terça-feira, 3 de agosto de 2021

Carlos Andreazza - Renan Moro, Deltan Calheiros

O Globo

Escrever e falar lixo não é crime; mesmo que o lixo seja negacionismo — para efeito de desinformação — em meio a uma pandemia. Tampouco ilícito será um veículo de comunicação receber dinheiros de governo, os recursos todos acessíveis via mecanismos públicos de consulta. Outra obviedade, que já deveríamos ter entendido após anos sob a degeneração do vale-tudo lavajatista, a alternativa sendo afundarmos ainda mais no pântano do justiçamento que resultou em Bolsonaro: mera suspeita — por forte que seja a convicção individual — não pode sustentar gestos extremos contra direitos constitucionais.

De maneira que pergunto: qual é a base legal para a quebra do sigilo bancário da rádio Jovem Pan, conforme pedido pelo relator Renan Calheiros à CPI da Covid? Nenhuma. Li o requerimento e repito: nenhuma; salvo se considerarmos juridicamente aceitável, como fundamento para uma demanda radical, o gosto do senador por pescaria de intimidação — por pesca de arrasto, para ser preciso. Ou se poderá nomear de outro modo um pedido que remonte a 2018 e proponha — contra “grande disseminador de fake news” — uma puxada até o presente?

Nada aprendemos com a Vaza-Jato?

Olhemos para esta categoria: a do “grande disseminador de fake news”. Concordo que a Jovem Pan se enquadre. É a minha opinião. Tenho bastante certeza a respeito. É também a de Calheiros, com a perigosa (e decisiva) diferença de ele poder vertê-la em demanda por quebra de sigilo; e de poder fazê-lo amplamente, para período de quase quatro anos, exatamente por ter uma opinião desprovida de lastro indiciário — a razão para que se contivesse sendo a que o estimula ao ataque. E ele ataca, para deleite inclusive dos que, sem as garantias de um senador, poderão um dia ter a quebra de seus sigilos requisitada, acusados de “grandes disseminadores de fake news”, porque suas apurações jornalisticamente corretas incomodam o justiceiro de turno.

A prática se chama arrastão. E o que quer jogar a rede é aquele — outrora tubarão enredado — que reclamava dos expedientes de Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Calheiros se reinventa. Nada aprendeu, contudo. Daí por que se sinta à vontade para armar seu PowerPoint. O jurista Horacio Neiva desenhou: “Até agora, a suspeita é de que, para uma emissora ter uma programação tão ruim, teria de receber dinheiro do governo. Isso não é justificativa plausível e, ao menos que queiramos transformar quebra de sigilo de órgãos de imprensa em algo normal, e o uso dessa medida excepcional em um instrumento de coação, deveríamos todos rechaçar atos como esse”.

Lê-se o requerimento de Calheiros e logo se capta a natureza do que quer substanciar o arrastão: uma composição entre desejo de forra — contra rádio que lhe bate firme — e certeza, sem provas processuais, de que tamanho governismo não poderia se bastar nos valores declaradamente pagos pela Secom.

Arrastão, aliás, que a própria forma mal-acabada da petição entrega: um grosseiro — vergonhosamente apressado — copia e cola de nomes e dados, denúncia per se de clara fabricação em série e de profunda fé na imposição do espírito do tempo autoritário, em que se acolhe o abuso de poder porque pela boa causa. Afinal, Calheiros tem um objetivo, considera-o virtuoso, conta com a simpatia de porção expressiva da sociedade — e, então, mete o pé na porta do estado de direito.

É vergonhoso que um senador se refira ao objeto de sua grave demanda — uma empresa — como “uma pessoa”, “assessora especial do Poder Executivo”, “instalada próxima ao presidente”, “cuja atuação como redatora de conteúdo é questionada, investigada e perquirida desde o início do mandato do presidente Jair Bolsonaro, por conta de inúmeras notícias falsas veiculadas em páginas específicas, outrossim, distribuídas a esmo por meio de grupos em aplicativos de mensagens”. Mais adiante, o texto classifica a matéria do requerimento — uma rádio — como “servidor”.

É isto mesmo: não sabemos a que agente do gabinete do ódio mobilizado no Planalto se voltava originalmente Renan Calheiros, mas a peça nos comunica que o senador —em vez de ir à Justiça, individualmente, contra quem o desonra “com extrema hostilidade” — vale-se da condição de relator para requerer quebras de sigilo à baciada. Não é algo banal. Não está certo. Não é certo. Não se pode normalizar o absurdo, senão como escada para a prosperidade do que se quer derrotar. Ilude-se quem avaliar que o bolsonarismo se enfraquece na briga de rua. Já será tempo de as violações cometidas pela Lava-Jato nos terem ensinado algo.

Trabalhei na Jovem Pan. Quis sair. Estava infeliz; insatisfeito com uma linguagem que embalava entretenimento para pugilato como campo para o debate jornalístico. A coisa se degradaria rapidamente, até que o estímulo permanente ao confronto resultasse em trocas de socos no ar. Não gosto do jornalismo que a Jovem Pan faz. E não por ser governista. (Não foi o primeiro; não será o último a aderir e colher vantagens.) Considero-o funesto, insalubre. Desprezo, porém, que se pretenda criminalizar o mau jornalismo e formular um tipo penal para enquadrá-lo — de resto, uma classificação arbitrária em essência, talvez saborosa quando sob nosso apontamento, mas que amanhã pode estar nas mãos dos que não gostam de nós.

Não faltam calheiros por aí, de todos os lados. Tampouco faltam inimigos da Lava-Jato que incorporem os instrumentos lavajatistas.

 

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