sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Reinaldo Azevedo - A pluralidade exclui o golpismo

Folha de S. Paulo

Os dias são anômalos; defender a democracia, as regras do jogo e as instituições passou a ser uma agenda antigovernista

Vivemos uma situação espetacularmente anômala. Se não tomarmos cuidado, nós, da imprensa, ainda acabaremos como porta-vozes involuntários do golpismo. Lamento ter de constatar que, aqui e ali, isso já acontece. Golpistas, sem nenhum pudor, expõem a sua agenda, que compreende, realizados seus intentos, calar um dia também o diligente entrevistador.

Notem que mal se veem, hoje em dia, estampados na imprensa, os embates que se tornaram corriqueiros desde a redemocratização. Privatiza ou não? Mais Estado ou menos? A legislação que protege o trabalho garante ou rouba os empregos? A elevação da taxa de juros certamente concorrerá para deprimir o crescimento no ano que vem, mas ela será eficaz para baixar a inflação? O debate sumiu.

Tudo se dilui na aparente unanimidade da imprensa profissional contra o governo Bolsonaro. E as exceções mal conseguem esconder uma militância a soldo: ou gozando já de privilégios oferecidos pelo poder ou de olho em concessões futuras. A questão é saber se essa unanimidade —reitero que é apenas aparente— tem mesmo de ser rompida e o que, então, se deve entender, dado o contexto, por pluralidade.

Uma coisa é tentar compreender a cabeça de um golpista, fazendo, vamos dizer, a etiologia do seu pensamento para chegar à origem da patologia —e, como notam, tomo a defesa da democracia como exemplo de “saúde civil”, fazendo eco à campanha das Diretas. Outra, muito distinta, é lhe franquear o megafone para vomitar proselitismo contra a ordem democrática.

Mal sabemos o que pensam e querem hoje os que se opõem a Bolsonaro porque é impossível identificar qual é a pauta do governo. As forças políticas não mais se organizam a partir de um eixo de propostas que o poder de turno busca implementar. Querem um exemplo? O que pretende Paulo Guedes, o “homem-meme”, como o chama minha mulher?

Transformou-se numa espécie de “clown” —refiro-me à linguagem do teatro— de uma mistura exótica de liberalismo do século passado com bolsonarismo. Pode falar qualquer coisa —“qual é o problema se a energia ficar um pouco mais cara?”—, sempre com o ar meio entristecido, como cabe a essa persona, com eventuais rompantes de indignação reacionária. O controlador do caixa se mostra um teórico da contabilidade criativa e fura-teto, esforçando-se, adicionalmente, para mandar para o lixo a Lei de Responsabilidade Fiscal e o inciso III do artigo 167 da Constituição, o da “Regra de Ouro”.

Em tempos de normalidade democrática, as forças políticas estariam se engalfinhando em razão dessas e de outras escolhas, cabendo à imprensa, sim, dar conta da pluralidade de vozes. Mesmo no pega-pra-capar do jornalismo investigativo, ouvir o que têm a dizer os acusados é primado básico do Estado de Direito e da civilidade política. Aliás, depois da aluvião lavajatista, uma revisão de critérios é mais do que necessária. Está por ser feita.

Dados alguns exemplos do que seriam os embates corriqueiros, voltemos à questão de fundo. A que se deve, na imprensa profissional e independente, o suposto consenso? Bolsonaro se ocupa de golpear as instituições desde que se sentou na cadeira presidencial. O primeiro ato relevante de seus fanáticos —então unidos ao lavajatismo— contra as instituições se deu no dia 26 de maio de 2019, com apoio mais do que explícito do governo.

E, desde aquela data, assiste-se a uma escalada. A pauta pode variar um pouco, mas o intuito é sempre o mesmo: rasgar a Constituição. As oposições deixaram de ser o outro lado do governo. O governo deixou de ser o outro lado das oposições. A referida anomalia está no fato de que defender a ordem democrática, as regras do jogo e os valores mínimos da civilização se tornou uma agenda antigovernista. O bolsonarismo se manifesta como o polo oposto às instituições. A barbárie se expressa com a clareza que a barbárie tem.

Pergunto: deve-se entender que a pluralidade passa por normalizar a pregação golpista, legitimando-a, assim como quem diz “hoje é sexta-feira”? Dar voz a quem quer nos calar não é um paradoxo. É sujeição voluntária.

 

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