei ruim morrer em dia triste, chuvoso. Morrer é sempre desagradável, já escreveu um poeta. Pois não é que nestes últimos tempos sombrios de São Paulo já perdi dois amigos, e dos mais queridos, José Arthur Giannotti e Leôncio Martins Rodrigues?

Procurei na memória, que ainda não desapareceu, mas me obriga a recordar fatos do passado com alguma dificuldade, quando e como os conheci. Giannotti foi colega de minha irmã, Gilda, na Faculdade (obviamente a de Ciências e Letras, da USP). Estudavam Filosofia. Como eu entrei nela em 1950 para fazer o curso de Ciências Sociais, devo tê-lo conhecido em 1951. Já Leôncio foi meu aluno no colegial, quando eu ainda era estudante. Eram aulas de História (não me lembro se do Brasil ou Geral) no colégio Fernão Dias Paes, que era em Pinheiros, como permanece até hoje. Eu e Ruth obtivéramos uma oportunidade para ensinar de quem era, na época, secretário de Educação do estado de São Paulo e se casara com uma de suas tias.

Com o passar do tempo, tudo isso vira memória, e o que conta são os laços mais permanentes, que se formam quando se tem amizade. Como foi o caso com Leôncio e com Giannotti.

Os dois eram muito diferentes e não se conheciam quando os conheci. Só se haviam encontrado (se é que) ocasionalmente. Leôncio na época era trotskista. Giannotti estudava e tinha pouco interesse por política, menos ainda a “operária”. Ambos gostariam de mudar o mundo: um era mais socrático, perguntava sem parar; outro, mais dogmático, sabia onde encontrar o Paraíso terrestre: nos ombros da classe operária. Eu mais ouvia do que falava. Talvez por temperamento quisesse mudar menos o mundo...

Não se preocupe o leitor. Não contarei 70 anos de nossa história. Meu senso de oportunidade o impediria. Recordarei apenas alguns fatos que nos levaram a viver experiências em comum, a principal das quais foi ler “O Capital”, de Marx, na tradução de Venceslau Roces, editado pelo Fondo de Cultura Económica, do México. Lemos os quatro volumes inteiros, durante vários anos; a tal leitura seguiu-se outra, também exegética dos imensos volumes da “História Crítica da Mais Valia”, do mesmo autor. Cada um de nós lia o texto em uma língua: alemão, francês, espanhol. Inglês, para cotejar e tirar dúvidas... Entretanto, como fui obrigado a ir para o Chile, deixei o grupo logo no começo das leituras da História Crítica.

Giannotti sempre foi “sabichão”. Sabia de verdade. Havia aprendido a “ler os clássicos” em sua primeira estada na França (na ocasião, por lá também nos encontramos). Lia-os como se deve: página por página e anotando-os. Recordo-me que, na Praia de Copacabana, no Posto 6, ao voltarmos para a casa de um tio onde deixáramos as roupas usuais para colocar os calções de banho, Giannotti insistia comigo (ambos já assistentes da USP) sobre a importância de uma leitura “heurística” do texto completo de “O Capital”. Foi o que fizemos, anos a fio (era o que chamávamos de “o seminário”). Até que o golpe de 1964 me levou ao Chile; mas meus amigos continuaram a ler. Também em Santiago, participei de outro grupo de leituras.

Já Leôncio fazia “entrismo” com nossos amigos, eu inclusive, da “Revista Fundamentos”, dirigida por Caio Prado, então ex-comunista. Isto significava que Leôncio, bom trotskista, se fazia passar por um “dos nossos”. Fez tanto que acabou deixando de lado e de vez o trotskismo (assim como quase todos nós nos livramos do “esquerdismo vermelho”). O que Leôncio nunca deixou de lado foi seu bom humor e o senso responsável do trabalho. Enquanto foi militante chegou a trabalhar como operário em uma fábrica.

Giannotti, além de ler e saber muita Filosofia, especialmente Fenomenologia, conhecia arte. Era amigo de um dos filhos de Oswald de Andrade (deste também) e logo que se abriu o museu “do Chateaubriand”, o de Arte Moderna da Rua Sete de Abril, tornou-se monitor. Recordo-me de uma viagem, de Paris à Itália, em um carro Renault que eu havia comprado, e no qual além de mim e da Ruth viajávamos o Bento Prado, sua mulher, Lúcia, e Giannotti. Este nos fazia ver tudo que era pintura famosa, sem esquecer as estátuas, até que Bento e eu inventamos um pintor... que ele não conhecia. Era assim nossa vidinha de bolsistas da Fapesp: quando fora das aulas, a arte nos apaixonava e, se necessário, inventaríamos o nome de pintores ou de escultores, para brincar com os amigos. Isso não ocorria com o Giannotti, sempre levando tudo mais a sério. Pelo menos do que o Bento Prado ou eu.

De um jeito ou de outro, foi desse modo que Leôncio, Giannotti e eu tecemos uma amizade que durou a vida toda. E é esta que o tempo, maldoso, veio interromper. Mas não conseguiu: eles viverão em minha memória enquanto eu estiver por aqui. Quietos, com um sorriso malandro, mas sempre me advertirão: cuidado, não vá por aí; melhor por aqui.

Nem sempre segui os conselhos. Mas que eram bons, eram, digo hoje.

 

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