segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Mirtes Cordeiro* - O amigo Paulo Freire

Falou e Disse

 “Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”. (Paulo Freire in Pedagogia do Oprimido)

Iniciei a minha vida profissional e política muito cedo, e por isso tive a imensa satisfação de conviver e trabalhar, ao chegar em Pernambuco, com algumas pessoas que muito labutaram na construção da nossa ainda frágil democracia, a exemplo de Paulo Cavalcanti, Miguel Arraes, Paulo Freire e outros, com os quais aprendi que a democracia é um bem inalienável.

Com Paulo Cavalcanti estabeleci uma grande amizade através da vida partidária e da continuidade das conversas nos finais das tardes de domingo em sua casa, lá no bairro de Cajueiro, Recife, onde minha filha ainda pequena se divertia com a presença dos gatos no gramado dos jardins.

Com Miguel Arraes trabalhei durante três anos, após a sua chegada do exílio, em 1979, ele cheio de vontade de fazer deste Brasil uma grande nação, e eu saindo de um mestrado em sociologia, cheia de ideias sobre como transformar a sociedade num ambiente pleno de direitos. Trabalhamos muito para isso, mas essa história ainda vou contar.

Encontrei Paulo Freire pessoalmente quando eu assumia a função de secretária de Educação do município do Cabo de Santo Agostinho (PE). Era o ano de 1986 e o prefeito, um jovem democrata, Elias Gomes.

No entanto o meu contato primeiro com o escritor Paulo Freire foi ainda no Ceará, meu Estado, através do seu livro Extensão ou Comunicação, da editora Paz e Terra. O livro foi escrito no Chile, em 1968, e publicado em 1969. À época eu trabalhava como extensionista rural, num programa desenvolvido com famílias que produziam alimentos através da agricultura familiar, patrocinado pelo governo da ditadura militar.

Freire, ao escrever o livro, fazia uma crítica ao processo desenvolvido pelos serviços de extensão, nos mostrando que a técnica apresentada aos agricultores, somente, não contribuía para que as pessoas que viviam e trabalhavam no campo, tivessem o conhecimento sobre os problemas gerados pela sociedade agrária existente no país, pois carecia que lhes apresentássemos os instrumentos para análise da sua própria existência

Acontecia também que os agricultores não eram considerados ou reconhecidos como pessoas donas de saberes adquiridos pela prática de vida e trabalho, na convivência com seus ancestrais.

Atualmente sabemos que mais de 75% da alimentação do povo brasileiro ainda vêm da agricultura familiar, que embora não receba a devida atenção e apoio, pois geralmente os pequenos agricultores são forçados a vender suas terras, e, cercados que são pelos grandes produtores, muitos acabam indo para a cidade grande, ocorrendo o conhecido êxodo rural.

O livro despertou em todos que acreditavam no poder da agricultura familiar e sua importância para a alimentação da população, bem como na necessidade da reforma agrária, o sentimento de que era necessário percorrer os caminhos da liberdade, através do processo educacional, não só nas escolas, mas em todas as ações que envolvem processos de aprendizagem.

Paulo Freire sedimentou em todos nós a compreensão de que o processo de aprendizagem é permanente e inerente ao ser humano.

A sua experiência em Angicos, no Rio Grande do Norte, nos colocou de frente com a possibilidade de se erradicar o analfabetismo no Brasil e avançar nas reformas planejadas pelo governo João Goulart. Os militares não gostaram.

No exílio, também no Chile, escreveu o seu livro, Pedagogia do Oprimido, que se tornou uma grande referência para aqueles que lutavam contra a ditadura. Aos poucos foi se transformando numa referência mundial. Nas universidades brasileiras, escondidos dos militares, líamos o livro em pequenos capítulos traduzidos para o português e conseguido de forma clandestina.

Publicado em 1968, no Chile, sendo que uma edição portuguesa saiu em 1974, o livro Pedagogia do Oprimido, trata sobretudo da relação entre colonizadores e colonizados, oferecendo uma ampla reflexão sobre as relações de subordinação existentes na sociedade, “propondo uma pedagogia com uma nova forma de relacionamento entre professor, estudante e sociedade”. Continua sendo lido por educadores do mundo inteiro e um dos fundamentos da pedagogia crítica, com base no diálogo e na análise do cotidiano em que vivem os educandos.

Em 1988 foi criado no Cabo de Santo Agostinho o Projeto Escola da vida, com o objetivo de erradicar o analfabetismo e avançar na qualidade do ensino, com a participação da sociedade. Para nosso orgulho, o principal colaborador foi Paulo Freire, e o encontro com a nossa equipe do município foi mediado pela professora Adozinda, que já havia com ele trabalhado antes do exílio, no Movimento de Cultura Popular (MCP), e nos ajudava na nossa jornada por melhor educação, junto à secretaria de Educação, na formação dos professores.

Além do aprendizado coletivo, pudemos privar da convivência com o estudioso, pensador, humanista e bom mesmo era poder lhe escutar falar sobre suas experiências mundo afora e poder saborear o prazer de aprender cada vez mais, na prática, dialogando, ouvindo pausadamente, avaliando circunstâncias de trabalho, vida e compromisso.

Com Paulo Freire, sentados numa sala em círculo, todos éramos iguais, detentores de diferentes saberes que podiam ser compartilhados. Ali estávamos, prefeito, secretários municipais, professores, lideranças comunitárias, todos em busca da construção do conhecimento que nos proporcionasse desenvolver o município para o bem estar do seu povo.

Foram muitas rodadas de estudo e também muitas conversas à beira-mar de Gaibu, tendo como aperitivo predileto uma boa cachaça.

Para nós, Paulo Freire era o nosso amigo, o que ajuda lutar e vencer.

A lembrança de Paulo Freire está presente em todos nós que participamos desta empreitada, pelo que com ele aprendemos, pela nossa unidade na ação e pelo que permanece até hoje na memória da população do município do Cabo de Santo Agostinho.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. 

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