domingo, 1 de agosto de 2021

Míriam Leitão - O incêndio e a grande mentira

- O Globo

A Cinemateca pegava fogo em São Paulo, no mesmo momento em que o presidente Bolsonaro começou a live da grande mentira. Ele promete há três anos apresentar provas de que há fraude eleitoral no Brasil. O canal dele no Facebook foi retransmitido pela TV Brasil, paga pelos contribuintes brasileiros. Mentiu durante duas horas às nossas custas. Era quinta-feira à noite, 29 de julho, no Brasil, enquanto os arquivos da história do cinema pegavam fogo, Bolsonaro usava o aparato da presidência para fazer o ataque mais histérico contra a democracia brasileira.

Na mesma semana, fomos felizes por alguns instantes e nos orgulhamos de jovens fazendo história nas Olimpíadas. As medalhas e as trajetórias dos vencedores, tão cheias de simbolismos, pareciam janelas que nos ajudavam a respirar na asfixiante atmosfera do Brasil.

A adolescente Rayssa Leal, ao conquistar a medalha de prata no skate com apenas 13 anos, pediu que não houvesse aglomeração em Imperatriz no Maranhão. “Infelizmente, não é esse o momento.” A ginasta Rebeca Andrade nos ensinou tanto em cada fala que é assombroso. Rebeca, cheia de graça, técnica e talento, fez uma apresentação linda. Mas não só. Homenageou as moças que vieram antes. Disse “eu sou preta e represento preto, branco, pardo”. Afirmou, coberta de razão, que mesmo se não tivesse medalha teria feito história. E deu uma lição fundamental sobre a importância da saúde mental dos atletas ao dizer que entendia e se orgulhava de Simone Biles, a campeã que desistira de disputar admitindo estar emocionalmente abalada. O ouro do surfista Ítalo Ferreira transformou o Brasil, por um instante, numa grande Baía Formosa. Fomos nós que dominamos as ondas do mar, nós que tivemos saudades da avó, nós que choramos naquela madrugada de terça. Esses e outros respiros nos ajudaram nessa semana pedregosa.

Parece que são sempre difíceis as semanas do Brasil. Na última, o presidente recebeu com largo sorriso uma representante do que há de pior na política alemã. A líder da AfD, Beatrix von Storch, com óbvias ligações com os neonazistas, foi atendida fora da agenda com gestos de acolhimento. Dias depois, Bolsonaro perpetrou o ato mais violento contra o direito de voto no Brasil, ao exibir na live, de forma irresponsável e criminosa, material de quinta categoria que circula pela internet, mentiras e acusações infundadas contra o sistema de voto eletrônico. Ao fim admitiu que não tem provas do que repete há três anos. Bolsonaro faz campanha descarada contra a democracia, seguindo o mesmo script de Donald Trump.

O jornal americano “The New York Times” revelou que Trump propôs ao Departamento de Justiça que alegasse que a eleição fora fraudada. “Deixa o resto comigo”, ele disse. É o que Bolsonaro tenta imitar. Ele convenceu o ministro da Defesa, os generais sabujos dos quais se cercou, os extremistas que o apoiam, e os oportunistas desse delírio usado como pretexto para o assalto final à democracia.

O país continua vivendo um sofrimento tão longo, tão pesado nessa pandemia. Agora, a variante Delta ronda os brasileiros, mesmo os vacinados, ou os que se encontram no intervalo entre doses. Tudo do que precisamos é paz e não a temos. A culpa é do homem que preside o país, uma pessoa que só sabe viver no conflito.

A solução evidentemente não é nenhum semipresidencialismo, fórmula de bolso usada agora por quem quer manter tudo como está. O que teremos de fazer em algum momento é rediscutir a concentração imperial de poderes na mão de uma pessoa só, o presidente da Câmara dos Deputados. Quantos crimes de responsabilidade a mais espera o deputado Arthur Lira para se decidir?

O incêndio da Cinemateca é o retrato do desleixo. O trágico é que de certa forma esperávamos um desfecho assim. O fogo era também simbólico do projeto de destruição da cultura brasileira, das artes em geral, das leis de financiamento de projetos nos quais nascem talentos em qualquer área, inclusive nos esportes. O obscurantismo sempre quis incendiar a cultura. O sorriso de Bolsonaro para Beatrix von Storch era sincero. Ele se reconhece nela. São iguais. Mas o Brasil se reconheceu nos sorrisos de Rayssa Leal, Kelvin Hoefler, Ítalo Ferreira, Mayra Aguiar, Rebeca Andrade, e Luisa Stefani e Laura Pigossi. Graças a eles e a outras estrelas do nosso esporte, fomos felizes por alguns momentos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário