segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Bruno Carazza* - As interferências no 5G brasileiro

Valor Econômico

Influência política sobre regulação afeta leilão do 5G

Na contracapa do quarto álbum lançado pelos Beatles, o assessor de imprensa da banda, Derek Taylor, apresentou o disco da seguinte maneira: “Quando, daqui a 20 anos ou mais, uma criança, entendida em música, estiver num piquenique em Saturno, e lhe perguntar quem eram os Beatles (...), não tente explicar tudo sobre os cabeludos e sua turbulência! Basta à criança tocar algumas faixas deste LP e ela logo entenderá tudo”.

Beatles for Sale foi lançado em dezembro de 1964 e se por um lado o jornalista estava correto em antever que a magia dos quatro garotos de Liverpool não sofreria limites de tempo ou espaço, sua previsão quanto ao prazo para a massificação das viagens interplanetárias mostrou-se um imenso fracasso.

Quase sessenta anos depois, a perspectiva de chegada do 5G renova as esperanças de que, num futuro breve, conviveremos com carros autônomos circulando pelas ruas, eletrodomésticos que se comunicam com sites de e-commerce, drones fazendo entregas e robôs assumindo boa parte do trabalho humano na nova indústria 4.0.

Se o avanço da tecnologia nos permite sonhar viver na Orbit City de George Jetson, a observação do processo de concepção da licitação do 5G no Brasil lembra mais a Bedrock de Fred Flintstone - dois desenhos animados de sucesso também lançados no início dos anos 1960.

Com a exaustão do modelo de desenvolvimento que imperou no país da era Vargas ao fim do regime militar, a Constituição de 1988 determinou que o Estado deveria deixar de ser provedor de bens e serviços, por meio das estatais, e assumiria o papel de agente normativo e regulador da atividade econômica.

Apesar de tímidas iniciativas nos governos Sarney, Collor e Itamar, o verdadeiro impulso para se dar concretude a esse novo modelo econômico só veio no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso. O Programa Nacional de Desestatização (PND), acompanhado das reformas constitucionais e infraconstitucionais que reconfiguraram os setores básicos e de infraestrutura no país, é um dos mais importantes legados do Plano Real, embora frequentemente esquecido pelas análises que se concentram somente na sua engenhosidade macroeconômica.

De forma resumida, o objetivo era modernizar a regulamentação dos setores de infraestrutura, privatizar as empresas estatais para atrair capitais privados nacionais e estrangeiros e delegar a regulação e a fiscalização das novas empresas para agências com autonomia operacional, blindadas da influência política.

A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) foi a primeira agência reguladora brasileira, criada em 1997. Seus conselheiros foram protegidos com mandatos fixos de cinco anos, garantiu-se autonomia orçamentária para o órgão e criou-se uma estrutura de pessoal técnico bem selecionada e remunerada.

A independência formal, porém, não foi suficiente para proteger as decisões da Anatel de interferências econômicas e políticas. No princípio, o pêndulo tendeu para a captura dos seus dirigentes pelos interesses das empresas de telecomunicações. Com o passar do tempo, contudo, o poder da agência começou a ser esvaziado pela classe política, seja pela hipertrofia das atribuições do Ministério das Comunicações - a quem a Anatel permanece vinculada -, seja na escolha dos conselheiros, que passaram a ser apadrinhados pelos grandes caciques do Congresso Nacional.

Acontece que o poder não admite vácuo. Numa entrevista recente para o excelente podcast “A Arte da Política Econômica”, do Instituto Casa das Garças, a economista Elena Landau (diretora de privatização do BNDES à época da reconfiguração do mercado de telecomunicações brasileiro) argumenta que o espaço aberto com o enfraquecimento das agências reguladoras foi ocupado pelo Tribunal de Contas da União e pelo Poder Judiciário.

Esse jogo de forças tem uma consequência clara: a regulação dos setores de infraestrutura no Brasil deixou de ser guiada por princípios técnicos e passou a ser controlada pela política.

Entre os dias 02 e 12 de fevereiro deste ano, uma comitiva comandada pelo ministro das Comunicações, Fábio Farias, visitou Suécia, Finlândia, Coreia do Sul, Japão e China para se encontrar com autoridades governamentais e executivos de empresas fabricantes de redes e equipamentos de 5G (Ericsson, Nokia, Samsung, Fujitsu, Nec e Huawei). Além de representantes de diversas áreas do Poder Executivo, a viagem contou com a presença dos ministros Bruno Dantas, Vital do Rêgo e Walton Alencar, todos do Tribunal de Contas da União (TCU) - órgão que deveria analisar o edital de licitação das frequências para o 5G.

Na semana passada, o Conselho Diretor da Anatel se reuniu para acertar os últimos detalhes do leilão do espectro de frequências. A pressão do ministro das Comunicações sobre os diretores foi tão grande que o conselheiro Emmanoel Campelo teve que desligar o celular para conseguir analisar o caso em paz.

As situações prosaicas relatadas acima são sintomas de um longo processo em que a bilionária concessão de faixas do 5G vem sendo utilizada para atender interesses do governo e de bancadas do Congresso Nacional. Desrespeitando as recomendações do corpo técnico tanto do TCU quanto da Anatel, os ministros e conselheiros de ambos os órgãos têm cedido para acomodar preferências de nossa elite política.

A licitação do 5G já foi alterada para se exigir, como contrapartida, a construção de uma rede privativa paralela a fim de acomodar os temores de Bolsonaro e seu entorno quanto a supostas espionagens chinesas. O TCU também exigiu que o edital fosse modificado para se garantir a construção de uma rede subfluvial na Amazônia e o atendimento de escolas rurais - objetivos louváveis de política pública, mas que deveriam ser objeto de estudo de impacto no âmbito da discussão orçamentária.

Ao admitir que a regulação da infraestrutura brasileira sofra a interferência das conexões políticas, não será surpresa se o 5G brasileiro nasça mais caro e com pior qualidade do que no restante do mundo - como, aliás, tem sido a marca de nosso sistema de telecomunicações há anos.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

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