Folha de S. Paulo
Os dias são anômalos; defender a
democracia, as regras do jogo e as instituições passou a ser uma agenda
antigovernista
Vivemos
uma situação espetacularmente anômala. Se não tomarmos cuidado, nós, da
imprensa, ainda acabaremos como porta-vozes involuntários do golpismo. Lamento
ter de constatar que, aqui e ali, isso já acontece. Golpistas, sem nenhum
pudor, expõem a sua agenda, que compreende, realizados seus intentos, calar um
dia também o diligente entrevistador.
Notem que mal se veem, hoje em dia,
estampados na imprensa, os embates que se tornaram corriqueiros desde a
redemocratização. Privatiza ou não? Mais Estado ou menos? A legislação que
protege o trabalho garante ou rouba os empregos? A elevação da taxa de juros
certamente concorrerá para deprimir o crescimento no ano que vem, mas ela será
eficaz para baixar
a inflação? O debate sumiu.
Tudo se dilui na aparente unanimidade da imprensa profissional contra o governo Bolsonaro. E as exceções mal conseguem esconder uma militância a soldo: ou gozando já de privilégios oferecidos pelo poder ou de olho em concessões futuras. A questão é saber se essa unanimidade —reitero que é apenas aparente— tem mesmo de ser rompida e o que, então, se deve entender, dado o contexto, por pluralidade.
Uma coisa é tentar compreender a cabeça de
um golpista, fazendo, vamos dizer, a etiologia do seu pensamento para chegar à
origem da patologia —e, como notam, tomo a defesa da democracia como exemplo de
“saúde civil”, fazendo eco à campanha das Diretas. Outra, muito distinta, é lhe
franquear o megafone para vomitar proselitismo
contra a ordem democrática.
Mal sabemos o que pensam e querem hoje os
que se opõem a Bolsonaro porque é impossível identificar qual é a pauta do
governo. As forças políticas não mais se organizam a partir de um eixo de
propostas que o poder de turno busca implementar. Querem um exemplo? O que
pretende Paulo Guedes, o “homem-meme”, como o chama minha mulher?
Transformou-se numa espécie de “clown”
—refiro-me à linguagem do teatro— de uma mistura exótica de liberalismo do
século passado com bolsonarismo. Pode falar qualquer coisa —“qual
é o problema se a energia ficar um pouco mais cara?”—, sempre com o ar meio
entristecido, como cabe a essa persona, com eventuais rompantes de indignação
reacionária. O controlador do caixa se mostra um teórico da contabilidade
criativa e fura-teto, esforçando-se, adicionalmente, para mandar para o lixo a Lei
de Responsabilidade Fiscal e o inciso III do artigo 167 da Constituição, o da
“Regra de Ouro”.
Em tempos de normalidade democrática, as
forças políticas estariam se engalfinhando em razão dessas e de outras
escolhas, cabendo à imprensa, sim, dar conta da pluralidade de vozes. Mesmo no
pega-pra-capar do jornalismo investigativo, ouvir o que têm a dizer os acusados
é primado básico do Estado de Direito e da civilidade política. Aliás, depois
da aluvião lavajatista, uma revisão de critérios é mais do que necessária. Está
por ser feita.
Dados alguns exemplos do que seriam os
embates corriqueiros, voltemos à questão de fundo. A que se deve, na imprensa
profissional e independente, o suposto consenso? Bolsonaro
se ocupa de golpear as instituições desde que se sentou na cadeira presidencial.
O primeiro ato relevante de seus fanáticos —então unidos ao lavajatismo— contra
as instituições se deu no dia 26 de maio de 2019, com apoio mais do que
explícito do governo.
E, desde aquela data, assiste-se a uma
escalada. A pauta pode variar um pouco, mas o intuito é sempre o mesmo: rasgar
a Constituição. As oposições deixaram de ser o outro lado do governo. O governo
deixou de ser o outro lado das oposições. A referida anomalia está no fato de
que defender a ordem democrática, as regras do jogo e os valores mínimos da
civilização se tornou uma agenda antigovernista. O bolsonarismo se manifesta
como o polo oposto às instituições. A barbárie se expressa com a clareza que a
barbárie tem.
Pergunto: deve-se entender que a
pluralidade passa por normalizar a pregação golpista, legitimando-a, assim como
quem diz “hoje é sexta-feira”? Dar voz a quem quer nos calar não é um paradoxo.
É sujeição voluntária.
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