terça-feira, 3 de agosto de 2021

Luiz Carlos Azedo - O Estado de Bolsonaro

Correio Braziliense

O presidente confunde seu carisma com o poder instalado na Presidência, que é institucional e, por isso mesmo, sujeito aos freios e aos contrapesos dos demais Poderes, entre os quais, o Supremo

Estado centralizado, ausência de divisão de poderes e política mercantilista eram as principais características do absolutismo, um avanço para o século XVII, quando as nações europeias consolidaram sua expansão. Os governantes detinham o poder de legislar e julgar e havia uma relação pautada pela cega fidelidade dos governados. Luís XIV (1638-1715), o Rei Sol, com sua Corte em Versalhes, na França, personificou essa época: “L’Etat? c’est moi” (O Estado sou eu), sua frase mais famosa, é a síntese do absolutismo como regime de governo.

O papel do Estado na sociedade moderna se consolidou a partir dessa época, sob influência de pensadores como Thomas Hobbes, autor de O Leviatã, um clássico da literatura política. Mas foi o bispo francês Jacques Bénigne Bossuet que sacralizou a realeza europeia, em A política inspirada na Sagrada Escritura, na qual fundamenta a doutrina do poder absoluto da realeza como direito divino. A legitimidade dos reis necessitava, simultaneamente, dos Papas e do sucesso da empresa colonial europeia, pois a preservação da coroa dependia mesmo era de manter um grande exército.

A essa altura do campeonato, digamos, o presidente Jair Bolsonaro constrói uma alegoria, quando pensa e age como se fosse uma espécie de Luís Napoleão, que venceu as eleições para a Presidência da França, em 1848, por 5.434.226 votos contra 1.448.107 votos dados ao general Cavaignac. Em 2 de dezembro de 1851, deu um coup d’état e assumiu poderes ditatoriais, proclamando-se imperador Napoleão III, até ser derrubado pela Terceira República, em 1870, que durou até a ocupação alemã de 1940. Karl Marx conta essa história em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, talvez a melhor reportagem política já escrita. Bolsonaro confunde seu carisma político em declínio com a força do Estado brasileiro, que confere muito poder aos presidentes da República, mas não são a mesma coisa.

Por razões históricas, o Estado brasileiro antecedeu a nação e ainda hoje é muito, mas muito forte na relação com a sociedade. Essa característica vem desde o período pombalino. Em 1750, o rei de Portugal, D. José I, escolheu Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras e futuro marquês de Pombal, para ocupar o cargo de primeiro-ministro. De certa forma, Pombal fundou o Estado brasileiro, fortificou fronteiras e organizou a nossa economia, com medidas como: criação das Companhias Geral de Pernambuco e Paraíba e do Grão-Pará e do Maranhão; extinção das capitanias hereditárias; elevação do Brasil a vice-reino de Portugal, bem como do Maranhão e Grão-Pará; transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro; criação da Real Extração; e expulsão dos jesuítas. Seu arrocho tributário (Derrama) foi tão grandes que provocou a Inconfidência Mineira.

Poder compartilhado
Desde a Independência, porém, se sucedem períodos de centralização e de descentralização, com ciclos relativamente longos, tanto no Império quanto na República. O paradigma de Bolsonaro é o regime militar, uma sístole, na definição do general Golbery do Couto Silva, mas acontece que o Estado de direito consagrado pela Constituição de 1988 é uma democracia de massas, com direito ao dissenso e alternância de poder. Graças a isso, Bolsonaro foi eleito presidente da República, porém, como o personagem da Restauração francesa, conspira contra a alternância de poder.

Não há outra explicação razoável para os sucessivos ataques que faz ao nosso sistema de votação eletrônico, tão bem-sucedido até hoje, e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que muitos consideram uma jabuticaba, mas ninguém pode contestar seu papel na realização de eleições limpas, nas quais o voto do eleitor é respeitado. Não fosse assim, não teria ocorrido o tsunami eleitoral que levou Bolsonaro e seus apoiadores ao poder.

O presidente da República confunde seu carisma com o poder instalado na Presidência, que é institucional e, por isso mesmo, sujeito aos freios e aos contrapesos dos demais Poderes, entre os quais o Supremo Tribunal Federal (STF). A máxima de Luís XIV não lhe serve como status político, embora muitas vezes se comporte como se fosse um monarca, como no caso do sigilo por 100 anos sobre as entradas e saídas de seus filhos no Palácio do Planalto. É um erro crasso confundir o peso do governo federal na vida dos brasileiros com o poder pessoal. O Estado brasileiro é ampliado, compartilhado de forma tripartite (Congresso e Judiciário) e federada (estados e municípios). Como no cartaz sobre a volta do voto impresso de manifestantes bem-humorados, que virou meme nas redes sociais, talvez seja o caso de se instalar um orelhão no Palácio da Alvorada. Quem sabe a ficha caia.

 

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